segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A TRISTE HISTÓRIA DE ENRICO DEL FRARI V

CAPÍTULO QUINTO




Francesca e Enrico entreolharam-se perplexos. Aquilo só podia ser piada. Então era aquele o preço de que Marco havia falado, que eles se mudassem para a sua casa? No final, não parecia bem um preço, mas outro enorme favor.
Francesca, embora Marco insistisse na necessidade de continuar aquele estranho tratamento, estava ótima. É claro que nem ela nem Enrico entendiam como ou por qual milagre aquilo era possível, mas isso não lhes preocupava. Francesca havia recebido uma oportunidade única – uma vez às portas da morte, recobrara a saúde e, nas palavras de Marco, viveria para cuidar de Enrico. De que lhe serviria conhecer o mecanismo do prodígio? Ela simplesmente queria viver e viveria. Essa certeza lhe bastava.
Quanto à exigência de viver com Marco em sua casa, bem, bastava um olhar para entender que aquilo parecia mais com caridade.
Ele definia a si mesmo como um homem solitário, que, no entanto, detestava a solidão. Estava na cidade havia poucos dias e morava numa casa enorme na via Porta Pile, no extremo norte da cidade velha. Entre os hábitos excêntricos que cultivava, estava o de dormir durante o dia, quando a propriedade parecia abandonada e precisava de alguém para tomar conta.
Resumidamente, era o que ele queria de Francesca e Enrico – que eles tomassem conta de sua casa enquanto estivesse dormindo. Somente se encontrariam à noite. No resto do dia, teriam toda a casa para que vivessem como bem quisessem.
Isso não podia ser tão ruim.
A casa em que moravam, na via Cremona, parecia um tugúrio caindo de velho. Já a residência de Marco, gentilmente oferecida em troca de um pequeno favor, tinha três andares, um banheiro em cada pavimento e cinco quartos muito confortáveis – e desocupados, uma vez que o anfitrião, por outro de seus estranhos costumes, preferia acomodar-se no porão.
A sala também era requintada. Diante da lareira, descansavam elegantes estofados recobertos de veludo bordado. Tapetes de peles legítimos escondiam quase todo o chão e as paredes, delicadamente ornamentadas por lambris de madeira encerada, ostentavam telas, na parte superior, assinadas por autores de diferentes estilos artísticos e das mais variadas regiões da Itália.
Num dos cantos, perto da mesa de jantar, ele tinha um piano, um piano de cauda. Francesca e Enrico nunca tinham visto um piano tão de perto.
Nas poucas noites em que não saía, Marco se sentava ao piano e tocava. Alguma peça de Vivaldi era sempre sua escolha predileta, mas também havia outras; Stravinsky, alguma polca de Mozart ou as melancólicas composições de Schubert nunca deixavam de encantar os ouvidos atenciosos e fascinados. Eram ocasiões em que a música invadia a casa. Mãe e filho se regozijavam e a noite terminava em festa.
A palavra de ordem, entretanto, parecia ser conforto – conforto e privacidade. Todas as enormes janelas, sempre fechadas, tinham venezianas e pesadas cortinas de brocado inglês. A cozinha, demasiado ampla, estava equipada com quase tudo que uma dona de casa poderia desejar – mas quando eles chegaram, tiveram a impressão de que nunca havia sido usada.
Isso era outra coisa estranha, aliás. Francesca e Enrico nunca viram Marco fazer uma refeição sequer. Ele sempre despertava depois do pôr do sol e, na maior parte das vezes, saía logo em seguida. Quando voltava, ninguém estava acordado para ver.
Além disso, era um homem rico, não havia dúvida, mas sua fortuna tinha origem desconhecida. Não se sabia com o que trabalhava, por exemplo, tampouco de parentes ou mesmo uma família. Talvez tivesse recebido alguma herança, mas isso era um mistério e ninguém ali estava interessado o bastante para invadir a privacidade dele e perguntar.
O que sabiam era que em seus aposentos, no porão, a entrada era expressamente proibida. Ele não se contentava com a mera recomendação. A porta era trancada a cadeado.
Certa vez, pedira uma coisa curiosa a Francesca. Se um dia, por alguma razão, alguém viesse a lhe parar na rua e perguntasse sobre a quem pertencia aquela casa, ela deveria dizer que era sua; e se, ainda assim, insistissem em saber com quem morava ali, diria ser apenas com seu filho.
Uma atitude estranha. Uma das muitas atitudes estranhas. Será que ele se escondia de alguém?
Marco era um homem de muitos segredos, isso estava claro. Insondável, quase não falava da própria história. Mas nem por isso sua companhia era menos agradável.
Ele era interessante, dono de humor ameno e irreverente. Igualmente, o ar misterioso nunca lhe impedira de ser divertido em demasia. Também jamais deixara de tratá-los com doçura. Era alguém que dispensava elogios facilmente e, com notório esmero, cuidava de fazer das poucas horas que passavam juntos momentos aprazíveis.
Por tudo quanto viviam, era inevitável que Enrico acabasse vendo em Marco um tipo de pai. Essa relação não era de nenhuma forma intencional. Marco jamais tivera a intenção de estimular um sentimento dessa natureza. Era uma consequência espontânea e natural.
Por causa do serviço militar, em seus onze anos, Enrico pouco havia visto o verdadeiro pai. É claro que ele não ignorava que o sustento da família vinha do trabalho no exército, mas era indiscutível que a distância criara um enorme vácuo entre eles. Então, justo em seu momento mais difícil, eis que surge Marco, modificando completamente o rumo da história. A melhor palavra para ele era salvador. Mais ainda que um pai, Enrico o via como herói.
Tal como fora combinado, Marco alimentava Francesca ao menos duas vezes por semana com seu sangue medicinal. A mulher já não apresentava qualquer vestígio da doença, mas ele insistia que os sintomas voltariam se parassem.
Francesca, de sua parte, não parecia incomodada pelo fato de que precisava beber sangue tantas vezes. Pelo contrário, ela parecia esperar por aquele bálsamo assombroso com admirável ansiedade. Parecia mesmo... Gostar.
Marco, ao oferecer-lhe o pulso machucado, invariavelmente precisava afastá-la no final, pois, mesmo já havendo tomado mais que o bastante, não parecia querer deixá-lo. Agarrava-se a ele com tamanha força que o tragaria por inteiro se pudesse.
Depois do ato consumado, exatamente como na primeira vez, Marco estava extenuado e Francesca entorpecida, abandonada de si, numa espécie de êxtase quase religioso.
Era um ritual estranho e um tanto incompreensível, mas se parecia com amor. Provavelmente a coisa parecida com amor que tinham conseguido ter naqueles últimos e terríveis tempos.
De um modo inusitado, construiu-se uma família. A relação que eles tinham envolvia dependência, mas também estava cheia de cumplicidade e respeito. Marco os protegia. Eles, por sua vez, evitavam as indiscrições.
Não é tão difícil entender. Depois de anos no deserto, um oásis aparece. Simples desse jeito. E quando uma coisa assim acontece, não importam os porquês. Verdades incompletas valem mais que verdades indesejáveis.
Então, um dia, como de costume, Francesca despertou por volta das sete da manhã. Era um domingo, dia em que, desde que havia se mudado para a casa de Marco, frequentava a missa na parrocchia Santi Faustino e Giovita.
A cerimônia começava às oito horas e Francesca jejuava até às nove, quando a missa terminava. Por essa razão, excepcionalmente aos domingos, a primeira refeição nunca acontecia antes das dez.
Depois de ter se levantado, ela cuidou do próprio asseio e trocou a camisola por um vestido longo preto. De uma das gavetas do criado-mudo, tirou um terço e um véu da mesma cor do vestido. Arrumara os cabelos em um coque cuidadosamente penteado; depois, na direção da porta principal, cobriu os ombros com um xale pesado de lã que descansava sobre um cabideiro.
Já se preparava para sair. Foi quando uma coisa perturbou sua atenção. Do outro lado da rua, em meios às árvores do canteiro que separava a via Porta Pile da Silvio Pellico, avistara um homem estranho que parecia espreitar a casa.
A primeira vista, achou que fosse um padre. Ele se vestia inteiramente de preto e usava um casaco comprido, que, se visto de relance, parecia uma batina. Também usava um chapéu, mas um olhar um pouco mais atento não perceberia o típico colarinho branco dos sacerdotes, nem o terço preso à cintura, apenas uma correntinha com um crucifixo de prata.
No entanto, o que mais chamava a atenção, sem dúvida nenhuma, eram aqueles olhos – uns olhos pretos, fulminantes e cruéis. A expressão no rosto dele tinha algo de perverso, sombrio e a barba por fazer acrescentava uma virilidade mórbida ao seu aspecto sujo e opressivo.
Francesca arrepiou-se. Num repente, sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Alguma coisa naquele homem parecia auspiciosamente terrível.
Ela cruzou os braços, como se sentisse frio. Então baixou o rosto e apertou o passo rumo ao portão. Naquele instante, desejava apenas desaparecer o mais rápido possível de seu campo de visão.
O homem, por sua vez, permaneceu impávido. Não esboçou qualquer sinal de reação. Continuou ali parado, apenas observando, enquanto a mulher deixava a casa exasperada e seguia quase correndo em direção à igreja.
No espaço de um segundo, mil coisas se passaram na cabeça de Francesca. Quem seria aquele homem que a deixara tão perplexa? O que fazia espiando a casa àquela hora da manhã? Uma certeza absoluta de que nunca o vira antes sobreveio, mas era evidente que estava ali por um motivo – a pergunta era qual.
Inevitavelmente se lembrou das recomendações de Marco. No início, não levara muito a sério, mas agora não sabia o que pensar. Marco estava mesmo se escondendo? Não podia acreditar que arriscaria sua vida e a de Enrico, mas que tipo de segredo tão terrível ele guardava?
Ela foi para a igreja e durante a homília não ouviu uma palavra. Sua mente estava inquieta, pressentia o perigo, não sabia o que fazer. Ao anoitecer, quando Marco despertasse, poderia lhe contar. Até lá, restava desejar que aquilo fosse um susto, nada pra se preocupar, uma coisa passageira; e na volta para casa, aquele homem – aquela sombra – já teria ido embora. Ficaria tudo bem.
Mas não foi o que aconteceu...
Francesca deparou-se outra vez com o homem, só que não estava mais do outro lado, agora estava em seu portão.
Esta casa é sua? – ele perguntou. A voz sussurrada, quase gutural.
Outro calafrio, ainda mais forte que o primeiro. O coração pulsava acelerado. Ela sentiu as pernas bambearem.
Sim – respondeu. – Por quê?
Quem mais mora aqui? – o homem insistiu, ignorando completamente a pergunta de Francesca.
Apenas meu filho e eu... Posso saber quem é o senhor?
O homem deu uma meia volta, coçando o queixo devagar.
Estranho... – disse, voltando-se outra vez para ela – A senhora parece jovem. O seu filho tem quantos anos?
O senhor me dê licença, per favore!
Mas o homem fez exatamente o contrário, colocou-se entre ela e o portão.
Porque me lembro – ele disse – de ter visto um homem entrar aí... Um pouco antes do amanhecer.
Signore, eu devo começar a pedir socorro?
Io non credo, signora – retorquiu abrindo um pouco a aba do casaco, deixando que ela visse o cabo de uma faca de caça que trazia junto à cintura. – Adesso, por que não abre a porta e me convida para entrar?



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segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A TRISTE HISTÓRIA DE ENRICO DEL FRARI IV

CAPÍTULO IV




Aconteceu como Marco havia dito.
Apenas meia hora depois daquele estranho ritual, Francesca levantou da cama e parecia ótima. Seu rosto recuperara o rubor e as olheiras simplesmente tinham desaparecido.
Enrico não entendia bem o que acabara de presenciar. No pulso de Marco não havia nem sinal de ferimento, mas a beirada da manga de sua camisa ainda estava suja de sangue. Como tinha feito aquelas coisas? Só podia ser um mágico, como havia dito. Não tinha outra explicação.
Além disso, ele cumpriu o que prometeu. Sua mãe, inexplicavelmente, estava ali, de pé. Havia recuperado a saúde. Quem a conhecesse agora não poderia sequer imaginar que há menos de uma hora estava tão doente, quase morta sobre a cama.
Ela, naturalmente, quis saber quem era aquele homem e o que fazia em sua casa. Não havia guardado nenhuma lembrança da experiência que acabara de viver. Foi quando Marco entendeu que o momento havia chegado – era hora de cobrar seu preço.
Com a elegância que lhe era típica, apresentou-se, depois iniciou uma longa e detalhada narrativa, desde o momento em que encontrou Enrico, às portas da Chiesa di Santa Maria, até aquela hora. Francesca ficou consternada com a exposição de sua miséria, mas também estava grata. Aquele homem, afinal, lhe inspirava um fascínio e uma inexplicável simpatia.
De sua parte, Marco elogiava a coragem e a inteligência de Enrico, seduzindo ainda mais a mãe do menino, que, àquela altura, estivera inconsciente a maior parte do tempo e pouco sabia dos revezes que o filho enfrentara. Com muito custo, o garoto havia conseguido garantir a sobrevivência deles dois e fez isso sozinho. Como não admirar tamanha tenacidade em alguém assim tão jovem?
Mas como, signore Marco, eu posso estar curada se os médicos dizem que não há remédio? – Francesca quis saber.
Com meu sangue – disse Marco, à queima roupa. – Mas não se engane, você ainda não está completamente sã. Vai precisar beber mais vezes, ou a doença voltará; e o único sangue que de fato lhe servirá para este fim é o meu.
A força de seu sangue, além de restabelecer a saúde de Francesca, parecia exercer algum efeito sobre sua vontade. A mulher olhava para ele com fascínio semelhante ao de um devoto diante de um santo no altar. Àquela altura, sua voz lhe parecia um eco de seus próprios pensamentos. Ela não ignorava esta reação incomum, mas também não era capaz de evitar.
Diga-me, signora – ele completou –, vai ou não querer viver para cuidar de seu filho?
Era uma pergunta definitiva e tinha mesmo este tom.
A mulher, sem ponderar, fez que sim com a cabeça.
Sábia escolha... – Marco sentenciou. – Vocês devem se mudar ainda hoje. Será um prazer imenso tê-los em minha humilde morada.



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segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A TRISTE HISTÓRIA DE HENRICO DEL FRARI III

CAPÍTULO TERCEIRO




O tratamento da tuberculose consistia em aumentar a imunidade do enfermo – o que se conseguia com repouso, clima frio, seco e uma alimentação apropriada. Apenas isso. Não havia um tratamento combativo. Esperava-se que o próprio organismo se curasse a si mesmo.
Algumas vezes, efetivamente, era o que ocorria. Algumas vezes. Quase todos acabavam morrendo depois de certo tempo, que se traduzia em anos ou apenas poucos meses. Tudo dependia do doente.
Agora vinha Marco, que dizia ser capaz de uma proeza impensável – curar um tuberculoso. E não era médico ou coisa parecida. Era mágico. Um mágico leitor de mentes.
Como ele faria, Enrico não sabia dizer, mas também não ousaria questionar de novo. Não queria irritá-lo. Afinal, se Marco tinha mesmo o poder que afirmava ter, talvez o pesadelo em que vivia finalmente terminasse. Essa possibilidade o enchia de esperança.
Foi assim que o levara pelas ruas e vielas da cidade, num atalho rumo ao sul do Centro Histórico. Da Piazza Vittoria até a casa onde morava, na via Cremona, era uma distância razoável, mas tamanha era a ansiedade de Enrico que fizeram o trajeto em pouco mais de dez minutos.
É aqui, signore Marco – disse o menino.
Era uma casa de paredes amarelas, descascadas pelo tempo. Percebia-se que outrora havia sido um lar, mas agora espelhava um mausoléu.
No jardim do frontispício, eram nítidas as marcas do abandono. Já quase não se podia distinguir os inços das folhagens cultivadas. Uma cerca rústica de arame separava o passeio do espaço da propriedade. Nela, um portãozinho de madeira, velho e empenado, dava acesso à área interna, abarrotada de insetos e sujeira.
Enrico foi na frente, abrindo caminho para Marco. Este, de sua vez, seguia o menino, estupefato com o avançado grau de decadência do lugar.
O mobiliário e o chão estavam cheios de poeira. Por toda parte, objetos espalhados e quebrados. Nos cantos das paredes, muitas teias de aranha, além de percevejos e baratas. Não soubesse que alguém vivia ali, pensaria estar abandonado.
Nada, porém, cheirava a azedo ou estragado. Embora houvesse vários cheiros que se misturavam – mofo e umidade, entre outros –, o de comida não estava entre eles. Marco não esteve na cozinha, mas, considerando o estado em que estava todo o resto, a conclusão era uma só: não se tinha mesmo o que comer ali.
Venha, signore, é por aqui – dizia Enrico, afoito, ao passo que subia apressado a escada de madeira que levava ao outro andar. Aquelas tábuas rangiam tanto que, por um momento, Marco achou que fossem desabar.
Implicância”, ele pensou. Mas não tardaria a descobrir que estava certo. Mal pisara na madeira da escada e já sabia a razão do tal barulho – estava infestada de cupins; e, pelo jeito, há bastante tempo.
Marco se agarrara ao corrimão, subindo com cuidado. De uma hora para outra, tudo aquilo podia vir abaixo.
Lá em cima, Enrico esperava ansioso às portas de um aposento entreaberto. De dentro desse quarto, uma luminosidade tênue escapava, revelando a silhueta moribunda de uma mulher. Um corpo lívido, descarnado, com olheiras fundas e arroxeadas, estirado sobre o leito.
Marco olhou para Enrico com clemência. Depois abriu o que faltava da porta e, muito devagar, caminhou até a cama.
Ela estava inconsciente.
Ele tirou a luva de uma das mãos e tocou-lhe a testa úmida. Ardia em febre. Tudo que Enrico havia dito era verdade. A mulher não duraria muito tempo mais.
Terrível sina! Pobre criança!”, Marco pensou.
A menos que fizesse o que tinha ido ali fazer, uma tragédia se avizinhava. Francesca estava mesmo condenada e Enrico, certamente, era o próximo. Afinal, depois de tanto tempo, a possibilidade dele não estar infectado era quase nula.
Marco, de repente, viu em si mesmo a única esperança. Voltou-se para a porta do aposento e, delicadamente, pôs as mãos nos ombros do menino.
É irônico que o remédio para um mal algumas vezes venha de outro, não acha?
Enrico respondeu com um olhar confuso. Não havia entendido nada.
Se eu fizer isto – Marco prosseguiu –, você também terá de fazer uma coisa por mim.
O quê? – Enrico perguntou.
No tempo certo – disse Marco. – mas você me dá a sua palavra?
Faço qualquer coisa!
Marco abriu um sorriso ― Foi o que pensei.
Ele tornou a entrar no quarto. Caminhou em direção ao leito, desta vez parando junto à cabeceira. Abriu o cinto e tirou o casaco, deixando-o de lado. Então, tirou a luva que faltava e dobrou a manga da camisa. Com a unha do indicador executou um gesto leve sobre o pulso. Imediatamente um ferimento se abriu, jorrando grande quantidade de um sangue espesso e escuro, quase viscoso.
Enrico, encostado no umbral da porta, assistia a tudo. Ao ver sangue que escorria do pulso de Marco, apavorou-se, levando as duas mãos à boca.
Marco parecia não se importar com a reação do jovem. Da maneira como agia, era como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.
Ele pousou o pulso ensanguentado sobre a boca de Francesca, tomando antes o cuidado de deixar que algumas gotas generosas lhe caíssem sobre os lábios.
Ela, numa forma de impulso instintivo, começara a sorver o que lhe era oferecido. De início, vagarosamente, mas a volúpia logo começava a mostrar suas formas. Em pouco tempo, ela já pressionava o pulso dele em sua boca e bebia aquele sangue amaldiçoado como se fosse o próprio néctar da vida.
Pare! – Enrico interveio. – O que você está fazendo?!
Acalme-se, bambino – disse Marco, quase sussurrando. – O corpo moribundo quase sempre reconhece o remédio.
Não fosse aquela uma situação tão pavorosa e Enrico poderia jurar que Marco estava gostando. A expressão no rosto dele era alguma coisa parecida com prazer, enquanto sua mãe se alimentava de sangue vivo como um sedento do deserto no oásis. Enrico estava mesmo assustado.
A certa altura, Marco começou a ofegar. Foi quando ele forçou o pulso para longe dos lábios de Francesca e, num gesto brusco, afastou-se da cabeceira da cama.
Parecia cansado depois. Sua pele aveludada tornara-se ainda mais branca, embora, na aparência, estivesse menos radiante. Os pequenos vasos, antes rosados e quase imperceptíveis, evidenciavam-se avermelhados por toda a parte visível de seu corpo. De seus olhos se esvaíra toda a cor.
Enquanto isso, sobre a cama, Francesca contorcia-se, gemendo e soluçando.
Completamente atordoado, Enrico, apenas uma criança, não sabia se aquilo era dor ou outra coisa.
O que há com ela? Você disse que ela ficaria bem!
Ela ficará bem, caríssimo – disse Marco, ainda arquejando. – Você vai ver.



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terça-feira, 15 de setembro de 2015

A TRISTE HISTÓRIA DE ENRICO DEL FRARI II

CAPÍTULO SEGUNDO


Chiesa di Santa Maria dei Miracoli, Brescia.

Francesca acordou um tempo depois, em cima de uma maca improvisada na enfermaria da fábrica. Ainda sentia frio e seus lábios estavam ressequidos.
Um cheiro muito forte, um tanto ácido, agredia-lhe as narinas. Amoníaco – ela logo reconheceu. Deviam ter usado para lhe trazer de volta à consciência.
Francesca não chegara a passar um tempo muito longo desacordada. Mesmo assim, aquele episódio acabaria por custar-lhe o emprego. Diante dela, o gerente do primeiro turno e outros dois funcionários, um tanto assustados; haviam sido escolhidos para acompanhá-la até em casa.
A fábrica não podia correr riscos. O caso de Francesca não era o primeiro num espaço de tempo bastante curto e se a doença se espalhasse mais ainda entre os empregados, logo haveria um surto e eles teriam de fechar.
Até aquele momento, quantos estariam infectados sem saber?
Francesca, por sua vez, parecia mesmo abandonada pela sorte. Sem marido, sem saúde e agora sem emprego. Sabia que no desespero não estava a salvação; mesmo assim, quem poderia lhe culpar? Na situação em que se achava, ainda restava descobrir o que fazer com uma criança. Como não fazia idéia, limitava-se a chorar.
O pior era que o choro agravava a tosse. Quanto mais chorava, mais tossia e tossia tanto que de vez em quando se engasgava em suas próprias secreções.
Os colegas, desolados, lamentavam internamente, mas lamento, naquele momento, era tudo o que podiam oferecer. Era um tempo atroz. A recessão se espalhava como nuvens em céu de tempestade. A possibilidade de contágio era real e ninguém queria para si aquela sorte.
Infelizmente para Francesca, a solidariedade era algo com o que também não poderia contar. É claro que chegara a procurar um médico depois. No fundo, tinha a esperança de que fosse outra coisa. O diagnóstico, entretanto, foi confirmado: tuberculose.
Para a tuberculose não havia cura, então. Existia uma vacina, mas no caso de Francesca era inútil. Já estava infectada. A vacina funcionava como prevenção. Talvez devesse ter pensado nisso antes, mas o dinheiro já era curto demais para a comida. Àquela altura, não havia mais nada que pudesse ser feito. Era apenas uma questão de tempo.
Neste momento cruciforme, em que a doença fatalmente levaria sua vida, coube a Enrico uma atitude ao mesmo tempo valente e desesperada. Vendo a despensa cada dia mais vazia e a mãe que definhava diante de seus olhos, o menino, que não tinha a quem recorrer, foi às ruas. Ele pegou uma lata vazia de óleo da cozinha e começou a mendigar.
Em sua busca por sustento, andava por toda parte, fizesse frio ou chuva. Colocava-se em esquinas, cruzamentos, uns dias num, outros dias noutro, alternando de acordo com o trânsito de pessoas, mas também com a disposição com que lhe recebiam – ou a falta dela.
Muitas foram as ocasiões em que foi enxotado ou mal tratado. Com frequência precisava esquivar-se da polícia ou de algum comerciante que simplesmente não podia admitir a presença de um mendigo, ainda que ele fosse apenas uma criança faminta. Mais de uma vez, apanhou. Escurraçado, via-se obrigado a procurar por pontos mais tranquilos. Algumas vezes ia para a porta das igrejas – e eram muitas –, esperando, no final das missas, pela generosidade dos fiéis.
O que ganhava não era muito, naturalmente, mas ao menos dava para comprar pão, leite e, algumas vezes, manteiga. No final, ainda sobravam alguns centesimi di lira, que o menino diligentemente juntava para aqueles dias em que a sorte não estivesse a seu favor.
Então, em uma noite muito fria, Enrico estava parado, todo encolhido com sua latinha, na frente da Chiesa di Santa Maria dei Miracoli. Anoitecera havia poucas horas, mesmo assim a via estava deserta e a igreja, quase vazia. Aquela noite não prometia coisa alguma, mas Enrico estava com tanto frio que seus ossos doíam. Não lhe restava disposição nem mesmo para sair do lugar.
Ele ficou ali parado, por incontáveis horas. O olhar perdido no nada. Sua mente livre de qualquer expectativa, completamente vazia. A única coisa que sentia, além do frio e da dor, era o som e o calor reconfortante da própria respiração. Nesse estado de completo abandono, Enrico, de repente, se surpreendeu ao ver um homem muito bem vestido e de andar garboso dobrando a esquina.
Parecia uma visão. Ele usava um longo sobretudo preto, muito elegante, daqueles com quatro botões e, mais ou menos na altura do quadril, por entre os passadores, um cinto de couro na mesma cor. A calça, que se podia ver por baixo do casaco, mesmo ele estando fechado, era cinza e tinha vincos impecavelmente marcados. A blusa, embora estivesse escuro, parecia ser de um marrom semelhante à terracota e a gravata, com um nó irrepreensível, era da mesma cor da calça e do chapéu.
O chapéu, por sua vez, com a gebada bem insinuada, não parecia barato. Tinha o cinteiro preto combinando com o casaco. Ele o usava inclinado ligeiramente para o lado esquerdo de quem via. Suas mãos, bem protegidas por um par de luvas também de couro, procuravam por abrigo nos bolsos do casaco. Em seus pés, lustrosos sapatos com solado de madeira completavam o conjunto de acessórios.
Mas não era só pela maneira como se vestia que aquele homem chamava atenção. Era também pelo seu rosto, pela sua fisionomia por assim dizer. Para começar, ele era aquilo que podia se chamar de lindo. O rosto quadrado, másculo, não tinha sinal de barba e servia de moldura perfeita para lábios, de tão voluptuosos e avermelhados, quase obscenos. O nariz era afilado, proeminente e lhe dava um aspecto nobre; sim, parecia o nariz de um príncipe ou coisa que o valha. Mas o destaque maior, sem dúvida nenhuma, era para aqueles olhos gláucos, de um cinza tão profundo e claro que por pouco pareciam não ter cor. Sobre eles, insinuantes – e espessas – sobrancelhas, tão escuras quanto os poucos fios de cabelo que escapavam do chapéu.
Ainda havia a tonalidade da pele. Sua tez era clara, mas não um claro natural, como era, por exemplo, o da pele de Enrico. Era um claro pétreo, marmóreo e ainda refletia um fulgor misterioso, quase uma luminescência. Embora discreta, era efetiva e... Bizarra.
Existia algo de incompreensível e estranho naquele homem. Ele era díspar, atraente e, de todo modo, intrigante, mas infundia também um pouco de medo. A composição de sua imagem complexa causava perplexidade e Enrico simplesmente não podia desviar os olhos dele.
O homem, de sua parte, caminhava parecendo ensimesmado em sua direção. A certa altura, percebeu que estava sendo observado e esboçou um sorriso. O coração de Enrico disparou.
Em lugar de estender a latinha de óleo, o menino encolheu-se mais ainda na calçada. O homem pareceu surpreso com aquela reação. Parou diante dele e tirou algumas notas da carteira.
Eram vinte liras. A esmola mais generosa que Enrico recebera até então. Mesmo assim, alguma coisa bloqueava sua voz. Não saía nem um “Deus lhe pague” ou um simples “obrigado”.
Pobre criança – disse o homem. – É sua mãe, não é? O que ela tem?
Enrico arregalou os olhos.
Andiamo, bambino – o homem insistiu. Pode confiar em mim.
Como... Como o signore sabe da minha mãe – gaguejava Enrico, assustado.
O homem riu.
São seus pensamentos, caro mio – disse, apontando para a cabeça de Enrico. Eles gritam tanto que é impossível não ouvir.
O signore pode... Ler meus pensamentos?
O homem riu outra vez.
Meu nome é Marco... Marco D’Ângelo. E o seu?
Enrico Del Frari.
Va bene, Enrico. Piacere! Por que não fazemos o seguinte?... Você deve estar faminto. Eu posso te pagar um lanche, enquanto você me conta da sua mãe. O que me diz?
Marco acertara nisso também – Enrico estava mesmo faminto. Não comera nada o dia inteiro e, não fosse pela esmola dadivosa que acabara de ganhar, não havia conseguido garantir sequer o pão. Ainda que desconfiasse da sinceridade das intenções de Marco, aquele não era um convite que pudesse recusar.
Enrico levantou e foi com ele pela via. A partir de certo ponto, a Corso Martiri della Libertà passava a se chamar Fratelli Porcellaga. Eles caminharam alguns metros mais, depois dobraram à direita, passando pela Università di Brescia. Só um pouco adiante estava a Piazza della Vittoria, para onde Marco parecia estar se encaminhando.
O percurso não durara mais que cinco minutos.
Na maior parte do tempo, Enrico permaneceu com o semblante baixo, mas olhava para Marco vez ou outra de relance. Alguma coisa o intrigava nele. Algo entre a beleza exagerada e a temeridade sugerida, que, no entanto, era incapaz de definir.
Marco, por outro lado, não desviara o olhar sequer por um instante. Não que ignorasse o assombro de Enrico. Absolutamente. Sabia o que passava em sua mente e até se divertia com aquilo. Sua atitude transbordava confiança. Ele estava no controle.
Eles acabaram indo para o Caffe’ Impero, um lugar de atmosfera um tanto refinada para o que Enrico estava acostumado. Marco foi direto para as escadas que levavam ao segundo andar, onde havia mesas e cadeiras em um ambiente menos devassado.
No canto da escada, havia uma chapeleira, sobre a qual deixara seu chapéu. Ele tirou as luvas, guardando-as no bolso do casaco, depois foi se sentar, indicando com as mãos para que Enrico fizesse o mesmo.
Ouvi dizer que os brioschi são muito bons! – ele disse. Por que você não experimenta? A não ser, é claro, que prefira outra coisa.
Aceito o briosche, grazie.
E então?... Que razão terrível levaria um jovenzinho encantador como você a esmolar na porta da chiesa?
Enrico respirou fundo e baixou a cabeça.
Eu junto dinheiro para comprar comida, signore. Depois que papà morreu na guerra e mamma ficou doente, não temos mais como comer.
Coisa mais triste, bambino!... Você é o único filho que seus pais tiveram?
Sou, sim.
O que aconteceu com sua mãe? Que tipo de doença ela tem?
A expressão no rosto de Enrico modificara-se completamente. Seu olhar se desviou, perdendo-se em muitas direções. Seus lábios contraíram e o brilho repentino em seus olhos denunciava a súbita emoção.
Peste Branca!
A palavra veio dos lábios de Marco.
O médico disse que não pode fazer nada... Eu fico vendo o sofrimento dela e me pergunto o que vai ser... Não tenho mais ninguém.
Marco recostou-se na cadeira e, por um momento, avaliou Enrico com cuidado. O destino parecia providencial ao arranjar aquele encontro. De imediato, ocorrera-lhe uma idéia, mas a decisão de acatá-la exigia ser pensada com cautela. Era muito séria para ser tomada num assalto, com frivolidade.
Onde ela está agora? – perguntou, por fim.
Em casa, signore – disse Enrico.
Bene... E se eu lhe dissesse que posso curá-la?
Enrico arregalou os olhos. Uma lágrima solitária escorreu-lhe pelo canto da face.
Como?!...
Como não importa, bambino. Lembra da coisa com os pensamentos? Considere que eu seja um mágico. Um mágico bastante poderoso. O importante é: você aceitaria ou não? Porque isso teria um preço, é claro...
Mas é claro que sim, signore! – Enrico respondeu afoito, sem pensar. Ele não pareceu ouvir as últimas palavras de Marco. Ou talvez tenha deliberadamente escolhido ignorá-las.
Ótimo. Temos um acordo. Leve-me até ela.



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