Le génie du mal. Exposta na catedral de Saint-Paul de Liège.
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Comunicação apresentada no XXIII Ciclo de Debates em História Antiga: Política & Comunidade, ao dia 26 de setembro de 2013, no IFCS, UFRJ.
Bom, vamos falar sobre a gênese de Satã, ou a origem do mal no imaginário religioso judaico-cristão. Estudar esse tema acabou sendo algo inusitado para mim. Eu sempre me interessei por religião antiga, especificamente religião grega e ainda me interesso bastante. Então, certa ocasião, estudando sobre os daimone, acabei me deparando com o fato de que foi nestes gênios, intermediários entre os deuses e os homens, que tiveram origem os temerários demônios cristãos.
Neste momento foi que surgiu a dúvida: qual teria sido a origem do Diabo propriamente dito, esta entidade personificadora do mal? É sabido que o cristianismo, enquanto religião dominante na metade ocidental do mundo, forneceu as bases para a constituição de todo o sistema ético e moral que temos hoje. E nesse sistema ético-moral, Satã tem uma participação importante. Não se pode pensar em cristianismo, na verdade, sem a presença, sempre assustadora, de Satã. Prova disso é que o aclamado historiador Peter Brown, em seu “A Ascensão do Cristianismo no Ocidente Medieval”, declara: “Salvação significava, antes de tudo o mais, salvaguarda frente à idolatria e ao poder dos demônios.”
A crença em Satã é um dogma oficial da religião católica, tendo sido estabelecida no Concílio IV de Latrão, de maneira que negar sua existência acaba por constituir uma heresia. E os segmentos protestantes, mesmo não se importando muito com a questão das heresias, parecem reconhecer a importância da consciência de que há uma força maligna a solta no universo trabalhando para a destruição da criação divina, em especial do gênero humano. Como um historiador mais ou menos familiarizado com a ideia das modificações e adaptações pelas quais passam as crenças religiosas, achei que cabia a seguinte pergunta: teria Satã sido uma realidade com a qual conviveram os hebreus desde os primórdios da crença em Iahweh?
Muitos são os nomes ou alcunhas pelas quais se conhece o espírito da maldade. No entanto, em se tratando da história de Satã, é importante deixar claro que se trata de uma pesquisa longa, que se desdobra por várias épocas e contextos, nos quais o nome pelo qual a entidade é conhecida se torna especialmente importante. Desta forma, como essa apresentação está voltada para uma primeira etapa da pesquisa, que procura dar conta do surgimento da crença em Satã no pensamento religioso hebreu, vamos usar somente o nome Satã. Satã corresponde à forma hebraica, presente no Antigo Testamento, que mais tarde encontraria paralelo no Aramaico Satanás, tal como está presente no Novo Testamento. As formas “Diabo”, “Demônio” e “Lúcifer” pertencem a um contexto mais tardio, cada uma delas encerrando uma demanda específica, caracterizada pelas necessidades politico-religiosas da época.
É importante frisar, também, que para este primeiro momento da pesquisa foram tomadas como fontes, em comparação, a Bíblia de Jerusalém, pelo seu reconhecimento acadêmico, e a Tora, edição bilíngüe da Sefer, de 2001.
Pois bem, o primeiro grande impasse que encontramos ao pesquisar a origem da crença em Satã é o fato de uma entidade sobrenatural que encerre em si mesma a síntese de todo o mal, no pensamento da esmagadora maioria dos povos da antiguidade, não fazer muito sentido. Trata-se da definição de coisas como mal e bem. Já dissemos que Satã é imprescindível para a idealização cristã e ocidental do mundo. Um mundo dicotômico, onde o bem e o mal existem em esferas muito bem definidas e separadas. No entanto, os povos da antiguidade não pensavam um mundo assim tão bem divido entre forças opostas, luz e escuridão, bem e mal. Antes, todos os seres da criação, bem como os deuses, encerravam em si mesmos luz e sombras, e podiam ser bons e justos num momento, maus e perversos em outro. Na Mesopotâmia, por exemplo, havia o deus Adad, senhor do clima e das tempestades. Adad era considerado um deus benevolente e provedor, pois era responsável pelas cheias que inundavam as planícies do Crescente Fértil, favorecendo a agricultura. No entanto, o mesmo deus recebia o epíteto de “o de iras terríveis”, era considerado temperamental e no episódio do dilúvio, que encontra em textos mesopotâmicos a sua versão mais antiga, dizimou a humanidade inteira com uma chuva torrencial, depois de haver fracassado na tentativa de exterminar os homens através da seca.
Para usar um exemplo grego, Afrodite é uma deusa ora enaltecida pela beleza e pelos prazeres com os quais brinda o mundo, ora temida e execrada como uma donzela caprichosa que a todos faz sucumbir ante aos desmandos irracionais da paixão. E o mesmo vale para todos os deuses. Até mesmo para Iahweh, o deus tutelar dos hebreus. Mesmo na religião hebraica primitiva, o bem e o mal emanavam da mesma e única fonte. Não havia, pois, uma distinção originária entre o bem e o mal. Essa divisão, que a nós parece tão familiar, simplesmente não existia. E isso se faz visível em várias passagens do Antigo Testamento.
Cabe então a seguinte pergunta, se a questão da natureza do mal estava desta forma resolvida, de que maneira poderia vir a ser concebida a existência do mal personificado, a existência de Satã?
Havia um povo, em especial, cujas crenças e cosmovisão destoavam do panorama apresentado: os persas. Os persas, no período Aquemênida, apresentavam já cristalizada uma visão espiritual do mundo em conflito. Toda a criação estaria, segundo as crenças de Zaratustra, que ficaram conhecidas como zoroastrismo, dividida entre dois seres: Ahura Mazda, e Angra Mainyu, o primeiro personificação do bem, da vida e da justiça; o segundo, em oposição, o mal, a fome, as pestes, a escuridão e a morte. Esses dois seres lutariam pela supremacia do universo até o juízo final, quando Angra Mainyu seria derradeiramente derrotado. E apenas nesta breve explanação sobre as crenças persas, vocês já devem ter percebido várias coisas bastante familiares a tudo o que conhecemos da religião cristã.
Infelizmente, o tempo que temos aqui não me permite entrar muito profundamente nesse assunto, que é fascinante. Vale para nós sabermos que os cinco livros da Tora, que constituem o Pentateuco, a assim chamada “Lei de Moisés”, não mencionam a figura de Satã nem uma única vez. Ele vai aparecer somente nos livros dos profetas escatológicos, posteriores ao Exílio da Babilônia, quando o povo hebreu esteve por um período prolongado em intenso intercâmbio cultural com o próprio povo babilônico – e suas crenças – e, já no finalzinho e por um longo período depois, com os persas, que por causa de disputas internas, disputas estas que tinham a ver com religião, acabaram conquistando Babilônia, quase sem luta, em 539 a.E.C.
A troca cultural que houve neste período e em períodos posteriores é inegável. Primeiro, há que notar que os Hebreus, antes do contato com os persas, eram um povo de tradição predominantemente oral. Tradição esta que sobrevive até hoje na forma do Talmud e da Kaballah. Os persas, com o seu Zend Avesta, foram o primeiro povo de que se tem notícia a adotar textos como escrituras sagradas. Este hábito influenciou os indianos e os hebreus. Também Ciro II, então o rei dos persas aquemênidas, foi o primeiro a receber o título de “messias” nos textos escatológicos. Ciro, que nunca foi hebreu. E várias outras inovações foram sendo introduzidas no pensamento religioso hebreu a partir desse contato, que pela vassalagem dos monarcas do povo de Israel, recém-liberto do cativeiro, continuaria por um longo período, praticamente até Alexandre invadir e conquistar a Pérsia, dando início ao período helenístico.
Tudo leva a crer que é Satã, na verdade Angra Mainyu, mais uma dessas inovações, que penetraram no universo espiritual hebreu por via dessas trocas culturais com os persas. Um povo de todas as maneiras muito admirado pelos hebreus, tanto por haver lhes concedido outra vez a liberdade quanto por haver destituído do poder a família do monarca, para eles um tirano, que os havia aprisionado. Mas a inserção da figura de Satã, bem como todas essas inovações de que estamos falando, não aconteceram de maneira absoluta ou imediata. Não foram desde sempre aceitas por todos os grupos, de maneira que jamais constituíram uma unanimidade. E reflexos de algumas discordâncias podem ser encontrados no próprio texto bíblico. Por exemplo, na questão do famigerado senso que teria sido promovido por Davi, cronistas diferentes se dividem quanto à responsabilidade objetiva pelo ato do monarca ( ver I Crônicas, 21:1 e II Samuel, 24:1).
Os censos, aliás, eram, ao que tudo indica, motivo de grande instabilidade social à época. Não sem motivo, pois que quase sempre eles revelavam uma necessidade do soberano de engordar o tesouro, o que não poderia ser feito sem onerar os lucros dos súditos. É provavelmente ao medo que a realização de sensos suscitava que Satã deve seu nome. Havia no sistema de governo financeiros dos aquemênidas um funcionário de confiança do soberano, encarregado de andar pelas terras do reino, tanto as originárias quanto às conquistadas, conferindo e relatando ao rei se seus súditos estavam declarando honestamente os rendimentos. Esse funcionário era conhecido como “Os Olhos do Rei”, e como a resposta quase nunca era positiva, a visita dele quase sempre significa algum aumento na carga tributária do povo.
É provável que a palavra “satã”, que, como já dissemos, significa adversário ou acusador, tenha sido primeiramente usada não como um nome próprio, mas como um adjetivo pejorativo para esses enviados do rei: famigerados acusadores, para não dizer delatores, aos olhos dos desafortunados vassalos. Inicialmente, o Satã espiritual não parece distinguir-se muito dessa ideia. A primeira vez em que aparece nas Escrituras é no livro de Jó, um verdadeiro tratado sobre as razões espirituais da desventura, e no original em hebraico é grafado com inicial minúscula, ou seja, não como um nome, mas uma espécie de alcunha ou título. Iahweh, retratado a exemplo dos monarcas terrestres (como não poderia deixar de ser, afinal era um de seus epítetos o de “rei dos reis”), encontrava-se reunido com os anjos em assembléia. É quando chega satã e lhe insufla a duvida quanto a honestidade de seu mais estimado servo, o fiel Jó. E satã, que neste primeiro momento não se apresenta como um inimigo de Iahweh, mas como um de seus anjos, portador de tarefa indesejável aos homens, executa tarefa análoga ao do funcionário aquemênida: ele diz a Iahweh que a fidelidade de Jó se deve aos privilégios que recebe ante aos demais. Iahweh, por sua vez, novamente a exemplo do rei da Pérsia, manda que satã lhe prive de seus privilégios para testar-lhe a fidelidade.
A imagem de Satã, esse ser indesejável, porém a serviço de Iahweh, mudará pouco e de forma gradual no Antigo Testamento. Aos poucos, ele passará de um anjo, que apenas fiscaliza os atos dos homens para denunciar os maus a Deus, a um ser com a perniciosa capacidade de inspirar más ações, com o objetivo puro e simples de levar o homem à perdição. Aos poucos, paradoxalmente, Satã se tornaria cada vez mais parecido com o seu ancestral persa, Angra Mainyu, ganhando contornos mais bem definidos e nitidamente perversos nos primeiros anos da era cristã.
A história que começa a se delinear no período do Exílio Babilônico é longa e cheia de reviravoltas. Não seria um erro afirmar que ela se estende até os dias de hoje, pois a figura de Satã, que foi agregando alcunhas no curso do tempo, ainda é distorcida e remodelada para atender às demandas e necessidades religiosas dos dias de hoje. Todavia, em termos de sua gênese, quer dizer, de seu nascimento no pensamento religioso hebreu, do qual passaria ao imaginário cristão, cabem três conclusões. Num primeiro momento, observamos que a crença dicotômica em um bem e mal absolutos não é originalmente hebraica. Num segundo momento, observamos que o Exílio da Babilônia provoca uma crise religiosa muito séria, na qual já não é possível afirmar que a maldade é sempre punida e a virtude é sempre recompensada. Neste sentido, o contato com a espiritualidade persa oferece algumas respostas e o surgimento da figura de Satã a partir deste contato irá, progressivamente, tornando Deus uma figura mais leve, na medida em que tira dele a responsabilidade pelo mal. Por fim, num terceiro e último momento, cabe reforçar a ideia já implícita de que Satã não nasce como um inimigo de Deus, embora o seja, de fato, dos homens. Ele - ou eles, já que o texto bíblico não deixa suficientemente claro se é um ou se são vários - é um aliado de Iahweh. E Satã, que hoje grafamos com inicial maiúscula, é antes um adjetivo pejorativo que propriamente um nome.