Fábrica Beretta, em Brescia, Itália, 1935. |
Luigi Ignazio Del Frari era um soldado do exército
fascista. No final dos anos trinta, havia participado da operação que teve como
resultado a conquista da Albânia. Desde então, permaneceu naquele país, integrando
as tropas de ocupação. Isso durou cerca de dois anos.
Durante esse tempo, em Brescia, uma pacata comuna
situada ao norte da Itália, sua esposa, a bela Francesca Belinazzo, outrora uma
respeitável dona de casa, trabalhava como operária numa antiga e tradicional
fábrica de equipamento bélico. Mas Francesca, é bom dizer, não era a única
mulher nessa situação.
A Europa inteira se encontrava mergulhada na terrível
recessão que se arrastava desde o fim da Primeira Guerra. Não havia muito
dinheiro. Agora, a maior parte dos homens estava de volta ao campo de batalha e
restava às mulheres a tarefa de manter a economia funcionando. Afinal, alguém tinha
que fazer as armas e a munição que os soldados usavam nas trincheiras.
Entretanto, perto do final de 1941, Mussolini ordenara
um ataque súbito à Grécia. O Duce
tencionava, na verdade, transformar a Itália num império, como havia sido a
Roma do tempo dos césares, incorporando, para isso, o maior número possível de
territórios. Sete divisões foram deslocadas da Albânia para a Grécia, sob o
comando do general Sebastiano Visconti Prasca, em uma investida absolutamente
desprovida de qualquer preparo e, portanto, fadada ao fracasso.
Os gregos, de sua parte, liderados pelo general
Alexander Papagos, praticamente varreram
os italianos de volta à Albânia. Nesse impasse desastroso, que só terminaria
com a intervenção da Inglaterra e da própria Alemanha, Luigi acabou morrendo.
Francesca, quando soube, achou que ia morrer também.
Luigi era seu mundo. Quando ele morreu, esse mundo desabou.
Eles se conheceram ainda jovens, naquela mesma comuna
de Brescia. Luigi ajudava o pai, que tinha uma banca de peixe no mercado. Era
lá que se encontrava com Francesca. Toda semana a moça aparecia, acompanhando a
mãe nas compras.
Apaixonaram-se, naturalmente. E a natureza do
sentimento que os aproximava, sobretudo em tão tenra idade, era tal que se
entregaram cedo demais à volúpia das paixões.
As duas famílias, como era de se esperar, trataram
logo de providenciar os proclames matrimoniais. Principalmente depois que
Francesca apresentou os primeiros sinais da gravidez. Os pais da jovem não
podiam permitir que a desonra de uma filha tão querida se tornasse pública. Restava
à família do rapaz garantir que ele repararia o mal que havia feito.
Para os dois, no entanto, nada disso importava. Na
verdade, toda aquela confusão terminara sendo providencial. Tudo que queriam era
mesmo ficar juntos. E Francesca jamais poderia ter imaginado que a gravidez
daquela época acabaria resultando em seu único motivo para, hoje, não por termo
à própria vida – o mancebo Enrico Del Frari.
Enrico tinha apenas onze anos quando o pai morrera na
guerra. Era um menino bonito, de feições delicadas, cabelos muito escuros e a
pele quase tão branca quanto um chumaço de algodão. Mas o que se destacava nele
era sua inabalável – e implacável – coragem.
Desde que a mãe começara a trabalhar na fábrica de
armas, ele ficava sozinho praticamente o dia todo. Até certo ponto, continuou
frequentando a escola, lavava as próprias roupas e fazia a comida com o pouco
que encontrava nos armários de casa. Em suma, virava-se muito bem. Mas as
dificuldades estavam apenas começando.
Depois da morte de Luigi, Francesca teve ainda mais
dificuldade de continuar provendo o sustento do lar. Ela podia contar apenas com
seu pequeno salário, já que o soldo do marido não chegava mais. Logo a comida
começaria a faltar e as dívidas não paravam de crescer.
Para dar conta, ela começou a trabalhar em dois
turnos. Uma escolha que, embora atenuasse o problema imediato, não tardaria a
mostrar consequências funestas. Com o horário apertado, o tempo entre um
expediente e outro nunca era o bastante para ir até em casa e voltar. No final
do dia, já estava tarde e ela por demais exausta para as poucas horas de
descanso até o próximo turno, no dia seguinte.
Enrico, apesar de ser apenas um garotinho, teve de
assumir completamente as funções domésticas, enquanto sua mãe, submetida a uma
rotina de trabalho tão visceral que só lhe permitia alimentar-se uma vez ao
dia, definhava a olhos vistos.
No curso de seis meses, Francesca havia se tornado uma
mulher completamente diferente. Sua beleza itálica esvaecera como fumaça, dando
lugar a um rosto pálido, abatido, de traços envelhecidos e olheiras profundamente
marcadas. Ela também estava magra, exageradamente. Seus braços e pernas mais pareciam
varas. A cintura desaparecera e os seios se mostravam flácidos. Além disso,
havia começado a tossir – uma tosse intermitente, inoportuna, molhada.
Então em um dia, como outro qualquer, faltava pouco
mais de uma hora para o final do primeiro turno, quando ela sentiu uma fraqueza
forte, mais forte que o habitual, seguida de uma vertigem.
Imediatamente, parou o que fazia. Apoiou-se sobre a
mesa na qual trabalhava e concentrou-se na respiração, esperando melhorar. A
medida, porém, não surtiu o efeito esperado. Uma vertigem ainda mais forte que
a primeira sobreveio, agora acompanhada de uma terrível estuação estomacal.
Incapaz de se conter, Francesca vomitou.
Os colegas de trabalho, vendo o que acontecia,
correram em seu socorro, mas ficaram espantados quando viram que ela havia
vomitado uma mistura malacafenta de catarro e sangue.
Houve quem saísse logo de perto. Alguns tiveram ânsia
de vomitar também, enquanto outros apenas permaneceram imóveis. De uma forma ou
de outra, todos sabiam do que se tratava – tuberculose. E não era o primeiro
caso em circunstâncias semelhantes.
A própria Francesca se horrorizava ao ver as mãos
voltando sujas de sangue quando as usava para cobrir a boca ao tossir. Mas o
que ela podia fazer?
O mal-estar não passava, pelo contrário, piorava a
cada instante – mas ninguém ousava lhe tocar, sequer por humanidade. Quando a
fraqueza estendeu-se às extremidades de seu corpo, uma friagem terrível lhe
acometeu. Em sua boca, um sabor amargo, parecido com alho. Suas pernas não
obedeciam ao comando de ficar de pé. Os braços, de contrapartida, perderam a
força de buscar apoio. De uma vez só, Francesca caiu.
Ainda foi capaz de sentir seu rosto se chocar impetuosamente
contra o chão gelado. Depois disso, a visão enturveceu. Os pensamentos se
tornaram difusos, desprovidos de sentido. Por um instante, vislumbrara a imagem
de Enrico e talvez seus lábios tenham desejado dizer o nome do filho. Foi
quando tudo desapareceu.
(continua...)
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