quinta-feira, 9 de junho de 2016

A PRIMEIRA PROVAÇÃO DE ALCEU


Héracles Bebê Estrangula as Serpentes. Pietro Benvenuti (1817-29)

Alcmena havia tido duas crianças, dois meninos, um deles filho do grande Zeus, pai dos Deuses e dos homens, outro filho de Anfitrião, seu marido. O primogênito foi chamado Alceu, que era o nome do pai de Anfitrião. O outro foi chamado Íficles, mas o próprio Anfitrião não sabia, há este tempo, qual das duas crianças era seu filho.

Após o episódio com o leite de Hera, sob a oliveira, nos limites de Tebas, Zeus havia confiado a guarda do caçula à sua filha predileta, a Deusa de Olhos Gláucos, Athená, que, por sua vez, enviou sua coruja, com ordens de jamais deixar o berço dos meninos desprotegido. Eles sabiam que Hera, a temível Rainha dos Deuses, não havia desistido de seus planos nefastos para o bastardo de Zeus.

E assim foi feito. A coruja de Athená pousou na borda do escudo de bronze – que outrora havia pertencido ao derrotado rei dos teléboas e agora fora feito de berço para os recém-nascidos – e de lá não se ausentava, fosse dia, fosse noite. As duas crianças passavam seus dias ouvindo os pios, nos quais ressoavam as histórias da coruja de Athená, que também lhes protegia das noites frias com o calor de suas penas cinzentas e, nos dias quentes de verão, os abanava com suas grandes e poderosas asas.

O escudo que fora feito de berço para as duas crianças ficava, então, suspenso de maneira que pudesse balançar. Um dia, durante uma brincadeira dos dois, o pequeno Alceu deu um pontapé tão forte no irmão que o derrubou no chão. O pequeno Íficles não se machucou, mas Alcmena julgou prudente, a partir de então, baixar o escudo. A força surpreendente do jovem Alceu podia ser um indício de qual das duas crianças era, afinal, o filho de Zeus, mas uma demonstração ainda melhor estava por vir.

Em certa ocasião, um rato roeu o bordado primoroso no qual Athená vinha trabalhando com esmero fazia tempo. Furiosa, Ela ordenou à coruja que punisse o rato. Com um piado agudo, a coruja chamou Alcmena ao quarto dos bebês e a rainha pôde ler na clareza de seus olhos as ordens divinas de que fora encarregada. Alcmena, a coruja avisou, deveria cuidar de vigiar o berço dos meninos até que ela voltasse. A rainha convocou, então, doze aias para a função.

As doze mulheres sentaram-se ao redor do escudo e puseram-se a bordar e conversar. Com o avançar da noite, porém, uma a uma, elas foram cedendo ao sono. Quando as pálpebras da última delas se fecharam, um vento gélido irrompeu pelas janelas entreabertas, apagando as lâmpadas de azeite que iluminavam o quarto. Imediatamente, duas enormes serpentes, com peçonhas gotejantes de veneno, se formaram do emaranhado das sombras do lado de fora e rastejaram para dentro.

O pequeno Alceu, que também dormia serenamente, acordou com o som que elas faziam ao rastejar e com o tilintar de suas línguas úmidas e bifurcadas. Ao pressentir o perigo, instintivamente, o jovem deus se pôs em posição de saída baixa no berço, acordando o pequeno Íficles, que encontrou a direção das serpentes seguindo o rosto do irmão. Como era natural, o garoto, apavorado, começou a gritar, acordando, por sua vez, as doze mulheres que dormiam ao redor.

Ao ver as enormes serpentes enviadas por Hera, as aias fizeram um verdadeiro escândalo, gritando e correndo de um lado para outro dentro do quarto. A reação em cadeia logo faria com que todos no palácio estivessem de pé e corressem para o quarto das crianças. Anfitrião e Alcmena foram os primeiros a chegar... Mas a cena que veriam os deixaria sem reação.

Sob os olhos incrédulos e arregalados de Íficles, o pequeno Alceu, de pé no berço, segurava as duas serpentes uma em cada mão. Antes que Anfitrião recuperasse o tino e pudesse sacar sua espada, ele já as havia soltado. Mortas, as serpentes se desfizeram novamente em sombras ao tocar o chão.

Para os que haviam presenciado a cena, não restava dúvidas de qual das duas crianças era o filho de Zeus e, naquele momento, todos, inclusive Anfitrião, se curvaram, prestando reverência à criança divina. Mas foi o leite de Hera, a rainha do céu e nutrícia da terra, que lhe deu a força e a resistência sobre-humanas que lhe possibilitariam realizar todos os seus grandes feitos no futuro. Por esse motivo, ao final da jornada, quando ascendeu ao Olimpo e tomou seu lugar junto aos Deuses Eternos, ele assumiu o nome de Héracles, que significa A Glória de Hera, reconciliando-se definitivamente com sua madrasta divina.

Para muitas pessoas, Hera desempenha, no drama de Héracles, o papel de vilã. Muito longe disso, na verdade, foi Ela quem, desde o princípio, deu a Ele as chaves e as oportunidades para alcançar glória e eternidade. Ela, com certeza, não tornou mais fácil a vida do herói. Mas, bem, não existe herói em uma vida fácil. A chave para o entendimento disso, o deus carrega em seu próprio nome.


Que o poderoso Héracles, concebido na escuridão de uma noite que durou três dias, nos abençoe pelo inverno que se aproxima, fortaleça nosso espírito e nos seja favorável para que, a Sua semelhança, possamos vencer todos os desafios e rigores da vida.        

quarta-feira, 8 de junho de 2016

HÉRACLES ― O NASCIMENTO DO DEUS MENINO

O Nascimento da Via Láctea. Peter Paul Rubens (1636).


A hora do parto de Alcmena havia chegado. No Olimpo, o grandioso Zeus ofereceu um opulento banquete e, na presença de todos os Deuses, anunciou que naquela noite nasceria um filho seu, da linhagem de Perseu, que governaria sobre todos os demais.

Hera, ao ouvir aquilo, apertou a taça de ambrosia em suas brancas mãos, furiosa. Então Zeus havia traído seus votos matrimoniais uma vez mais e, não satisfeito, esfregava a vergonha em suas faces, enaltecendo o fruto de sua infidelidade diante de todos os Deuses! Ela olhou, indignação transbordando, para a deusa Ate, que estava sentada ao seu lado. Com um sorrisinho de canto de boca, Ate lhe deu uma piscadela.

Hera, então, serviu-se de outra taça de ambrosia, da bandeja de Hebe, sua filha mais jovem, e tomou a palavra.

― Um brinde a sua glória, meu Senhor!
Zeus, tão tremendamente satisfeito e orgulhoso, apenas ergueu a sua taça para a divina esposa, embora a atitude dela fosse, na melhor das hipóteses, suspeita em uma ocasião como aquela.
― Então você, rei e senhor dos deuses e dos homens, jura, pelas sagradas águas do Estige, que a primeira criança da linhagem de Perseu que nascer esta noite será um rei e governará sob todos os demais?

― Sim, é o que acabo de dizer! ― disse Zeus.

Hera apenas sorriu e puxou uma salva de palmas para o Soberano. Ato contínuo, convocou sua filha mais velha, Ilíthia, deusa dos partos, com gesto de olhar, e ordenou-lhe que voasse até a Terra para cumprir duas missões. Ocorria que em Micenas, após a morte de Eléctrião, pai de Alcmena, o trono havia sido assumido por seu irmão, Estênelo, que também era filho de Perseu e cuja esposa, Zeus ignorara completamente, também esperava uma criança. Assim, Ilíthia veio à Terra para retardar o nascimento do filho de Zeus e para acelerar o do filho de Estênelo.

De fato, a rainha Nícipe, esposa de Estênelo, concebeu naquela mesma noite Euristeu, de apenas sete meses, uma criança tímida e fraca. O bebê de Alcmena nasceu horas depois.

― E agora, meu Senhor? ― Hera questionou. ― Nasceu Euristeu, de Micenas, a primeira criança da linhagem de Perseu.

Zeus olhou para Ate, a deusa do engano, que lhe sorria maliciosamente. Naquele momento tudo ficou claro, ele havia caído no ardil. Furioso, pegou Ate pelos cabelos e a atirou do Olimpo à Terra, banindo-a para sempre. Desde então, Ate vive entre os homens. Quanto à Hera, Ela era sua rainha e ele havia jurado pelas águas sagradas do Estige, um juramento que nem mesmo os Deuses podem quebrar.

Conternado, Zeus declarou à assembléia dos Deuses:

― Euristeu foi a primeira criança da linhagem de Perseu a nascer. Como prometi em nome das águas sagradas do Estige, ele reinará. Meu filho, pelo contrário, nunca governará. Servirá humildemente a Euristeu e terá a vida mais difícil. Ele sofrerá como jamais se viu outro homem sofrer...

E Hera sorriu, satisfeita. Zeus, entretanto, ainda não havia terminado.

― Mas ele também será um herói acima de todos os outros, superando-os em seus feitos e glória. O sofrimento de sua vida provará o seu valor e, ao final dos seus dias, ele ascenderá ao Olimpo, morada Eterna dos Imortais, e a própria Hera, minha senhora e esposa, deverá aceitá-lo como seu igual.

Hera assentiu com a cabeça. Em seu gesto, resignação. Eu seu coração, a fúria de todos os Titãs aprisionados no Tártaro perpétuo. “É o que veremos”, ela pensou. “Isso nunca acontecerá, simplesmente porque seu filho, meu senhor, jamais chegará a se tornar adulto o bastante para qualquer ato de heroísmo”.

Agora era a vez da réplica de Zeus. Após uma eternidade, ele conhecia melhor que qualquer outro a engenhosidade e o temperamento de sua divina esposa. Sabia que, naquele mesmo momento, alguma coisa negra e terrível começava a tomar forma em seu coração. Assim, convocou sua preferida entre os Deuses Eternos, Athená, Senhora da Sabedoria, e lhe pediu o favor em um estratagema.

Na Terra, Alcmena havia dado a luz dois meninos – um filho de Eléctrião, seu marido, outro filho do grande Zeus. Enquanto ela dormia, Zeus colocou em sua mente o terror de que, naquela mesma noite, Hera pudesse atentar contra a vida de seu filho. Desesperada, Alcmena acordou, correu ao quarto das crianças e tomou o bebê, filho de Zeus, nos braços. Esgueirando-se para ficar fora das vistas de qualquer pessoa, ela deixou os muros do palácio de Tebas e caminhou até estar fora dos limites da cidade. Deitou a criança sob os galhos viçosos de uma frondosa oliveira e rogou à Athená que protegesse seu filho.

Athená, por sua vez, convidou Hera para um passeio sob o pretexto de fazê-la espairecer a raiva do divino esposo. Como se não tivesse qualquer intenção, guiou-a exatamente até a oliveira em que sabia que Alcmena havia deixado a criança.

O bebê, naturalmente, chorava de fome e frio. Hera, que acima de tudo é mãe e nutriz, cedeu ao instinto e correu até a criança, pegando-a no colo.

― Que ser de escória desalmada poderia ter deixado tão indefesa criatura abandonada ao relento desta forma? ― Ela disse.

Athená, que observava a cena com seus olhos gláucos, da cor do céu da alvorada, sugeriu que Hera o amamentasse para aplacar sua fome. E, sem pensar, a deusa pôs o divino seio para fora e ofereceu-o ao pequenino.

Tamanho era o apetite da criança, que, em sua voracidade, acabou mordendo o seio de Hera. A dor aguda fez a deusa afastar a criança bruscamente, deixando esguichar, ainda, um jato de leite. Um pouco atingiu o céu, criando a Via Láctea, o restante caiu sobre a terra, dando nascimento a uma flor perfumada, tão branca quanto o leite – o lírio.


Mas o que o pequeno filho de Zeus havia tomado, mesmo sendo tão pouco, foi suficiente para nutri-lo e fazê-lo forte além de qualquer possibilidade humana. Hera, finalmente, compreendeu armadilha de Zeus. Tal como Ela O enganara, Ele A havia enganado. Ao invés de matar o menino, a deusa o fizera indestrutível. 

terça-feira, 7 de junho de 2016

ZEUS E ALCMENA - A CONCEPÇÃO DO DEUS-HERÓI

Zeus e Alcmena, por Nicolas Henry Tardieu (1674-1749)


Zeus, Todo-Poderoso, olhava para a Grécia, dividida, enfraquecida, sonhando com o reino glorioso que, Ele sabia, somente chegaria a ser sob os auspícios de um soberano semi-divino, sábio e poderoso o bastante para unificá-la. Buscou na Terra alguém, uma mulher, que reunisse em si as qualidades necessárias para, com a semente certa, dar a luz ao mais notável dos homens. Encontrou Alcmena, filha de Eléctrion, rei de Micenas e descendente de outro filho seu, o nobre Perseu.

Alcmena, bela e imponente, de longas e pesadas tranças emoldurando um rosto esculpido com esmero pelos talentos de Afrodite, era não apenas bela, mas também a mais sábia entre as mulheres. Estava prometida a Anfitrião, rei de Tirinto, mas uma tragédia se abateu sobre a cidade, fazendo com que as bodas tivessem de ser adiadas. Micenas entrara em guerra com os teléboas, que haviam se apoderado dos rebanhos de Eléctrion e assassinado seus nove filhos, irmãos de Alcmena, no campo de batalha.

Tomando ciência da localização do gado de seu futuro sogro, Anfitrião resolveu resgatá-lo, pagando para isso uma grande quantia... O que fez com que Eléctrion, sentindo-se humilhado, ficasse profundamente desgostoso. Os dois acabaram discutindo. Anfitrião, num momento de fúria, arremessou sua clava contra o gado e esse único gesto, nesse único momento, acabaria lhe custando muito caro... A clava ricocheteou nos chifres de um dos bois e acertou a cabeça de Eléctrion, matando-o.

Anfitrião foi tomado pelo remorso e abandonou Micenas, abdicando até do trono de Tirinto. Refugiou-se em Tebas, que era governada por Creonte, mas jamais deixou de amar Alcmena... Passado algum tempo, enviou um mensageiro para questionar-lhe se ela poderia perdoá-lo. Foi então que Zeus, em sua infinita astúcia, pôs na mente de Alcmena o perdão e a disposição para casar-se com Anfitrião, apesar de tudo, desde que ele lhe vingasse os irmãos em guerra contra os teléboas.

Anfitrião buscou o apoio de Creonte, em Tebas, e de Céfalo, em Atenas, formando um exército capaz de confrontar e derrotar os temíveis teléboas, com suas vozes de trovão. Quando Anfitrião partiu para o campo de batalha, Zeus acompanhou seus passos, favorecendo-o de todas as formas até a vitória. E uma vez que a vitória estivesse consumada, Ele se disfarçou de Anfitrião e veio para a Terra acompanhado de Hermes, por sua vez dissimulando a aparência de um de seus melhores amigos e mais confiáveis generais.

Zeus, sob a forma de Anfitrião, entrou no quarto de Alcmena proclamando vitória com um sorriso nos lábios. Sentando-se com ela no leito nupcial, narrou-lhe cuidadosamente os detalhes da guerra, com todos os feitos heróicos que lhe diziam respeito – feitos estes reforçados, e algumas vezes aumentados, por Hermes, sob a forma do general de guerra de Anfitrião. Sem suspeitar de nada, a bela Alcmena deitou-se com Zeus acreditando tratar-se de seu vitorioso marido e juntos partilharam uma intensa noite de amor.

Uma vez que as portas do quarto do casal estivessem fechadas, Hermes, de ligeiros pés, correu até os limites do mundo para atender aos desígnios de Zeus Soberano. Pediu a Hélios que não atrelasse sua carruagem dourada, a Selene que se demorasse em seu passeio pelo céu da noite e a Hipnos que prolongasse o sono dos homens, criando, assim, uma noite que durou três dias. E foi nesta noite que Ele e Alcmena conceberam, juntos, um filho, uma criança, que, no futuro, viria a ser chamada de Héracles.


Na manhã seguinte, quando o curso dos astros voltou à normalidade e os homens despertaram de uma longa noite sem suspeitar de coisa alguma, Anfitrião, o verdadeiro Anfitrião, voltou para casa, alegre, com um sorriso nos lábios, proclamando vitória e narrando feitos do campo de batalha. Ficou chocado pela frieza com a qual sua esposa e seus servos o receberam, pouco interessados com os detalhes que já pareciam saber. Alcmena, contrariada, quis saber por que Anfitrião estava lhe contando as mesmas histórias outra vez. Ao ouvir que ela já havia recebido alguém que se fazia passar por ele, Anfitrião ficou furioso. Suspeitou da fidelidade da esposa. Antes, porém, que viesse a fazer algo de que pudesse se arrepender, procurou o oráculo de Delfos, onde descobriu a verdade – Alcmena havia sido desposada pelo próprio Zeus. Seu ventre conceberia, em breve, duas crianças. Uma seria seu próprio filho e a outra um semi-deus, destinado a se tornar o maior herói de todos os tempos.