sábado, 7 de dezembro de 2019

RESENHA – A Espada e os Espíritos




Shiba Tsukune é uma jovem samurai do clã Fênix, treinada desde cedo para a nobre função de guarda-costas dos shugenja, sacerdotes da família Isawa. Entretanto, sua vida deu uma guinada quando Ofushikai, a espada ancestral do clã, a escolheu para ocupar o lugar de Shiba Ujimitsu, o falecido Campeão da Fênix. Agora, Tsukune precisará se adequar às formalidades e exigências de sua nova posição social, ao mesmo tempo em que tentará demover o jovem e belo shugenja Isawa Tadaka, a quem serviu durante anos como guarda-costas, da estúpida ideia de duelar contra um dos Mestres do Conselho Elemental.   

Para tanto, Shiba Tsukune irá ao Santuário do Penhasco, nas distantes e montanhosas terras da família Kaito, onde Tadaka está conduzindo uma investigação aparentemente sem importância, sob ordens do Conselho. Tudo mudará quando Tsukune e Tadaka descobrirem que a família Kaito guarda muitos segredos e que um mal muito antigo e com sede de vingança espreita aquelas terras... e está para se libertar.

Antes de falarmos da história propriamente dita, é preciso dizer que a novela de Robert Denton III foi publicada pela Galápagos Jogos, responsável pelo lançamento de inúmeros jogos analógicos, sobretudo cards e boardgames, aqui no Brasil. Um livro, portanto, é uma novidade para a editora, mas uma novidade que se torna menos surpreendente quando ficamos sabendo que a história de A Espada e os Espíritos pertence ao universo de Legend of the Five Rings – um conhecido cardgame, atualmente publicado no Brasil pela mesma Galápagos Jogos, que também deu origem a um dos mais sofisticados RPGs de mesa de que se tem notícia.

De fato, Legend of the Five Rings, ou simplesmente L5R, como é mais conhecido pelos fãs, possui um lore complexo, robusto e dono de uma riqueza dramática ímpar, que não deixa nada a dever a nenhum cenário de fantasia mainstream... Na verdade, deixa a maioria deles comendo poeira.

O jogo possui uma timeline que é atualizada por torneios de cardgame chamados kotei e por contos publicados periodicamente, que acompanham os decks de cards e são, posteriormente, disponibilizados na internet. Assim, a literatura não é, de modo algum, estranha ao universo do jogo. O autor, Robert Denton III, é já um veterano, que escreveu diversos contos para o cenário. A novela A Espada e os Espíritos é o seu primeiro texto mais longo.

A edição da Galápagos Jogos é muito bonita. Ela vem com capa dura, em que figura uma belíssima ilustração de Shiba Tsukune em estilo oriental, e 152 páginas, das quais 16 são um compêndio que traz informações extras e amplia o cenário do RPG, e cerca de 129 páginas de uma trama bastante ágil e envolvente. Além disso, também acompanha o livro um pacotinho com seis cards – dois novos cards que enriquecem o deck da Fênix, sendo três cópias de cada um.

Robert Denton III, por sua vez, é um contista habilidoso, com muita experiência no cenário e um estilo narrativo apaixonante, que casa perfeitamente bem com a atmosfera dramática de L5R. Sua prosa é poética e delicada, passeando pelos cenários bucólicos das montanhas da Fênix com a contemplação de um mestre zen. Seus personagens são desenvolvidos à maneira rokugani – própria de L5R: em dilemas pessoais que têm camadas, de maneira que quem lê fica com a sensação, bastante verossímil, de que nunca conhecerá aquela pessoa, ali descrita, completamente.

A trama de A Espada e os Espíritos tem o foco principal em Tsukune, a nova campeã da Fênix, mas nenhum, absolutamente nenhum dos personagens que perpassam a narrativa dá a impressão de ser supérfluo. Cada um deles tem tantas dimensões que, na verdade, desde o início temos a impressão de que essa mesma história poderia ser contada da perspectiva de qualquer um deles. E isso tem tudo a ver com L5R!

L5R é sobre o drama samurai. Drama samurai, por sua vez, é sobre renúncia, sobre colocar o dever antes de si mesmo e até da própria vida. Neste sentido, A Espada e os Espíritos é sobre o drama samurai de Tsukune, que precisa abrir mão de seus anseios mais profundos para assumir uma posição dentro do clã, com a qual jamais sonhara nem se sentia merecedora. Assim, enquanto a jovem se debate com os desígnios de um destino que ela não sabe se deve amaldiçoar ou bendizer – e com seus sentimentos fortes por Isawa Tadaka – uma investigação tem lugar; uma investigação em que cada descoberta suscita novas perguntas, sugerindo um mistério de proporções cada vez maiores.

O ritmo segue num crescente bem trabalhado de tensão, em que vai ficando cada vez mais difícil largar o livro; e segue assim até o último ato, quando, no conflito final, perde o fôlego e a extensão desnecessária da resolução acaba provocando uma quebra de ritmo que faz, pela primeira vez, a leitura se tornar cansativa. Talvez isso se dê pela falta de experiência do autor com textos mais longos, uma vez que seu terreno parecem ser os contos, mas também não chega a estragar a experiência, que é, de fato, muito boa no contexto geral. Inevitável, todavia, é que o final acabe perdendo alguma coisa do brilho. Nós dizemos “até que enfim”, quando devíamos estar dizendo “não acredito que isso aconteceu”.

Outra crítica, certamente de importância menor para o valor literário da obra, vai para a compostura de certos personagens, que, pelos rígidos costumes rokuganis (inspirados nas igualmente rígidas tradições do Japão feudal), deviam mostrar mais respeito por figuras políticas de grau hierárquico superior. Ao longo de todo o livro, tive a impressão de que houve o que chamamos no RPG “quebras de cortesia” ou “falhas de etiqueta” que implicariam consequências graves, no entanto foram ignoradas e, no contexto da coisa toda, acabaram parecendo despropositadas.

A despeito disso, A Espada e os Espíritos é um livro bem escrito, divertido, repleto de personagens cativantes e muita riqueza cultural, que os amantes de fantasia e de cultura oriental não vão querer deixar de ler. Espero que a Galápagos Jogos traga novelas de todos os clãs de L5R para o Brasil. Eles são mais uma forma – uma forma excelente, deve-se dizer – de fazer com que mais pessoas tenham acesso ao universo apaixonante de Legend of the Five Rings.    

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

ONEVESST - PROTEJA-SE DE CILADAS VIRTUAIS!


Em agosto deste ano, apareceu para mim uma oferta na forma de um daqueles anúncios do Facebook. A oferta tinha o seguinte nome “cardigã imperador”. Tratava-se, como vocês podem ver na imagem, de um casaco com um estilo diferente, inspirado, talvez, numa algibeira ou num casaco medieval. Como gosto dessas coisas, fiquei seduzido e cliquei para comprar.



O site que fazia a venda desse cardigã imperador era o OneVesst.com. Paguei no cartão de crédito e, no mesmo dia, recebi um e-mail com a confirmação do pagamento. Minha via crucis estava começando...

De acordo com os prazos estabelecidos pelo próprio site, eu deveria receber um e-mail com o código de rastreamento da minha encomenda em até 14 dias. Isso nunca aconteceu. Passados dois meses da data da compra, resolvi entrar em contato com o SAC da empresa para verificar se meu código de rastreio já estava disponível. Qual não foi a minha surpresa ao constatar que o único canal de atendimento que havia era um endereço de e-mail, para o qual escrevi e jamais obtive qualquer resposta.

Estamos em dezembro, eu ainda não recebi nenhum retorno do tal site e provavelmente não vou receber. Uma pesquisa rápida na internet revela números alarmantes (e se eu tivesse feito essa pesquisa antes, teria me poupado do aborrecimento e do prejuízo), são centenas de reclamações no site Reclame Aqui, a maioria não respondida. Existe até um grupo no Facebook, chamado Contra OneVesst, que reúne pessoas que já foram lesadas e esperam alguma forma de reparação ou justiça.

O modus operandi varia pouco. Eles normalmente não enviam código de rastreamento algum, e não respondem as tentativas de contato. Em alguns casos, enviam o código e chegam a responder algumas mensagens, sempre de maneira vaga e insatisfatória. Algumas vezes, o produto a que se refere o código extravia, ou vai parar num lugar completamente diferente do endereço informado (algumas vezes em outros estados). Noutras vezes, a pessoa até chega a receber alguma coisa, geralmente bastante diferente do que comprou. Uma minoria fica satisfeita após, geralmente, seis a oito meses de espera. Mas a infinita maioria não recebe nada, nem resposta, nem produto, nem o seu dinheiro de volta.

Eu descobri, após olhar o site com mais atenção, que eles estão (ou dizem estar) sediados na China. Não há nenhum CNPJ, ou seja, eles não poderiam, legalmente, estar comercializando nada no Brasil. Ainda assim, o site vende em português do Brasil e aceita cartão de crédito nacional. É preciso mais para configurar um golpe?

Em procura ao Procon, uma das vítimas obteve a seguinte resposta:



Ora, mas, repito, o site vende em português brasileiro, para brasileiros, aceitando pagamento em reais. Talvez isto realmente não seja um caso para o Procon, já que, por uma série de entraves legais, não há muito o que eles possam fazer. Mas certamente este seria um caso para a Polícia Federal. Por que, então, nossas autoridades não tomam alguma providência contra estes estelionatários, que vêm aplicando golpes há mais de um ano? Simplesmente porque nosso país tem uma cultura política desgraçada, que enxerga o povo como engrenagem numa máquina que eles operam apenas para benefício próprio, e esta é uma das coisas que tornam o nosso país um dos lugares mais prolíficos do mundo para a aplicação de golpes do todo tipo.

Recentemente, o site OneVesst.com saiu do ar, não sei se retirado por alguma ação das autoridades brasileiras (o que eu duvido), ou dos próprios golpistas, que perceberam que o negócio já estava comprometido, uma vez que o número de pessoas lesadas é realmente enorme e a propaganda negativa deve estar começando a funcionar. Neste segundo caso, que eu, infelizmente, considero o mais provável, o que vocês acham que eles, os bandidos, farão a seguir?

É isto mesmo, vão, certamente, criar outro site, com outro nome, e começar um novo ciclo de vítimas e golpes. É por causa disso que decidi escrever este post. Fiquem atentos! Ao comprar em sites localizados fora do país, você não estará protegido pelo Código de Defesa do Consumidor. Existem empresas idôneas, mas também existem muitos estelionatários. Se a “empresa” informar sede em algum país distante, oferecer apenas um e-mail como canal de comunicação com o cliente, não tiver CNPJ verificável, mas, ainda assim, vender em português e aceitar real como forma de pagamento, NÃO COMPRE, pois é quase certo de ser golpe!

Infelizmente, precisamos nos precaver e tomar todas estas medidas antes de fechar negócio com qualquer empresa online. Agora, calejado, eu procuro saber a reputação da empresa antes de comprar um grampo de cabelo que seja, e se não houver uma forma segura de realizar o pagamento, como Pag Seguro, PayPal ou MoIP, nada feito!  

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

SANTA SARA KALI


Conhecida genericamente como a “padroeira do povo cigano” ou “a santa dos ciganos”, é quase impossível falar dos rhomá hoje em dia sem mencionar Santa Sara Kali.

Completamente desconhecida no Brasil até meados dos anos 90 (exceto pelos poucos que haviam lido Tradições Ocultas dos Ciganos, de Pierre Derlon, cuja primeira edição brasileira foi publicada em 1977, pela Livraria Bertrand), a santa foi popularizada pela novela Explode Coração (Rede Globo, 1995-1996). A partir daí, tornou-se um ícone, uma espécie de fetiche cultural, onipresente nas festas temáticas, autoproclamadas ciganas, e nos altares domésticos daqueles que se devotam às entidades espirituais ciganas.

Mas o que há de verdade nisso? Quem é, ou foi, Santa Sara? Ela é realmente a padroeira dos rhomá?

Vamos começar pela última pergunta, que tem a resposta mais imediata – quem visitar a pequena cidade francesa de Saintes-Maries-de-la-Mer, na Camargue, poderá ler, na última frase da plaquinha do lado de fora da igreja das Santas Maria Salomé e Maria Jacobé, a seguinte inscrição: dans la crypte: statue de Sainte Sara patronne des gitans, “dentro da cripta: estátua de Santa Sara, padroeira dos ciganos”. No entanto, melhor seria dizer que Sara é UMA padroeira dos rhomá; daqueles que se alinham, de alguma maneira, com as crenças católicas, é claro.

Por que dizemos UMA padroeira, com tanta ênfase no UMA? Porque Santa Sara é aquilo que chamamos aqui no Brasil de “santa de culto local”. É como a Nhá Chica ou Santa Anastácia, que contam com grande número de devotos em determinada região, mas não foram canonizadas, ou seja, não foram oficialmente reconhecidas pela Igreja Católica, e não são muito conhecidas fora daquela região.

É claro que o reconhecimento do Vaticano não é algo imprescindível para os devotos de qualquer santo, muito menos para os devotos rhomá, que, como já dissemos, não têm muita consideração pelas autoridades religiosas dos gadjé. O fato, entretanto, é que Sara não é muito conhecida fora da Camargue, assim como a Nhá Chica não é muito conhecida fora do estado de Minas Gerais. É uma santa de devoção, principalmente, dos manush e dos calé que vivem no sul da França. Sua devoção atinge até o município espanhol de Girona, próximo aos Pirineus. Para além disso, os calé que vivem em outras regiões da Espanha têm outras padroeiras, Como a Virgen de La Macarena e a Virgen del Rocío. No Brasil, considera-se Nossa Senhora Aparecida a padroeira dos ciganos, e a imagem dela é muito mais frequentemente encontrada nos lares rhomá do que a de Santa Sara.  

Por que, então, todo o frisson acerca de Santa Sara? Tudo começou com a já mencionada novela, e foi levado adiante por um sem-número de pessoas que literalmente pegaram carona no sucesso midiático. De repente, Santa Sara, ela mesma uma santa desconhecida e exótica, estava na TV, no rádio e nos livros; tornou-se portadora de toda a carga simbólica de um povo exótico, com uma espiritualidade exótica.

É bem verdade que algumas vezes a devoção fervorosa – e um tanto forçada – a esta santa chega a parecer uma condição imperativa para a afirmação da identidade romani aqui no Brasil. Você dificilmente encontrará um evento temático em que não haja um simulacro de altar para Santa Sara. Todos os anos, quando chega o dia 24 de maio, inúmeros lugares, desejosos de ostentar uma autenticidade étnica que não possuem, promovem “slavas” ao custo de um ingresso, ainda que os responsáveis por isso jamais tenham estado em uma slava de verdade e não façam a mínima ideia do que estão fazendo.

Nada será considerado “cigano” o bastante se não tiver uma imagem enfeitada de Santa Sara no meio. Lamentavelmente, ela se tornou a referência dos que não têm referência; um símbolo esvaziado de conteúdo, um recurso evocativo e estético.

Isso significa que não há pessoas e famílias rhomá sinceramente devotas de Sara? É claro que não. Eu mesmo sou muito devoto de Sara e minha família se reúne todos os anos para um bródio, que é uma das formas como os calé se referem às suas festas, em homenagem à Negrinha, que é como nós a chamamos, carinhosamente. Nada disto significa, também, que pessoas não-ciganas estão de alguma forma impedidas de nutrir sincera e honesta devoção por Sara. O fato de uma parte do nosso povo tê-la escolhido (ou ter sido escolhida por ela) não faz dela nossa propriedade. Aliás, a esta altura já deveria estar claro que os rhomá não acreditam que o espiritual, o divino e sagrado, como a própria Terra, sejam propriedade de ninguém.

Mas quem é, afinal, Santa Sara? Para responder a esta pergunta, precisamos falar de um fenômeno religioso que existe no mundo todo, mas é muito recorrente na Europa – as Virgens Negras. As Virgens Negras são estátuas femininas, invariavelmente de pele escura, que aparentemente representam a Virgem Maria, e cuja origem é envolta em mistério. Um exemplo bastante familiar ao povo brasileiro é o de Nossa Senhora Aparecida, cuja imagem surgiu, inicialmente sem a cabeça, na rede de um pescador. Outro exemplo é La Moreneta, a Virgem de Montserrat, que, segundo consta, surgiu de dentro de uma rocha atingida por um relâmpago no Montserrat, na Espanha. Santa Sara é também uma das virgens negras.  

Ninguém sabe ao certo como sua imagem foi parar naquela igreja, é como se sempre tivesse estado lá. A imagem original era um busto simples, que hoje está guardado no museu da cidade. A respeito dela, um número considerável de lendas foi criado. Alguns contam que era uma escrava egípcia, outros que foi uma sacerdotisa Lídia; há quem jure que era uma cigana ou até mesmo filha de Maria Madalena e Jesus.

A história da barquinha é a mais famosa e a festa anual de Saintes-Maries-de-la-Mer gira em torno dela. Em uma versão, Sara vinha na barquinha, com José de Arimatéia e as três Marias, Madalena, Salomé e Jacobé. Em outra, mais difundida na Camargue, ela já estava lá, quando teve uma visão sobre a chegada das Santas Marias e foi para a praia esperá-las. É por causa disso que a procissão de Sara acontece um dia antes da das Santas Marias, no dia 25.

Historicamente, porém, as datas não coincidem. Sabemos que não é possível falar de ciganos, ao menos não de rhomá, antes do século XI, o que anula efetivamente a possibilidade dessa Sara da lenda ter sido uma cigana. O mais antigo registro que existe de uma Sara naquela região é do século XVI e diz respeito a uma mulher que teria atravessado Camargue a pé, mendigando para ajudar uma pequena comunidade cristã que enfrentava grandes dificuldades.

Como começou o culto à Santa Sara em Saintes-Maries-de-la-Mer, ninguém sabe dizer. Tampouco existe alguma explicação verificada e irrefutável para o fato de os rhomá daquela região a terem adotado como sua santa padroeira. Conjecturas há, aos montes. Para alguns, o busto que havia na igreja pode ter sido não de uma santa, mas uma homenagem a esta Sara andarilha, capaz de atravessar quilômetros a pé para ajudar sua comunidade religiosa. O fato dela ser uma caminhante, que atravessava cidades mendigando, teria levado à sua associação com os rhomá.

Pessoalmente, acredito que a explicação, embora absolutamente desnecessária, seja mais simples. Sara figurava em uma cripta, que está no subsolo da igreja, à margem de seu espaço principal, exatamente como os rhomá estão quase sempre a margem do espaço principal das cidades. Ela não está apenas à margem, também está abaixo, no subsolo, de onde algumas de nossas lendas dizem que vieram os nossos mais antigos ancestrais. Não obstante, ela tem a pele escura, daí chamá-la kali, em romani, que significa “negra”. Hoje é bastante comum encontrarmos rhomá de pele bem clara, alguns até louros, de olhos verdes ou azuis, mas nosso fenótipo original – que certamente tinham os nossos antepassados ao chegarem à Europa – é a pele, os cabelos e os olhos bem escuros. Então é provável que os manush e os calé do sul da França apenas tenham visto em Sara alguém que era como eles, que os entendia e que poderia, desta forma, melhor interceder por eles junto a Duvvel, o criador.        


Não é demais lembrar que não existe uma religião romani. O culto a Santa Sara é católico, mesmo que possua muitos aspectos sincréticos, o que não é de modo algum estranho ao catolicismo. Da mesma forma, são católicos todos os cultos aos santos padroeiros que os rhomá adotam em outros lugares do mundo. Há rhomá de outras denominações religiosas, e até mesmo rhomá que não têm religião alguma para quem falar em santos padroeiros, seja Sara ou qualquer outro, não faz qualquer sentido. Eles não são menos rhomá por causa disso. 

domingo, 30 de julho de 2017

HINO A PROMETHEU



*Com fumigação de funcho.

Prometheu, benfazejo titã, o rebelde divino; visionário de misteriosas veredas, desafiador que jamais se conforma; tu, que ousaste se opôr à onipotência de Zeus Soberano e assim se tornou a Sua justa medida; tu, que pelo teu ato de suprema desobediência, uniu outra vez o Céu e a Terra, há muito separados pelo Tempo, no âmago dos homens mortais. 

Nós te reverenciamos, Sagrada Consciência, Grande Ancestral, que pelo doloroso sacrifício fez de nós faíscas efêmeras no fogo eterno dos Deuses, e, antes de nos perder ou salvar, deu-nos o presente mais valioso - arbítrio sobre o nosso próprio caminho.

Seja sempre bendito, virtuoso amigo e benfeitor da humanidade. Propicia estes ritos, infunde em nossos espíritos a tua ousadia, abençoa-nos com boa saúde e a clareza de mente necessária para encontrar e trilhar caminhos de realização e felicidade. 


terça-feira, 28 de março de 2017

AFRODITE



Todas as vezes em que escutamos falar de Afrodite, inevitavelmente nos vêm a cabeça associações com misteriosos perfumes, tecidos diáfanos, sofisticados leitos, e um milhão de detalhes típicos dos ambientes da sedução. Quase nunca nos vem à mente qualquer imagem ligada à cozinha, a tal ponto que se chega a dizer que ela não pertence ao universo de Afrodite!

Durante muito tempo, a cozinha esteve associada à mulheres que não possuem as manhas da sedução e que transitam na esfera das divindades maternais, redondas e desprovidas de atrativos físicos : tais como Deméter e Héstia.

Eu mesma, durante um bom tempo de minha vida, acreditei que a cozinha não era o lugar de Afrodite e vesti outras deusas com trajes toscos, aventais sujos de ovos e aroma de cebola como perfume. Como um ser apático e desprovido de paixões, deixei que meu corpo crescesse como um bolo cheio de fermento, acreditando que estava em paz com Deméter e Héstia. Afinal, os livros me diziam que elas eram exatamente como eu as havia vestido : deusas "do lar" ! Ou seja, mulheres cujo desejo mais profundo era apenas a satisfação da família e o reconhecimento do marido e dos filhos : a representação exata daquilo que se costuma chamar por "dona de casa".

Assim, por uma boa dezena de anos, enterrei-me dentro da cozinha como a mais genuína espécime "do lar". Adquiri um bom punhado de quilos, deformei meu corpo e, como resultado desta nefasta metamorfose, passei a cobrar dos outros habitantes da casa um comportamento que eu mesma, em sã consciência, não saberia desempenhar. Aos poucos fui me transformando numa mulher amarga, sem qualquer otimismo, achando que a vida se resumia naquele pequeno mundo que eu havia criado. Um mundo amorfo, repleto de obrigações neuróticas, sem nenhum projeto de auto-satisfação e excludente de todo prazer. Claro que vez por outra eu me enganava, atribuindo ao prazer o atributo do sacrifício. Fingia que era feliz por estar desempenhando tão bem o papel da grande mártir da família!

Dentro de mim, uma semente germinava sem que eu me desse conta. Uma semente colocada por Héstia e Deméter, as deusas que eu pensava estar honrando. Estas, preocupadas com o mal entendido que eu criei e já exaustas de enviar mensagens que eu teimava em não querer compreender, optaram por plantar, em mim, uma deusa que eu havia renegado há muito tempo : Afrodite, a Senhora que gerencia o pulsar do feminino!

Ao longo do período em que retive a pequena semente germinando, estranhos fatos aconteceram. Fui irresistivelmente atraída para o universo estético de Afrodite. Passava horas admirando uma roupa na vitrine, e, quando inalava algum perfume, elétricos arrepios espalhavam-se por meu corpo. Meus sonhos me traziam de volta aquela Márcia que havia sido um dia...Até as antigas fotos saiam de seus esconderijos e se revelavam outra vez aos meus olhos!

Preocupada com esse repentino pipocar de inexplicáveis acontecimentos, recorri mais uma vez à Lua: divina senhora que orienta as mulheres em toda e qualquer aflição. Me preparei devidamente para um encontro íntimo com a lua, seguindo todos os ensinamentos de minha avó.

Preparei um banho de lírios brancos, acendi quatro velas prateadas em meu altar e queimei incenso de rosas brancas por toda a casa. Assim, depois de ter tomado o banho e deixando-me secar sem o auxílio da toalha, finalizei os preparativos : ungindo óleo de datura na região dos pulsos, nuca, atrás dos joelhos, virilha e umbigo. Depois, deitei-me na cama e chamei pela Senhora.

Não passaram cinco minutos, quando percebi uma presença dentro do quarto. Habituada com as inúmeras interrupções, a que toda dona de casa está sujeita, pensei que Daniel, meu filho, tivesse entrado no quarto para me pedir qualquer coisa. Preparei-me para uma possível pausa no meu ritual e abri os olhos, pronta para resolver mais um problema. No instante em que abri os olhos, ouvi nitidamente o som de alguns risos. Nesse instante, me dei conta de que não era meu filho que estava no quarto!

Mesmo acostumada ao estreito contato com seres de outras dimensões, minha primeira reação é sempre de medo. Começo a sentir meus joelhos bambos e a voz desaparece num piscar de olhos. Um frio intenso de mim se apodera e fico por algum tempo tremendo e batendo o queixo. Depois, pouco a pouco, vou me recuperando e "desenrolo uma prosa", como bem dizia minha avó.

Desta vez não foi diferente. Passei por todos os estágios do medo, e, após ter cumprido este rosário de sintomas, procurei saber quem se encontrava no quarto. Abri bem olhos e me deparei com quatro mulheres. Todas bonitas e incrivelmente serenas.

A primeira possuía a beleza selvagem das mulheres quando estão apaixonadas. A segunda, uma beleza mais tranqüila, como aquela que as mulheres mostram quando tomam os rebentos nos braços pela primeira vez. A terceira, exibia a beleza radiante das mulheres quando colocam na mesa um alimento recém saído do fogão. E, por último, a quarta, aquela que trazia em si todos os atributos das outras três mulheres.

Ainda tonta com aquelas presenças, fui subitamente levada a sair deste estado, justamente no momento em que a primeira mulher de mim se aproximou e disse : " Por onde tens andado? Que caminhos tortuosos te fizeram de mim se esquecer? Eu, Afrodite, aquela que modelou teus desejos!".
Após ter pronunciado tais palavras, Afrodite desapareceu, envolta numa intensa fumaça rosada. No quarto, só ficaram as outras mulheres. Um silêncio profundo perdurou por um bom tempo, até que as três mulheres me conduziram ao centro do quarto e me rodearam. Eu não sabia o que fazer, mas percebia que seria levada à realização de um ritual sagrado. Por isso, purifiquei meu corpo, mentalizando um enorme ovo de prata, que despejava uma chuva de partículas azuis sobre minha cabeça.

Quando já me encontrava devidamente purificada, a quarta mulher, aquela que possuía a beleza das outras três, disse-me que havia gravado nas estrelas um outro caminho para mim, e que eu não soube identificar seus sinais, tomando assim uma outra direção. Após dizer isto, chamou com um delicado gesto a segunda mulher. Esta, ao mirar meu rosto, trouxe-me a lembrança de Daniel aninhado, pela primeira vez, em meus braços. Percebendo minha profunda emoção, a mulher me disse estas palavras: " Eu senti a mesma coisa quando Perséfone me veio aos braços pela primeira vez!".

No momento em que escutei suas palavras, me dei conta que Deméter estava à minha frente. Mas... não era possível! Não era a representação feminina que eu atribuía à Deméter! Sua beleza nada tinha a ver com o "avental todo sujo de ovo", os olhos irritados pelas cebolas e a lamúria solitária das mães! À minha frente, encontrava-se uma mulher centrada e em perfeita harmonia com a sua condição.

Percebendo meu espanto, Deméter sorriu e me disse : " Eu já estou habituada com a leitura equivocada da minha história. Você foi mais uma a interpretar de maneira errada. Na história não está dito que eu sou descabelada, negligente com meu próprio corpo e tampouco uma mãe possessiva e neurótica! Você leu a história e adequou-a aos seus próprios problemas. Criou uma outra Deméter e passou a acreditar que ela era eu.".

Deméter estava com a razão. Não havia nada na história que afirmasse que ela era desprovida de atrativos, que era uma mulher amargurada, chantagista e fechada em seu próprio sofrimento. Decididamente, eu havia interpretado mal a história e criado um novo arquétipo!

Ciente daquele momento em que me entregava à confirmação de meu engano, a outra mulher se aproximou e disse : " Quem foi que lhe falou que sou apenas uma encarregada do almoxarifado?". Era Héstia, a deusa que eu pensava somente gerir as provisões da casa.

A constatação do terrível engano que cometi, levou-me à uma tristeza insuportável. Deparei-me com os anos que desperdicei, representando um personagem que não tinha a menor correspondência com as divindades que eu pensava estar honrando. Constatei o péssimo estado em que me encontrava : fechada para os meus próprios desejos e necessidades de mulher. Descobri que estava assassinando minha condição feminina, tornando-me um ser amargo e sofredor. Vi, estampado em minha face, o futuro que me aguardava : eu seria uma mulher que faria inumeráveis cobranças e exibiria o meu sofrimento sem o menor pudor, esperando que o outro comigo resgatasse uma dívida que eu lhe havia imposto.

Mirei meu corpo e nele vi as mutilações que se acumularam ao longo de tanto tempo. Cicatrizes acolchoadas por uma gordura doentia e patológica. Em meu corpo não mais havia a presença da divindade, nele não existia o contorno sutil da Grande Mãe, e agora eu era apenas uma massa de carne. Nada mais!

Sabedoras do meu desespero, Deméter e Héstia revelaram-me uma maneira de reverter a maldição, aquela que eu mesma me lançara. Eu teria que chamar por Afrodite, pois à ela pertenciam as palavras que reverteriam o tal malefício.

Seguindo o conselho das duas, concentrei meu coração na busca de Afrodite e roguei para que ele a trouxesse até mim. Com a boa vontade própria dos corações, ele saiu prontamente em busca da Deusa, deixando-me no sono que antecede os nascimentos. Não sei, com certeza, quanto tempo se passou até o momento em que fui despertada por um beijo de Afrodite. A Deusa estava outra vez no quarto, disposta a me dar mais uma chance. Ao seu lado, estavam Deméter, Héstia e a quarta mulher, que até agora eu não tinha a mínima idéia de quem era.

Falavam, entre si, uma língua desconhecida que imaginei ser o grego arcaico. Por algum tempo fiquei excluída do grupo, impossibilitada pela língua, até que elas se deram conta do que se passava. Héstia, de todas a mais polida, desculpou-se em nome do grupo. Então, restabelecida a comunicação, Afrodite pediu-me para que eu me despisse.

O pedido da deusa deixou-me apavorada. Como eu poderia expor meu corpo mutilado para mulheres tão belas? Como poderia expor a montanha de gordura que erigi no decorrer dos anos? Não! Decididamente aquele era um pedido que eu não podia satisfazer!

Notando o meu constrangimento, Afrodite falou-me para que eu não tivesse vergonha, pois meu corpo continuava sendo um templo e que ele ainda guardava todas as tatuagens sagradas. Só que eu me esquecera de honrá-lo e nele já não mais me recolhia para extrair equilíbrio. No entanto, se eu não me apavorasse, já que sempre existe um caminho de retorno, este templo estaria aberto e ávido por me receber.

Tranquilizada pelas sábias palavras de Afrodite, despi-me sem nenhum constrangimento. Naquele instante, eu já não sentia vergonha do meu corpo, pois sabia que tomara o caminho de volta ao meu espaço sagrado.

Já despida, Afrodite e as outras rodearam-me, entoando antigos cantos. À medida em que cantavam, espalhou-se um delicioso aroma de rosas por todo ambiente. Senti uma tonteira sutil e deixei-me com a sensação de que me transformara numa pluma, o que me deu a impressão de que eu poderia alçar voo, se assim o quisesse.

Algum tempo transcorreu, sem que me desse conta do quanto havia passado. Até que fui retirada deste entorpecimento, sentindo um forte formigamento no corpo, como se minúsculas descargas elétricas despejassem energia sobre a camada espessa das gorduras.

Enquanto sentia meu corpo bombardeado por tal acúmulo de energia, fui tomada por um jato de resoluções que inundavam o meu cérebro insistentemente. Decidi, então, que não mais abusaria do açúcar, daria um tempo nos carbohidratos e dedicaria uma parte do dia para movimentar o meu corpo, tratando-o corretamente. Esqueceria, por uns tempos, dos refrigerantes e me dedicaria aos sucos naturais.

Afrodite, como se estivesse lendo meus pensamentos, retribuiu-me com um riso franco e malicioso. Por fim, disse-me ao pé do ouvido: "Estarei ao seu lado de hoje em diante.".
Depois de se comprometer com minha jornada futura, Afrodite introduziu a quarta mulher, apresentando-a da seguinte maneira: "Esta é a Lua, a Deusa que é feita de uma célula de cada mulher. Ouça com atenção tudo aquilo que ela lhe falar, pois sua voz representa a voz de todas nós. Seu canto é a melodia de todas as mulheres quando fazem amor, quando limpam a casa, quando criam os filhos, quando trabalham, quando sonham, quando brigam, quando blasfemam, quando perdoam e quando enfeitiçam com suas obras. Nunca se esqueça de suas palavras e guarde-as bem guardadas no coração.".

A Lua, que até ali permanecera calada, aproximou-se com passos de bailarina e, com voz de oceano, me disse as seguintes palavras:

Eu sou Senhora do sangue sagrado
a meretriz dos sucos vaginais.
Sou aquela que encarna o pecado
e habita as grotas infernais.
Fui eu que te dei o desejo
que desenhei no teu corpo
todos os riscos do sexo.
Fui eu que te embalei nos braços
e disse a todas que eras mulher.
Sou eu que ainda te guio
nos descaminhos que inventaste.
Sou eu que sustento as violações
de um corpo que mutilaste.
Tu, que és parte de mim mesma
esqueceste o lugar que te gerou.
Tomaste um rumo avesso e contrário
e renegaste quem te criou.
Mas tu és lua, mulher e loba
e serás assim até o instante final.
Não serás ferida,
porque és cura.
Não serás dor,
porque és prazer.
Não serás culpa,
porque és vida.
Não serás certeza,
porque és abismo!

Quando a última palavra do poema foi enunciada, senti o chão se abrir aos meus pés e numa fração ínfima de tempo me vi engolida por uma fenda. Estranhamente não senti medo e deixei-me levar como uma pena é levada pelo vento.

À medida em que ia me precipitando no abismo, vi passar, à minha frente, os últimos anos de minha vida. Me vi redonda e pesada, grávida de Daniel e amedrontada pelas circunstâncias. Experimentei os sabores da geladeira noturna e afoguei minhas preocupações em bons nacos de bolo. Depois, me vi na gélida sala da maternidade e tremi de frio e chamei pelo calor das mulheres que não estavam presentes. Chamei por minha avó, parteira desde os quinze anos... e não fui ouvida. Daniel nasceu cercado por médicos, num dia em que os homens, aflitos, aprimoram sua condição masculina: o dia da decisão da Copa do Mundo!

Lembrei-me do meu primeiro pedido depois de parir: um enorme sanduíche de queijo e presunto! No instante em que me vi outra vez vivenciando as mordidas que dei no sanduíche, percebi o que a comida havia representado por todos aqueles anos. Eu não queria um parto assistido e realizado por homens! Como feiticeira, eu sabia muito bem que este momento pertence somente às mulheres e só elas o podem compartilhar. Como feiticeira, eu sabia perfeitamente que minha energia seria afetada, se me permitisse ser violada por outras mãos que não o de outras mulheres. Compreendi, então, que a fome absurda que me corroeu desde o período da gravidez, nada mais era do que uma forma do meu corpo expressar o seu inconformismo. Assim, toda vez que comia, era como se eu dissesse que não estava centrada e feliz!

Quando entendi esta lição, me vi outra vez em meu quarto, no solo. As quatro mulheres sorriam entre si, como se estivessem cientes de tudo que se passara...

Afrodite, a deusa que reneguei por tanto tempo, veio ao meu encontro, dizendo que o feitiço estava desfeito e que de agora em diante eu devia voltar ao meu verdadeiro caminho. Tudo dependeria de mim mesma e daquilo que eu construísse. Elas estariam todas ao meu lado, mas não poderiam interferir em meus atos. Acabando de dizer tudo isso, deu-me um longo abraço e se retirou do quarto, seguida pelas outras.

No dia seguinte, ao acordar, tomei a primeira providência. Fui ao banheiro e, antes de lavar o rosto, subi na balança que tanto evitava. Anotei o peso e fui para o café. Não o adocei com açúcar e dispensei o pão habitual. Retomei os velhos hábitos da adolescência e saí para uma longa volta de bicicleta.

Como as deusas estavam ao meu lado, pude sentir que mexiam os pauzinhos. Logo encontrei Paula, uma amiga, dona de um restaurante macrobiótico. Conversamos por um longo tempo sobre alimentação, obesidade e a condição feminina. Ao fim da conversa, eu já havia me decidido: adotaria a macrobiótica como primeiro passo para a purificação de meu corpo.

Desde então encontro-me outra vez no caminho. Nunca mais transferi meus sofrimentos para a comida. Redescobri o encanto de seduzir e ser bela para mim mesma.


Reencontrei o equilíbrio perdido e hoje posso mesmo dizer que estou muito feliz! Vez por outra, quando me encontro na frente do espelho, ouço a risada de Afrodite. E parece que a escuto, dizendo, maliciosa: "Segue em frente, menina!".

(Texto de Márcia Frazão, extraído do livro: A Panela de Afrodite)

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

ARETÉ - VIRTUDE, COMPETITIVIDADE E EXCELÊNCIA


Aracne era uma talentosa tecelã da Lídia. Contam os antigos versos que os pastores deixavam seus rebanhos, os atletas abandonavam os ginásios e até as ninfas saíam dos rios, bosques e fontes para ver o seu trabalho. Tamanha admiração pública acentuou a vaidade de Aracne, ao ponto de ela começar a afirmar que suas mãos teciam melhor que as de Athená, deusa dos ofícios, patrona da tecelagem.

Desafiada, Athená assumiu a aparência de uma velha senhora e veio para a terra, onde disputou com Aracne em um desafio que se estendeu por muitos dias. No termo desses dias, estavam prontas duas maravilhosas tapeçarias nas quais não era possível encontrar nenhum defeito. No entanto, ao passo que Athená bordara as façanhas e conquistas dos Deuses, Aracne resolveu bordar suas vergonhas. Isto fez com que a tapeçaria de Athená, pela virtude da sua obra, fosse considerada superior. Os deuses nunca tiveram a pretensão de ser perfeitos, mas é virtuoso e benéfico lembrar de alguém mais pelos seus acertos do que pelos seus erros.

Aracne, muito vaidosa, não aceitou a derrota que lhe fora imposta. Desfazendo sua própria obra, enforcou-se com os fios que outrora havia usado para tecer. Athená, compadecida, socorreu-a antes do último suspiro, transformando Aracne no animal que hoje conhecemos como aranha, sempre empenhada numa obra de tecelagem sem defeitos, mas por quase todas as pessoas considerada desagradável, um símbolo de sujeiras e impureza.

Em outra ocasião, Mársias, que havia encontrado uma flauta que Athená havia criado e da qual se desfizera, tornou-se um músico tão perfeito que encantava os ouvidos de mortais e imortais. Envaidecido das próprias habilidades, ele ousou desafiar Apollo, deus patrono das artes, em cujo cortejo caminham as próprias musas, para um duelo em que o vencedor poderia fazer o que quisesse com o perdedor.

Mársias tocou linda e profundamente, mas Apollo, com sua lira dourada, era mesmo insuperável. Como resultado da peleja, Mársias, o perdedor, fora pendurado em uma árvore e esfolado vivo...
Apollo, sempre excelente, pode, contudo, ser bastante cruel... E foi a sua crueldade que o fez desafiar o próprio Eros, filho alado de Afrodite, fonte de todo sentimento. Um dia, enquanto praticava com seu arco prateado, o filho de Leto acertou o talo de uma maça em uma macieira que estava muito distante. Eros, que havia assistido a demonstração maravilhado, se empolgou. Colocando-se ao lado do Divino Flecheiro, disparou uma de suas setas e logrou acertar a mesma maçã antes que ela caísse ao chão.

Apollo não gostou. Disse ou Infante Divino: “Afasta-te e me deixa praticar em paz, que o arco não é brinquedo para as mãos de uma criança.” Eros, aborrecido, respondeu: “É certo que tuas flechas são infalíveis. As minhas, pois, também nunca erram o alvo.” E, dizendo isso, o deus do amor se afastou, sacando duas flechas de sua aljava – uma de ouro, que infundia o puro e verdadeiro amor, outra de chumbo, capaz de causar irreversível aversão. A seta dourada mirou no coração de Apollo. A cinzenta, saturnina, o da ninfa Dafne, que passeava ali por perto. Apollo, tomado de um amor irresistível, cortejou a ninfa que, tomada de aversão irresistível, fugiu dele até se transformar em um loureiro...

O que esses mitos ensinam? Muitas coisas... A linguagem metafórica e poética dos mitos é capaz de falar sobre muitas verdades em histórias simples como essas. Vejo muitas pessoas falando sobre a arrogância, algumas atribuindo-a aos próprios Deuses. Isso certamente é uma possibilidade. Para mim, no entanto, esses mitos falam sobre virtude (ἀρετή). A virtude, que, mais do que fazer o que faz com excelência, é capaz de, em última instância, reconhecer-se no outro.

Nenhuma dessas passagens, afinal, teria acontecido de maneira tão terrível se, pela medida da comparação, um personagem não tivesse se considerado melhor do que o outro. Para essa medida, os antigos helenos tinham um termo, o único ato humano realmente desprezado pelos Deuses – húbris. Húbris significa desmedida. Desmedida é colocar as coisas fora de seu lugar.


Muitas sociedades humanas, como a helena, foram, e são, extremamente competitivas. Mas a competitividade, em si, não é uma coisa ruim. A competitividade ruim, creio que todos conhecemos. A competitividade boa, com a qual devemos nos familiarizar, é aquela que, pelo exemplo da excelência do outro, nos leva a buscar a nossa própria. E excelências, uma vez excelentes, nunca se comparam na expectativa de estabelecer superioridade. Pelo contrário, no momento em que incorre neste vício, a desmedida, a excelência se torna menos excelente e tropeça na armadilha de Éris: a vaidade. 

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

FIDEL CASTRO E OS CIGANOS




Em 2001, foi realizada em Durban, África do Sul, a Primeira Conferência Mundial contra o Racismo convocada pelas Nações Unidas. Estiveram presentes trinta presidentes e chefes de governo de todo o mundo e 166 ministros das Relações Exteriores, serviços sociais ou de trabalho. Além disso, como expectadores, estavam presentes dezenas de ONGs, bem como as organizações mais representativas de movimentos sociais e direitos humanos do planeta. A delegação oficial espanhola foi chefiada pelo Ministro do Trabalho e dos Assuntos Sociais, Juan Carlos Aparicio, bem como o Secretário-Geral de Assuntos Sociais, Concepción Dancausa. Da mesma forma, na condição de expectadores, o ministro decidiu convidar outras pessoas entre as quais estavam Sauquillo, o Professor Tomas Calvo Buezas e o presidente da Unión Romani para acompanhar o desenrolar da Conferência.

Foi assim que eu vi o início da Conferência:

Cheio de entusiasmo cheguei a Durban e creio que fui um dos primeiros a instalar-me no Centro Internacional de Convenções, a fim de obter um bom lugar para ver e ouvir de mais perto possível a maior parte dos líderes mundiais.

A aparência do plenário da conferência era impressionante. Ela foi dividida em três partes. A primeiro foi uma espécie de palco montado acima do nível do chão. No centro do palco, havia uma mesa decorada com a bandeira da ONU. Depois sentou-se para presidir a cerimônia de abertura o Sr. Thabo Mbeki, Presidente da República da África do Sul e o então Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan. E à direita, sobre outras plataformas que se alinhavam elevadas como em uma escada, foram colocadas as cadeiras mais vistosas e elegantes, onde se sentaram os chefes de Estado que naquele momento estavam na cidade. Foi aí que eu vi, pela primeira vez, Fidel Castro, Yasser Arafat, e o resto das personalidades que ocupavam os lugares de privilégio.

A segunda divisão do salão, que começava aos pés do palco, era destinada aos representantes Oficiais dos 160 Estados presentes na Conferência. Cada delegação teve uma pequena mesa sobre a qual havia um grande cartaz com o nome do país que devia ocupar aquele lugar, e, imediatamente atrás da mesinha, quatro cadeiras, duas na frente e duas atrás, vestidas com um tecido vermelho vistoso. Imediatamente eu vi a que correspondia à Espanha e esperei ansiosamente a chegada de nossos representantes oficiais.

A terceira parte do salão, onde eu estava, foi reservada para os expectadores credenciados pelos respectivos governos. Neste espaço não havia lugar designado e todos poderiam sentar-se onde achassem melhor. A separação entre os expectadores e os ministros consistia numa faixa de cerca de quatro metros de largura sobre a qual foram colocados uma série de suportes verticais de um metro de altura, devidamente separados. Esses suportes serviam para segurar um grosso cabo azul entrançado que os ligava uns aos outros por um gancho na parte superior das colunas separadoras. Nesta faixa, havia vários policiais elegantemente uniformizados, que, suponho, estavam ali para garantir a separação entre o espaço dos senhores ministros e o dos demais.

O ministro espanhol não aparecia em parte alguma.

Em poucos minutos o salão estava lotado. As grandes personalidades tomaram seus lugares e os ministros, acompanhados por seus assessores, foram ocupando as mesinhas a eles destinadas. Mas eu comecei a ficar nervoso quando vi que já não faltava mais ninguém e a mesinha reservada para a delegação oficial espanhola continuava vazia. Por fim, momentos antes de o Secretário-Geral das Nações Unidas anunciar o início da conferência, a delegação espanhola entrou e ocupou seus lugares. Foram os embaixadores da Espanha em Joanesburgo e para as Nações Unidas e um funcionário do Ministério. Mas eram apenas eles três. Faltava o ministro, cuja cadeira permaneceu vazia.

A solenidade de abertura começou e eu ouvi atentamente as intervenções de tantas e importantíssimas personalidades. Devo dizer que, logo de início, o Secretário-Geral da ONU advertiu que seria muito rigoroso na gestão do tempo concedido aos oradores que seria o seguinte: os senhores presidentes e Chefes de Estado disporiam de dez minutos e os senhores ministros de cinco minutos cada um.

Mas a sessão continuava, o tempo avançava e o ministro espanhol não chegava. Meus olhos permaneceram fixos em sua cadeira vazia. Assim, terminaram de falar as mais altas personalidades, e foi então que Koofi Annan deu a palavra aos ministros presentes, advertindo-lhes de que seria muito rigoroso na administração do tempo a eles destinado. Então, dirigindo-se a Assembleia, ele disse:

— Senhores ministros que desejam fazer uso da palavra no próximo turno, manifestem-se em voz alta pondo-se em pé.

Meu humor era o de um vulcão em erupção. O ministro espanhol não chegava e a Espanha perderia a oportunidade de marcar a sua posição sobre o racismo e a discriminação em uma ocasião irrepetível. E começaram a ouvir-se as vozes dos representantes oficiais dos Estados manifestando o seu desejo de falar:

— Canadá, disse o ministro norte-americano; Letônia, Filipinas, Cuba, México. Foram dez os ministros que desejaram intervir. E o nosso ministro não apareceu. Eu esperava que algum dos embaixadores levantasse a voz em nome do nosso país, a fim de dar tempo ao nosso ministro que ainda não havia chegado. Mas eles não o fizeram. E naquele momento eu tomei uma decisão ousada sem medir bem suas possíveis consequências. Levantei-me rápido e pulei o cordão azul que separava os expectadores dos representantes oficiais. Os policiais próximos ficaram tão surpresos que não foram capazes de agir para impedir a corrida rápida com a qual cheguei à mesa que comportava o cartaz do nosso país. Sentei-me na cadeira reservada para o nosso ministro e, a partir dela, dirigindo-me a presidência da Conferência, eu disse:

— Espanha!

Eu tremia como as folhas das árvores. Do fundo do meu coração, eu pedi a Deus para que o ministro aparecesse, para que pudesse fazer uso da palavra quando fosse chamado pela tribuna. Os membros da delegação me disseram que o avião em que vinha [o ministro] para a África do Sul estava atrasado e que também esperavam que, a qualquer momento, ele poderia chegar. No entanto, devo dizer que, embora eles tenham me tratado com respeito, me advertiram de que meu comportamento poderia me trazer consequências muito graves; que eu havia feito uso de uma prerrogativa que não era minha e que falar em nome da Espanha, quando não se tem a legitimidade ordinária para fazê-lo, poderia ser um delito penalmente imputável.

— Por Deus, por Deus, que apareça o ministro – eu pedia do fundo do meu coração. Mas o ministro continuava sem aparecer quando trovejaram em meus ouvidos as palavras do Secretário-Geral das Nações Unidas, dizendo:

— Tem a palavra o senhor Ministro do Trabalho e dos Assuntos Sociais, representante do Reino da Espanha.

E eu me levantei e comecei a falar, embora meus companheiros acidentais de mesa tenham me advertido para que medisse bem minhas palavras no intuito de não provocar nenhum tipo de conflito diplomático. 

Eu fiz o meu discurso. Comecei dizendo que eu não era o Ministro do Trabalho e dos Assuntos Sociais da Espanha, mas, em sua ausência, acreditava que poderia expor na Conferência a realidade do meu país e do mundo no que diz respeito aos tratamentos racistas e preconceituosos que sofriam os membros da minha comunidade, os ciganos, na maioria dos países membros das Nações Unidas.

Devo dizer, com certo rubor, que enquanto o presidente da Conferência advertiu a alguns ministros de que seus cinco minutos tinham acabado, foi especialmente generoso comigo, porque eu estava expondo a minha história por quase nove minutos e ele não chamou a minha atenção.

Ao terminar, me sentei na cadeira ministerial e fiz o gesto de voltar ao lugar dos expectadores, mas meus “momentâneos” companheiros de Delegação me disseram que não o fizesse e que permanecesse sentado onde estava.

E foi nesse momento que o Presidente da República de Cuba, Fidel Castro, tomou a palavra para responder a minha fala. Já se passaram anos e ainda me excita a memória de suas palavras. Mais ou menos, ele disse o seguinte:

— Quero manifestar aqui o meu total acordo com o que disse o representante da Espanha. A luta do povo cigano para defender seus direitos deve ser apoiada por esta Conferência e isso deve constar na sua declaração final. As palavras do representante espanhol foram palavras oportunas, cheias de legitimidade e sentido comum.

A partir daí, Fidel Castro se manifestou como o Fidel Castro que todos conhecemos. Uma vez no uso da palavra, a fim de apoiar o que eu havia dito, ele começou a contar sua experiência com os ciganos europeus, especialmente aqueles que viviam sob algum regime comunista dependente da União Soviética. Ele mostrou um especial conhecimento sobre a vida dos ciganos romenos, sobre os quais, disse, havia conversado em alguma ocasião com o presidente do país, Nicolae Ceausescu.

Quando a sessão terminou, tive que atender a muitos meios de comunicação e, especialmente, aos espanhóis que, mais uma vez, manifestaram sua complacência por minhas palavras. Mas meus alarmes começaram a tocar quando um funcionário da embaixada espanhola em Joanesburgo veio me dizer:

— O senhor ministro quer vê-lo e me pede para perguntar se você poderia jantar com ele esta noite.

Naturalmente, eu disse que sim. E desde aquele instante começou a me cair mal o jantar ao qual ainda nem havia ido.

Quando cheguei ao reservado onde acreditava que o ministro estava me esperando para dar a grande bronca, me encontrei em uma mesa ao redor da qual havia pelo menos dez pessoas. Pensei comigo mesmo: “O ministro quer isentar-se de qualquer responsabilidade chamando-me a atenção diante de testemunhas por haver tomado o seu lugar sem ser autorizado a fazê-lo.”

Mas não foi assim. Juan Carlos Aparicio Pérez, que foi um bom ministro do Trabalho e dos Assuntos Sociais, veio a mim, apertou minhas mãos com força, e adivinhando meu estado de espírito, disse:

— Não se preocupe. Você fez muito bem. Eu pedi a gravação de suas palavras e as ouvi. E quero te dizer que você deixou o nome da Espanha na melhor posição para que possamos, a partir de amanhã, defender a nossa posição com maior força e autoridade. Além disso, depois do que Fidel Castro disse sobre a sua exposição, quem poderia duvidar do quão oportuna ela foi? Então sente-se e vamos jantar com tranquilidade.

Mas a história não termina aqui.

No dia seguinte, vários membros da nossa delegação e eu estávamos dando um passeio por uma das ruas de Durban, quando fomos surpreendidos pelas sirenes de umas motos enormes em que montavam quatro policiais, duas na frente e duas atrás de um grande carro preto. A fim de não sermos atropelados, nos refugiamos no acesso de entrada de um grande hotel, em cujas portas estávamos. Acontece que o mandatário que estava tão bem escoltado dirigia-se justamente para aquele hotel, e o carro parou quase em frente dos nossos narizes. Dele saiu Fidel Castro, que imediatamente foi cercado por sua escolta pessoal para entrar no hotel.

— Senhor Presidente, Senhor Presidente! – Eu disse, levantando a voz a fim de chamar sua atenção, no que obtive sucesso, porque Fidel Castro parou e ficou me olhando surpreso. – Senhor Presidente, desculpe a interrupção. Eu sou o cidadão espanhol que falou ontem no plenário da Conferência e gostaria de aproveitar a oportunidade de tê-lo tão perto para agradecer por suas palavras. Realmente, senhor Presidente, muito obrigado.

Então aconteceu o que eu nunca poderia ter imaginado. Fidel Castro me esquadrinhou com os olhos, afastou com a mão a escolta que se interpunha entre nós e disse:

— Bem, bem, o homem, é que me impressionou muito o que você disse. Então você é cigano? Venha comigo que eu quero falar com você.

Ele fez um gesto para que os guardas me deixassem passar e, me tomando pelo braço, entramos juntos no hotel, onde tranquilamente tivemos uma agradável conversa. Ele me perguntou um sem-número de coisas sobre os ciganos ao mesmo tempo em que me fez conhecer seus sentimentos em relação a nossa cultura e nossa maneira especial de entender e valorizar a liberdade.

Descanse em paz e que Deus possa perdoá-lo, como a todos nós, pelas coisas ruins que possamos ter feito ao longo de nossas vidas.

Juan de Dios Ramírez-Heredia
Advogado e jornalista
Presidente da Unión Romani.


Traduzido para o português por Mikka Capella.