segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A TRISTE HISTÓRIA DE ENRICO DEL FRARI IV

CAPÍTULO IV




Aconteceu como Marco havia dito.
Apenas meia hora depois daquele estranho ritual, Francesca levantou da cama e parecia ótima. Seu rosto recuperara o rubor e as olheiras simplesmente tinham desaparecido.
Enrico não entendia bem o que acabara de presenciar. No pulso de Marco não havia nem sinal de ferimento, mas a beirada da manga de sua camisa ainda estava suja de sangue. Como tinha feito aquelas coisas? Só podia ser um mágico, como havia dito. Não tinha outra explicação.
Além disso, ele cumpriu o que prometeu. Sua mãe, inexplicavelmente, estava ali, de pé. Havia recuperado a saúde. Quem a conhecesse agora não poderia sequer imaginar que há menos de uma hora estava tão doente, quase morta sobre a cama.
Ela, naturalmente, quis saber quem era aquele homem e o que fazia em sua casa. Não havia guardado nenhuma lembrança da experiência que acabara de viver. Foi quando Marco entendeu que o momento havia chegado – era hora de cobrar seu preço.
Com a elegância que lhe era típica, apresentou-se, depois iniciou uma longa e detalhada narrativa, desde o momento em que encontrou Enrico, às portas da Chiesa di Santa Maria, até aquela hora. Francesca ficou consternada com a exposição de sua miséria, mas também estava grata. Aquele homem, afinal, lhe inspirava um fascínio e uma inexplicável simpatia.
De sua parte, Marco elogiava a coragem e a inteligência de Enrico, seduzindo ainda mais a mãe do menino, que, àquela altura, estivera inconsciente a maior parte do tempo e pouco sabia dos revezes que o filho enfrentara. Com muito custo, o garoto havia conseguido garantir a sobrevivência deles dois e fez isso sozinho. Como não admirar tamanha tenacidade em alguém assim tão jovem?
Mas como, signore Marco, eu posso estar curada se os médicos dizem que não há remédio? – Francesca quis saber.
Com meu sangue – disse Marco, à queima roupa. – Mas não se engane, você ainda não está completamente sã. Vai precisar beber mais vezes, ou a doença voltará; e o único sangue que de fato lhe servirá para este fim é o meu.
A força de seu sangue, além de restabelecer a saúde de Francesca, parecia exercer algum efeito sobre sua vontade. A mulher olhava para ele com fascínio semelhante ao de um devoto diante de um santo no altar. Àquela altura, sua voz lhe parecia um eco de seus próprios pensamentos. Ela não ignorava esta reação incomum, mas também não era capaz de evitar.
Diga-me, signora – ele completou –, vai ou não querer viver para cuidar de seu filho?
Era uma pergunta definitiva e tinha mesmo este tom.
A mulher, sem ponderar, fez que sim com a cabeça.
Sábia escolha... – Marco sentenciou. – Vocês devem se mudar ainda hoje. Será um prazer imenso tê-los em minha humilde morada.



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segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A TRISTE HISTÓRIA DE HENRICO DEL FRARI III

CAPÍTULO TERCEIRO




O tratamento da tuberculose consistia em aumentar a imunidade do enfermo – o que se conseguia com repouso, clima frio, seco e uma alimentação apropriada. Apenas isso. Não havia um tratamento combativo. Esperava-se que o próprio organismo se curasse a si mesmo.
Algumas vezes, efetivamente, era o que ocorria. Algumas vezes. Quase todos acabavam morrendo depois de certo tempo, que se traduzia em anos ou apenas poucos meses. Tudo dependia do doente.
Agora vinha Marco, que dizia ser capaz de uma proeza impensável – curar um tuberculoso. E não era médico ou coisa parecida. Era mágico. Um mágico leitor de mentes.
Como ele faria, Enrico não sabia dizer, mas também não ousaria questionar de novo. Não queria irritá-lo. Afinal, se Marco tinha mesmo o poder que afirmava ter, talvez o pesadelo em que vivia finalmente terminasse. Essa possibilidade o enchia de esperança.
Foi assim que o levara pelas ruas e vielas da cidade, num atalho rumo ao sul do Centro Histórico. Da Piazza Vittoria até a casa onde morava, na via Cremona, era uma distância razoável, mas tamanha era a ansiedade de Enrico que fizeram o trajeto em pouco mais de dez minutos.
É aqui, signore Marco – disse o menino.
Era uma casa de paredes amarelas, descascadas pelo tempo. Percebia-se que outrora havia sido um lar, mas agora espelhava um mausoléu.
No jardim do frontispício, eram nítidas as marcas do abandono. Já quase não se podia distinguir os inços das folhagens cultivadas. Uma cerca rústica de arame separava o passeio do espaço da propriedade. Nela, um portãozinho de madeira, velho e empenado, dava acesso à área interna, abarrotada de insetos e sujeira.
Enrico foi na frente, abrindo caminho para Marco. Este, de sua vez, seguia o menino, estupefato com o avançado grau de decadência do lugar.
O mobiliário e o chão estavam cheios de poeira. Por toda parte, objetos espalhados e quebrados. Nos cantos das paredes, muitas teias de aranha, além de percevejos e baratas. Não soubesse que alguém vivia ali, pensaria estar abandonado.
Nada, porém, cheirava a azedo ou estragado. Embora houvesse vários cheiros que se misturavam – mofo e umidade, entre outros –, o de comida não estava entre eles. Marco não esteve na cozinha, mas, considerando o estado em que estava todo o resto, a conclusão era uma só: não se tinha mesmo o que comer ali.
Venha, signore, é por aqui – dizia Enrico, afoito, ao passo que subia apressado a escada de madeira que levava ao outro andar. Aquelas tábuas rangiam tanto que, por um momento, Marco achou que fossem desabar.
Implicância”, ele pensou. Mas não tardaria a descobrir que estava certo. Mal pisara na madeira da escada e já sabia a razão do tal barulho – estava infestada de cupins; e, pelo jeito, há bastante tempo.
Marco se agarrara ao corrimão, subindo com cuidado. De uma hora para outra, tudo aquilo podia vir abaixo.
Lá em cima, Enrico esperava ansioso às portas de um aposento entreaberto. De dentro desse quarto, uma luminosidade tênue escapava, revelando a silhueta moribunda de uma mulher. Um corpo lívido, descarnado, com olheiras fundas e arroxeadas, estirado sobre o leito.
Marco olhou para Enrico com clemência. Depois abriu o que faltava da porta e, muito devagar, caminhou até a cama.
Ela estava inconsciente.
Ele tirou a luva de uma das mãos e tocou-lhe a testa úmida. Ardia em febre. Tudo que Enrico havia dito era verdade. A mulher não duraria muito tempo mais.
Terrível sina! Pobre criança!”, Marco pensou.
A menos que fizesse o que tinha ido ali fazer, uma tragédia se avizinhava. Francesca estava mesmo condenada e Enrico, certamente, era o próximo. Afinal, depois de tanto tempo, a possibilidade dele não estar infectado era quase nula.
Marco, de repente, viu em si mesmo a única esperança. Voltou-se para a porta do aposento e, delicadamente, pôs as mãos nos ombros do menino.
É irônico que o remédio para um mal algumas vezes venha de outro, não acha?
Enrico respondeu com um olhar confuso. Não havia entendido nada.
Se eu fizer isto – Marco prosseguiu –, você também terá de fazer uma coisa por mim.
O quê? – Enrico perguntou.
No tempo certo – disse Marco. – mas você me dá a sua palavra?
Faço qualquer coisa!
Marco abriu um sorriso ― Foi o que pensei.
Ele tornou a entrar no quarto. Caminhou em direção ao leito, desta vez parando junto à cabeceira. Abriu o cinto e tirou o casaco, deixando-o de lado. Então, tirou a luva que faltava e dobrou a manga da camisa. Com a unha do indicador executou um gesto leve sobre o pulso. Imediatamente um ferimento se abriu, jorrando grande quantidade de um sangue espesso e escuro, quase viscoso.
Enrico, encostado no umbral da porta, assistia a tudo. Ao ver sangue que escorria do pulso de Marco, apavorou-se, levando as duas mãos à boca.
Marco parecia não se importar com a reação do jovem. Da maneira como agia, era como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.
Ele pousou o pulso ensanguentado sobre a boca de Francesca, tomando antes o cuidado de deixar que algumas gotas generosas lhe caíssem sobre os lábios.
Ela, numa forma de impulso instintivo, começara a sorver o que lhe era oferecido. De início, vagarosamente, mas a volúpia logo começava a mostrar suas formas. Em pouco tempo, ela já pressionava o pulso dele em sua boca e bebia aquele sangue amaldiçoado como se fosse o próprio néctar da vida.
Pare! – Enrico interveio. – O que você está fazendo?!
Acalme-se, bambino – disse Marco, quase sussurrando. – O corpo moribundo quase sempre reconhece o remédio.
Não fosse aquela uma situação tão pavorosa e Enrico poderia jurar que Marco estava gostando. A expressão no rosto dele era alguma coisa parecida com prazer, enquanto sua mãe se alimentava de sangue vivo como um sedento do deserto no oásis. Enrico estava mesmo assustado.
A certa altura, Marco começou a ofegar. Foi quando ele forçou o pulso para longe dos lábios de Francesca e, num gesto brusco, afastou-se da cabeceira da cama.
Parecia cansado depois. Sua pele aveludada tornara-se ainda mais branca, embora, na aparência, estivesse menos radiante. Os pequenos vasos, antes rosados e quase imperceptíveis, evidenciavam-se avermelhados por toda a parte visível de seu corpo. De seus olhos se esvaíra toda a cor.
Enquanto isso, sobre a cama, Francesca contorcia-se, gemendo e soluçando.
Completamente atordoado, Enrico, apenas uma criança, não sabia se aquilo era dor ou outra coisa.
O que há com ela? Você disse que ela ficaria bem!
Ela ficará bem, caríssimo – disse Marco, ainda arquejando. – Você vai ver.



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terça-feira, 15 de setembro de 2015

A TRISTE HISTÓRIA DE ENRICO DEL FRARI II

CAPÍTULO SEGUNDO


Chiesa di Santa Maria dei Miracoli, Brescia.

Francesca acordou um tempo depois, em cima de uma maca improvisada na enfermaria da fábrica. Ainda sentia frio e seus lábios estavam ressequidos.
Um cheiro muito forte, um tanto ácido, agredia-lhe as narinas. Amoníaco – ela logo reconheceu. Deviam ter usado para lhe trazer de volta à consciência.
Francesca não chegara a passar um tempo muito longo desacordada. Mesmo assim, aquele episódio acabaria por custar-lhe o emprego. Diante dela, o gerente do primeiro turno e outros dois funcionários, um tanto assustados; haviam sido escolhidos para acompanhá-la até em casa.
A fábrica não podia correr riscos. O caso de Francesca não era o primeiro num espaço de tempo bastante curto e se a doença se espalhasse mais ainda entre os empregados, logo haveria um surto e eles teriam de fechar.
Até aquele momento, quantos estariam infectados sem saber?
Francesca, por sua vez, parecia mesmo abandonada pela sorte. Sem marido, sem saúde e agora sem emprego. Sabia que no desespero não estava a salvação; mesmo assim, quem poderia lhe culpar? Na situação em que se achava, ainda restava descobrir o que fazer com uma criança. Como não fazia idéia, limitava-se a chorar.
O pior era que o choro agravava a tosse. Quanto mais chorava, mais tossia e tossia tanto que de vez em quando se engasgava em suas próprias secreções.
Os colegas, desolados, lamentavam internamente, mas lamento, naquele momento, era tudo o que podiam oferecer. Era um tempo atroz. A recessão se espalhava como nuvens em céu de tempestade. A possibilidade de contágio era real e ninguém queria para si aquela sorte.
Infelizmente para Francesca, a solidariedade era algo com o que também não poderia contar. É claro que chegara a procurar um médico depois. No fundo, tinha a esperança de que fosse outra coisa. O diagnóstico, entretanto, foi confirmado: tuberculose.
Para a tuberculose não havia cura, então. Existia uma vacina, mas no caso de Francesca era inútil. Já estava infectada. A vacina funcionava como prevenção. Talvez devesse ter pensado nisso antes, mas o dinheiro já era curto demais para a comida. Àquela altura, não havia mais nada que pudesse ser feito. Era apenas uma questão de tempo.
Neste momento cruciforme, em que a doença fatalmente levaria sua vida, coube a Enrico uma atitude ao mesmo tempo valente e desesperada. Vendo a despensa cada dia mais vazia e a mãe que definhava diante de seus olhos, o menino, que não tinha a quem recorrer, foi às ruas. Ele pegou uma lata vazia de óleo da cozinha e começou a mendigar.
Em sua busca por sustento, andava por toda parte, fizesse frio ou chuva. Colocava-se em esquinas, cruzamentos, uns dias num, outros dias noutro, alternando de acordo com o trânsito de pessoas, mas também com a disposição com que lhe recebiam – ou a falta dela.
Muitas foram as ocasiões em que foi enxotado ou mal tratado. Com frequência precisava esquivar-se da polícia ou de algum comerciante que simplesmente não podia admitir a presença de um mendigo, ainda que ele fosse apenas uma criança faminta. Mais de uma vez, apanhou. Escurraçado, via-se obrigado a procurar por pontos mais tranquilos. Algumas vezes ia para a porta das igrejas – e eram muitas –, esperando, no final das missas, pela generosidade dos fiéis.
O que ganhava não era muito, naturalmente, mas ao menos dava para comprar pão, leite e, algumas vezes, manteiga. No final, ainda sobravam alguns centesimi di lira, que o menino diligentemente juntava para aqueles dias em que a sorte não estivesse a seu favor.
Então, em uma noite muito fria, Enrico estava parado, todo encolhido com sua latinha, na frente da Chiesa di Santa Maria dei Miracoli. Anoitecera havia poucas horas, mesmo assim a via estava deserta e a igreja, quase vazia. Aquela noite não prometia coisa alguma, mas Enrico estava com tanto frio que seus ossos doíam. Não lhe restava disposição nem mesmo para sair do lugar.
Ele ficou ali parado, por incontáveis horas. O olhar perdido no nada. Sua mente livre de qualquer expectativa, completamente vazia. A única coisa que sentia, além do frio e da dor, era o som e o calor reconfortante da própria respiração. Nesse estado de completo abandono, Enrico, de repente, se surpreendeu ao ver um homem muito bem vestido e de andar garboso dobrando a esquina.
Parecia uma visão. Ele usava um longo sobretudo preto, muito elegante, daqueles com quatro botões e, mais ou menos na altura do quadril, por entre os passadores, um cinto de couro na mesma cor. A calça, que se podia ver por baixo do casaco, mesmo ele estando fechado, era cinza e tinha vincos impecavelmente marcados. A blusa, embora estivesse escuro, parecia ser de um marrom semelhante à terracota e a gravata, com um nó irrepreensível, era da mesma cor da calça e do chapéu.
O chapéu, por sua vez, com a gebada bem insinuada, não parecia barato. Tinha o cinteiro preto combinando com o casaco. Ele o usava inclinado ligeiramente para o lado esquerdo de quem via. Suas mãos, bem protegidas por um par de luvas também de couro, procuravam por abrigo nos bolsos do casaco. Em seus pés, lustrosos sapatos com solado de madeira completavam o conjunto de acessórios.
Mas não era só pela maneira como se vestia que aquele homem chamava atenção. Era também pelo seu rosto, pela sua fisionomia por assim dizer. Para começar, ele era aquilo que podia se chamar de lindo. O rosto quadrado, másculo, não tinha sinal de barba e servia de moldura perfeita para lábios, de tão voluptuosos e avermelhados, quase obscenos. O nariz era afilado, proeminente e lhe dava um aspecto nobre; sim, parecia o nariz de um príncipe ou coisa que o valha. Mas o destaque maior, sem dúvida nenhuma, era para aqueles olhos gláucos, de um cinza tão profundo e claro que por pouco pareciam não ter cor. Sobre eles, insinuantes – e espessas – sobrancelhas, tão escuras quanto os poucos fios de cabelo que escapavam do chapéu.
Ainda havia a tonalidade da pele. Sua tez era clara, mas não um claro natural, como era, por exemplo, o da pele de Enrico. Era um claro pétreo, marmóreo e ainda refletia um fulgor misterioso, quase uma luminescência. Embora discreta, era efetiva e... Bizarra.
Existia algo de incompreensível e estranho naquele homem. Ele era díspar, atraente e, de todo modo, intrigante, mas infundia também um pouco de medo. A composição de sua imagem complexa causava perplexidade e Enrico simplesmente não podia desviar os olhos dele.
O homem, de sua parte, caminhava parecendo ensimesmado em sua direção. A certa altura, percebeu que estava sendo observado e esboçou um sorriso. O coração de Enrico disparou.
Em lugar de estender a latinha de óleo, o menino encolheu-se mais ainda na calçada. O homem pareceu surpreso com aquela reação. Parou diante dele e tirou algumas notas da carteira.
Eram vinte liras. A esmola mais generosa que Enrico recebera até então. Mesmo assim, alguma coisa bloqueava sua voz. Não saía nem um “Deus lhe pague” ou um simples “obrigado”.
Pobre criança – disse o homem. – É sua mãe, não é? O que ela tem?
Enrico arregalou os olhos.
Andiamo, bambino – o homem insistiu. Pode confiar em mim.
Como... Como o signore sabe da minha mãe – gaguejava Enrico, assustado.
O homem riu.
São seus pensamentos, caro mio – disse, apontando para a cabeça de Enrico. Eles gritam tanto que é impossível não ouvir.
O signore pode... Ler meus pensamentos?
O homem riu outra vez.
Meu nome é Marco... Marco D’Ângelo. E o seu?
Enrico Del Frari.
Va bene, Enrico. Piacere! Por que não fazemos o seguinte?... Você deve estar faminto. Eu posso te pagar um lanche, enquanto você me conta da sua mãe. O que me diz?
Marco acertara nisso também – Enrico estava mesmo faminto. Não comera nada o dia inteiro e, não fosse pela esmola dadivosa que acabara de ganhar, não havia conseguido garantir sequer o pão. Ainda que desconfiasse da sinceridade das intenções de Marco, aquele não era um convite que pudesse recusar.
Enrico levantou e foi com ele pela via. A partir de certo ponto, a Corso Martiri della Libertà passava a se chamar Fratelli Porcellaga. Eles caminharam alguns metros mais, depois dobraram à direita, passando pela Università di Brescia. Só um pouco adiante estava a Piazza della Vittoria, para onde Marco parecia estar se encaminhando.
O percurso não durara mais que cinco minutos.
Na maior parte do tempo, Enrico permaneceu com o semblante baixo, mas olhava para Marco vez ou outra de relance. Alguma coisa o intrigava nele. Algo entre a beleza exagerada e a temeridade sugerida, que, no entanto, era incapaz de definir.
Marco, por outro lado, não desviara o olhar sequer por um instante. Não que ignorasse o assombro de Enrico. Absolutamente. Sabia o que passava em sua mente e até se divertia com aquilo. Sua atitude transbordava confiança. Ele estava no controle.
Eles acabaram indo para o Caffe’ Impero, um lugar de atmosfera um tanto refinada para o que Enrico estava acostumado. Marco foi direto para as escadas que levavam ao segundo andar, onde havia mesas e cadeiras em um ambiente menos devassado.
No canto da escada, havia uma chapeleira, sobre a qual deixara seu chapéu. Ele tirou as luvas, guardando-as no bolso do casaco, depois foi se sentar, indicando com as mãos para que Enrico fizesse o mesmo.
Ouvi dizer que os brioschi são muito bons! – ele disse. Por que você não experimenta? A não ser, é claro, que prefira outra coisa.
Aceito o briosche, grazie.
E então?... Que razão terrível levaria um jovenzinho encantador como você a esmolar na porta da chiesa?
Enrico respirou fundo e baixou a cabeça.
Eu junto dinheiro para comprar comida, signore. Depois que papà morreu na guerra e mamma ficou doente, não temos mais como comer.
Coisa mais triste, bambino!... Você é o único filho que seus pais tiveram?
Sou, sim.
O que aconteceu com sua mãe? Que tipo de doença ela tem?
A expressão no rosto de Enrico modificara-se completamente. Seu olhar se desviou, perdendo-se em muitas direções. Seus lábios contraíram e o brilho repentino em seus olhos denunciava a súbita emoção.
Peste Branca!
A palavra veio dos lábios de Marco.
O médico disse que não pode fazer nada... Eu fico vendo o sofrimento dela e me pergunto o que vai ser... Não tenho mais ninguém.
Marco recostou-se na cadeira e, por um momento, avaliou Enrico com cuidado. O destino parecia providencial ao arranjar aquele encontro. De imediato, ocorrera-lhe uma idéia, mas a decisão de acatá-la exigia ser pensada com cautela. Era muito séria para ser tomada num assalto, com frivolidade.
Onde ela está agora? – perguntou, por fim.
Em casa, signore – disse Enrico.
Bene... E se eu lhe dissesse que posso curá-la?
Enrico arregalou os olhos. Uma lágrima solitária escorreu-lhe pelo canto da face.
Como?!...
Como não importa, bambino. Lembra da coisa com os pensamentos? Considere que eu seja um mágico. Um mágico bastante poderoso. O importante é: você aceitaria ou não? Porque isso teria um preço, é claro...
Mas é claro que sim, signore! – Enrico respondeu afoito, sem pensar. Ele não pareceu ouvir as últimas palavras de Marco. Ou talvez tenha deliberadamente escolhido ignorá-las.
Ótimo. Temos um acordo. Leve-me até ela.



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sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A TRISTE HISTÓRIA DE ENRICO DEL FRARI

CAPÍTULO PRIMEIRO


Fábrica Beretta, em Brescia, Itália, 1935.



Luigi Ignazio Del Frari era um soldado do exército fascista. No final dos anos trinta, havia participado da operação que teve como resultado a conquista da Albânia. Desde então, permaneceu naquele país, integrando as tropas de ocupação. Isso durou cerca de dois anos.
Durante esse tempo, em Brescia, uma pacata comuna situada ao norte da Itália, sua esposa, a bela Francesca Belinazzo, outrora uma respeitável dona de casa, trabalhava como operária numa antiga e tradicional fábrica de equipamento bélico. Mas Francesca, é bom dizer, não era a única mulher nessa situação.
A Europa inteira se encontrava mergulhada na terrível recessão que se arrastava desde o fim da Primeira Guerra. Não havia muito dinheiro. Agora, a maior parte dos homens estava de volta ao campo de batalha e restava às mulheres a tarefa de manter a economia funcionando. Afinal, alguém tinha que fazer as armas e a munição que os soldados usavam nas trincheiras.
Entretanto, perto do final de 1941, Mussolini ordenara um ataque súbito à Grécia. O Duce tencionava, na verdade, transformar a Itália num império, como havia sido a Roma do tempo dos césares, incorporando, para isso, o maior número possível de territórios. Sete divisões foram deslocadas da Albânia para a Grécia, sob o comando do general Sebastiano Visconti Prasca, em uma investida absolutamente desprovida de qualquer preparo e, portanto, fadada ao fracasso.
Os gregos, de sua parte, liderados pelo general Alexander Papagos, praticamente varreram os italianos de volta à Albânia. Nesse impasse desastroso, que só terminaria com a intervenção da Inglaterra e da própria Alemanha, Luigi acabou morrendo.
Francesca, quando soube, achou que ia morrer também. Luigi era seu mundo. Quando ele morreu, esse mundo desabou.
Eles se conheceram ainda jovens, naquela mesma comuna de Brescia. Luigi ajudava o pai, que tinha uma banca de peixe no mercado. Era lá que se encontrava com Francesca. Toda semana a moça aparecia, acompanhando a mãe nas compras.
Apaixonaram-se, naturalmente. E a natureza do sentimento que os aproximava, sobretudo em tão tenra idade, era tal que se entregaram cedo demais à volúpia das paixões.
As duas famílias, como era de se esperar, trataram logo de providenciar os proclames matrimoniais. Principalmente depois que Francesca apresentou os primeiros sinais da gravidez. Os pais da jovem não podiam permitir que a desonra de uma filha tão querida se tornasse pública. Restava à família do rapaz garantir que ele repararia o mal que havia feito.
Para os dois, no entanto, nada disso importava. Na verdade, toda aquela confusão terminara sendo providencial. Tudo que queriam era mesmo ficar juntos. E Francesca jamais poderia ter imaginado que a gravidez daquela época acabaria resultando em seu único motivo para, hoje, não por termo à própria vida – o mancebo Enrico Del Frari.
Enrico tinha apenas onze anos quando o pai morrera na guerra. Era um menino bonito, de feições delicadas, cabelos muito escuros e a pele quase tão branca quanto um chumaço de algodão. Mas o que se destacava nele era sua inabalável – e implacável – coragem.
Desde que a mãe começara a trabalhar na fábrica de armas, ele ficava sozinho praticamente o dia todo. Até certo ponto, continuou frequentando a escola, lavava as próprias roupas e fazia a comida com o pouco que encontrava nos armários de casa. Em suma, virava-se muito bem. Mas as dificuldades estavam apenas começando.
Depois da morte de Luigi, Francesca teve ainda mais dificuldade de continuar provendo o sustento do lar. Ela podia contar apenas com seu pequeno salário, já que o soldo do marido não chegava mais. Logo a comida começaria a faltar e as dívidas não paravam de crescer.
Para dar conta, ela começou a trabalhar em dois turnos. Uma escolha que, embora atenuasse o problema imediato, não tardaria a mostrar consequências funestas. Com o horário apertado, o tempo entre um expediente e outro nunca era o bastante para ir até em casa e voltar. No final do dia, já estava tarde e ela por demais exausta para as poucas horas de descanso até o próximo turno, no dia seguinte.
Enrico, apesar de ser apenas um garotinho, teve de assumir completamente as funções domésticas, enquanto sua mãe, submetida a uma rotina de trabalho tão visceral que só lhe permitia alimentar-se uma vez ao dia, definhava a olhos vistos.
No curso de seis meses, Francesca havia se tornado uma mulher completamente diferente. Sua beleza itálica esvaecera como fumaça, dando lugar a um rosto pálido, abatido, de traços envelhecidos e olheiras profundamente marcadas. Ela também estava magra, exageradamente. Seus braços e pernas mais pareciam varas. A cintura desaparecera e os seios se mostravam flácidos. Além disso, havia começado a tossir – uma tosse intermitente, inoportuna, molhada.
Então em um dia, como outro qualquer, faltava pouco mais de uma hora para o final do primeiro turno, quando ela sentiu uma fraqueza forte, mais forte que o habitual, seguida de uma vertigem.
Imediatamente, parou o que fazia. Apoiou-se sobre a mesa na qual trabalhava e concentrou-se na respiração, esperando melhorar. A medida, porém, não surtiu o efeito esperado. Uma vertigem ainda mais forte que a primeira sobreveio, agora acompanhada de uma terrível estuação estomacal. Incapaz de se conter, Francesca vomitou.
Os colegas de trabalho, vendo o que acontecia, correram em seu socorro, mas ficaram espantados quando viram que ela havia vomitado uma mistura malacafenta de catarro e sangue.
Houve quem saísse logo de perto. Alguns tiveram ânsia de vomitar também, enquanto outros apenas permaneceram imóveis. De uma forma ou de outra, todos sabiam do que se tratava – tuberculose. E não era o primeiro caso em circunstâncias semelhantes.    
A própria Francesca se horrorizava ao ver as mãos voltando sujas de sangue quando as usava para cobrir a boca ao tossir. Mas o que ela podia fazer?
O mal-estar não passava, pelo contrário, piorava a cada instante – mas ninguém ousava lhe tocar, sequer por humanidade. Quando a fraqueza estendeu-se às extremidades de seu corpo, uma friagem terrível lhe acometeu. Em sua boca, um sabor amargo, parecido com alho. Suas pernas não obedeciam ao comando de ficar de pé. Os braços, de contrapartida, perderam a força de buscar apoio. De uma vez só, Francesca caiu.
Ainda foi capaz de sentir seu rosto se chocar impetuosamente contra o chão gelado. Depois disso, a visão enturveceu. Os pensamentos se tornaram difusos, desprovidos de sentido. Por um instante, vislumbrara a imagem de Enrico e talvez seus lábios tenham desejado dizer o nome do filho. Foi quando tudo desapareceu.

(continua...)