quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

O LEÃO, A ESPADA E O ESPELHO





Do Castelo Ichime até Renga Murai, onde Akodo Sakurajima vivia desde o dia em que nasceu, não era tão distante. Pouco mais de um dia de viagem. Na volta para casa, ele havia rejeitado o palanquin. Iria a cavalo. E iria devagar. Isso lhe daria tempo para pensar.

Aquele estava sendo um ano movimentado. Ao menos para ele, acostumado à rotina repetitiva dos tempos da Escola Akodo. Agora compreendia algo melhor a coisa em que seu professor lhe havia enfiado, embora estivesse longe de entender o que viu naquela noite que insiste em querer escapar-lhe da memória – apertou o pequeno maço de folhas de arroz escondido sob seu obi.

Depois veio o Campeonato de Topázio, na Escola Kakita, há cerca de um ano. O assassinato de Ichiro Akitomo, senhor de um clã menor, de quem ele jamais ouvira falar. É de se espantar que uma enxurrada tão avassaladora de emoções e acontecimentos tenha se seguido a este fato simples: o assassinato covarde e desonroso de um daimyo dentro da mais célebre escolas da Garça, na presença das figuras mais ilustres da corte e do próprio imperador.

A pequena samurai do Unicórnio, Otaku Shiko, estava no lugar errado e na hora errada. Acusou publicamente dois bushis do Escorpião, depois de ter visto um deles limpar o fio da katana ensanguentada. A tradição de decidir a verdade no corte da lâmina foi evocada. A honrada Shiko-san desafiada para um duelo, que, é claro, não tinha condições de vencer.

E foi precisamente neste ponto que tudo começou a mudar, não foi? Ele olhou para a pequena – mas enorme – samurai do Unicórnio. Ali, diante de todos, ingenuamente falando a verdade. E ela morreria por isso. Seu assassino, possivelmente o assassino de outros homens inocentes, veria a própria honra fortalecida diante de todos no final. E Shiko, de justo coração e alma nobre, uma desonrada e mentirosa.

A morte de Bayushi Sugai não lhe pesava nem um pouco a consciência. Não havia derramado sangue antes, mas estava feliz que sua primeira morte tivesse sido a dele. Com apenas um movimento, havia conseguido preservar a honra de alguém que realmente tinha honra e livrar a face do mundo de um entre tantos vermes. Mas esse movimento acabou por tornar-se um entre seus muitos segredos. Deu-lhe a valorosa amizade de Shinjo Temudjin, é verdade, mas custou a vida do imprudente Mirumoto Oroshi e da desafortunada Asahina Suzuku – cujo irmão acabara de conhecer, mas para quem nada podia revelar.

Neste momento, lembrou-se dos olhos dela. Não os de Suzuku. Aqueles lindos olhos negros, brilhantes de veneno, atrás da máscara de borboleta – um suspiro. Foi inevitável. Seria tão infame quanto ele achava que era desejar assim, ardentemente, a provável responsável pelo assassinato de Oroshi-san? Como era possível sentir, ao mesmo tempo, atração e repulsa pela mesma pessoa?

Estava, desta forma, perdido em pensamentos, em seus intermináveis dilemas, de maneira que, quando deu por si, já estava diante de Shiro no Shinin, o castelo de sua família. Um criado dos estábulos já se aproximava para recolher a montaria e alimentar o animal.

Ele desceu do cavalo, acenou com a cabeça para o rapaz, que curvou-se reverentemente. Depois disso, sem dizer palavra alguma, seguiu para seus próprios aposentos. Uma serva, um pouco histérica, interpelou-o no meio do caminho:

Sakurajima-sama! O senhor está de volta! Vou mandar avisar Akodo-sama! Quer que mande lhe preparar um banho?
— Não!

Uma vez em seu quarto, fechou a porta, tirou o haori, sacou o pequeno volume de folhas de arroz de baixo do obi e procurou pelo vasilhame de sumi com o pincel. Precisava escrever a experiência no castelo Ichime antes que ela desaparecesse da lembrança.

Seu pai, que estava ocupado em uma das muitas campanhas militares, havia lhe enviado ao castelo naquele verão quando chegou a notícia da morte de seu velho amigo e companheiro de batalhas, Akodo Maouri, em circunstâncias misteriosas. A ordem do pai acabou por resultar em uma investigação curiosa e instigante, rica em detalhes inescapáveis, como símbolos há muito esquecidos, maldições, amores proibidos e venenos desconhecidos. Mas a memória humana – ele havia aprendido com sua mãe – era frágil e efêmera como a própria vida. Tudo o que dá sentido à vida são as histórias que ela conta e é preciso escrevê-las, porque a vida de alguém dura tanto tempo quanto dura a sua história.

Ele estava iniciando o registro dos últimos dias, com seu mirabolante desfecho, quando o som da porta de seu quarto deslizando para a frente e para trás anunciou a presença de alguém. Ele se virou para olhar. Era um dos yojimbos de sua mãe.

— Sakurajima-sama, Makoto-sama foi avisada de seu regresso e exige que você vá imediatamente ao quarto dela.

Ele pousou o pincel de volta no sumi, mas tomou o cuidado de enrolar os papéis e guardá-los novamente sob o obi. Porque ali havia informações perigosas demais para que fosse seguro distanciar-se delas, até mesmo em sua própria casa.

O yojimbo, com cara de poucos amigos, escoltou-o até os aposentos de sua mãe. Sakurajima fitava a expressão do samurai com o canto dos olhos, e precisou conter uma risada ao imaginar a mente do homem conjecturando Makoto-sama ordenando ao próprio filho que cometesse seppuku.

Ele abriu a porta e, com o rosto quase colado no chão, anunciou o jovem senhor, que aguardava do lado de fora. Uma voz suave, quase cantada, ininteligível, ressoou. E o yojimbo, colocando-se ao lado da porta, abriu caminho para Sakurajima passar.

— É só, Kazuo – ela disse, agora perfeitamente compreensível. Pode ir agora.
— Hai!

Sakurajima ficou ali parado, do lado de dentro do aposento. Ele apenas ouviu o som da porta se fechando atrás de si.

De pé diante da grande sacada que dava para os jardins de cerejeiras do lado de fora, ela trançava os cabelos, negros e lisos como um véu de seda. Vestia um kimono amarelo muito claro, estampado com imaculadas orquídeas brancas. Sua silhueta, assim, contra a luz do dia, parecia uma pintura. O quarto todo cheirava a jasmin.

Ela se virou. Olhava para ele altiva, o rosto sério. Ele devolvia o olhar, de baixo, o pescoço ligeiramente inclinado. Foi quando notou um brilho prateado junto às têmporas de sua mãe. Seus cabelos não eram mais tão negros, afinal. Estavam embranquecendo. Mas ela, de maneira nenhuma, aparentava outros sinais da idade.

Ficaram se olhando assim por algum tempo. Os pássaros piavam lá fora, mas, ali dentro, tudo estava silencioso. Uma ligeira tensão no ar. Então, praticamente ao mesmo tempo, seus lábios desenharam um sorriso. Um sorriso que foi se abrindo até não ter nenhum pudor.

— Saku-kun – ela disse –, seu moleque levado! Como você pode simplesmente chegar e não vir na mesma hora abraçar e beijar sua pobre mãe?! Quer que ela morra de saudade, filho ingrato?

Eles se abraçaram e ela o encheu de beijos em todas as partes do rosto.

— É claro que eu viria, mãe. Assim que terminasse de fazer as últimas anotações sobre o estranho caso de Maouri-sama.

Ele sabia a maneira certa de agradá-la.

— Ah, sim! Quero que você me conte tudo sobre isso! Imagine que conheci Maouri-sama pessoalmente. Cá entre nós, o achava mais bonito que seu pai na juventude – uma risadinha faceira. Coisa terrível o que aconteceu com ele! Os rumores sobre a tal maldição estavam certos?

— Não. Mas tudo foi feito para parecer que sim. Imagine que a estranha marca encontrada no peito de Bakusho-sama, pai de Maouri-sama, era apenas o símbolo da irmandade a que ele pertenceu quando treinou na escola Akodo. Gerou todo aquele burburinho porque ninguém conhecia o seu significado, nem mesmo Maouri-sama. O assassino aproveitou o mito que se formou em torno da marca para fazer parecer que Maouri-sama havia sido vítima da mesma maldição que vitimara seu pai.

Ela fez uma expressão de espanto que mais parecia encenação de kabuki.

— Agora, a melhor parte – ele prosseguiu – o assassino não matou Lord Maouri com suas próprias mãos. Maouri-sama amava uma gueixa, de nome Amai. Com ela teve um filho bastardo e permitiu que eles vivessem no castelo. O assassino chantageou Amai. Não sei de que modo, mas ele se infiltrou no castelo disfarçado como o karo de Maouri-sama, Matsu Nari. E ameaçou matar o filho de Amai se ela não fizesse o que ele mandava. Então, todas as noites, a gueixa usava a intimidade que tinha com Lord Maouri para pintar aquele mesmo símbolo em seu peito. O que ela não sabia, porque não tinha como saber, era que a tinta havia sido preparada com um veneno que a pele absorve. Hakenka-sama, filho de Lord Maouri, seria a próxima vítima.

Ele não falou sobre o ataque das criaturas invisíveis, que sumiram tão rapidamente quanto surgiram. Também não mencionou o homem vestido de branco, escalando a parede de pedra atrás dos aposentos de Maouri-sama. Isso apenas ele viu.

— Que história, Saku-kun – disse Makoto-sama, acariciando o rosto do filho. Um dia, a história de suas aventuras inspirará as crianças, como as histórias de nossos ancestrais inspiraram você!

“É uma pena que boa parte delas nunca poderão ser ditas a ninguém...”, ele respondeu em pensamento.

Pouco tempo depois, ela estava sentada na quina de sua cama. Segurava um cacho de uvas numa mão. Com a outra, acariciava os cabelos negros de Sakurajima, deitado sobre suas coxas.

— Eu já lhe contei como escolhi o seu nome? – Makoto-sama perguntou.
— Não.
Mentira. Ela riu.
— Você é um mentiroso. Deve ter puxado ao seu pai.
Agora foi a vez dele rir.
— Eu gosto de ouvir você contar – ele disse.
Agora era verdade. Ela respirou fundo.
— Quando eu tinha a sua idade, meu pai foi convocado por nosso daimyo para acompanhar uma missão diplomática nas montanhas da Fênix. Eu insisti que queria conhecer as terras da Fênix e consegui convencê-lo a me levar junto. Foi quando conheci seu pai – uma risadinha. E naquelas montanhas, você sabe, existe um vulcão. É um vulcão terrível, que, segundo ouvi de um shuguenja chamado Shiba Hayato, está em atividade desde a queda dos kamis. Em uma ocasião, seus rios de lava quente se espalharam por toda a região, alcançando uma vila que ficava relativamente distante. A vila foi inteiramente destruída e muitas pessoas morreram.

Sakurajima franziu a testa.

— Essa parte você nunca havia me contado. Por que me deu o nome de um vulcão que já causou tanta desgraça?
Ela sorriu levemente com o canto dos lábios.
— Foi por causa do seu pai. Quando você nasceu e eu pude olhar em seus olhos, era como se estivesse olhando os olhos dele. E eu soube, naquele momento, que você seria como ele é. Forte, impetuoso, devastador. Sempre procurando a guerra. Mas Sakurajima é um vulcão diferente. A lava que ele jorra é especial, como quase todas as coisas naquelas montanhas. Ela destrói quando quente, mas abençoa quando fria. E é por causa disso que em sua encosta há um lago de beleza estonteante, ao redor do qual frutifica uma floresta de cerejeiras, como estas em nosso jardim.
— Monte da flor de cerejeira – ele murmurou com os olhos arregalados, como se estivesse tentando assimilar o que acabara de ouvir.

Som de passos pesados no corredor, do lado de fora.

Sakurajima, instintivamente, levantou do colo da mãe e prostrou-se no chão, ajoelhado diante da porta, que abriu-se segundos depois sem nenhuma cerimônia.

— Aqui está você – disse o homem alto, forte, de expressão dura e voz anasalada do outro lado.
— Imazu-sama! – disse Sakurajima.
— Como foi no castelo Ichime? Bem, eu imagino...
— Sim. O senhor quer ouvir meu relato agora?
— Não. Não temos tempo para isso, Akodo-san. Enquanto você estava fora, os exércitos da Garça invadiram e sitiaram Toshi Ranbo. A guerra começou. Arrume suas coisas. Estamos indo para Shiro Akodo.

E sem dizer mais nada, Imazu virou-se e saiu.

Sakurajima voltou-se para a mãe. O olhar confuso.

— Tem acontecido muita coisa por aqui, Saku-kun. Nosso clã não vive seus melhores dias – ela disse. Akodo Daio caiu doente e Toturi-sama voltou do mosteiro para cuidar do pai. Ninguém pode dizer quanto tempo o daimyo ainda viverá e você pode imaginar a situação entre Toturi e Arasou-sama.

Akodo Toturi, três anos mais velho que o irmão, Arasou, seria, pela tradição, o sucessor por direito de Matsu Daio, o daimyo do Leão. Mas Toturi havia desapontado o pai desde a infância por mostrar, sem pudores, sua preferência pelos livros em lugar da espada. Arasou-sama, no entanto, ao contrário do irmão, parecia ter saído ao sangue ensandecido das Matsu. Era um guerreiro destemido e sanguinário. Há algum tempo, ele liderara uma campanha vitoriosa contra o Unicórnio e foi aclamado sucessor do daimyo por causa disso. Toturi-sama, como sempre, estava fora das terras do Leão, estudando numa das muitas escolas do Império.

Sakurajima havia crescido admirando Toturi por sua inteligência e sagacidade. Em grande parte, é verdade, por influência de Makoto-sama, já que o viu pessoalmente pouquíssimas vezes. Mas um Leão honrado não tem outra opção a não ser já nascer segurando uma espada. Em grande parte, é verdade, graças à eterna rivalidade com os Matsu.

Akodo-kami era, certamente, um guerreiro temível, mas um homem inteligente. Ele criou o próprio conceito de samurai e reuniu consigo pessoas tão diferentes que chegavam a ser inconciliáveis, mas que eram, em si mesmas, verdadeiras expressões de virtudes especiais. Matsu, a guerreira que não conhecia o medo. E Ikoma, o ancião falastrão que lhe ensinara que o caminho para a vitória nem sempre era a força. Hantei-kami sabia disso, não sabia?

Mas Matsu, desde o início, mostrara mais que simples atração pelo calor da batalha. Ou você acha que foi para salvar a vida do filho de Ikoma que ela tomou o seu lugar no Dia do Trovão?

A descendência dela não tem feito diferente desde então. Miram o poder, mas querem tomá-lo pela força. Sua impetuosidade, ao longo dos tempos, acabou por dar aos samurais do Leão um sentido diferente daquele imaginado por Akodo Caolho. Tanto que até mesmo Imazu-sama apoiava Arasou na sucessão do clã.

Toturi é bom. Ele tem Kage-sama. Mas está muito sozinho.

Sakurajima, assim, obedeceu à ordem de seu pai. Deu um beijo em Makoto-sama, rearrumou a sacola de viagem e seguiu caminho para Shiro Akodo.

Tsuko-sama, a herdeira na linhagem de sucessão dos Matsu também estava lá. Ele olhava para ela, o porte imponente, a expressão num misto de desdém e fúria. Uma leoa honrada. Orgulhosa de sua própria força. O desprezo por Toturi visivelmente escapando por sua pele.

Sakurajima não pôde furtar-se de lembrar as palavras do velho Ikoma a Akodo Caolho, que Makoto-sama lhe havia repetido muitos anos atrás: “honra é uma palavra bonita, mas não vai salvar a sua vida.” E, no fim, o espelho de Hantei derrotou o braço forte de Akodo.


Ele apenas perguntava a si mesmo – quem segurará o espelho diante do Leão agora?