terça-feira, 15 de setembro de 2015

A TRISTE HISTÓRIA DE ENRICO DEL FRARI II

CAPÍTULO SEGUNDO


Chiesa di Santa Maria dei Miracoli, Brescia.

Francesca acordou um tempo depois, em cima de uma maca improvisada na enfermaria da fábrica. Ainda sentia frio e seus lábios estavam ressequidos.
Um cheiro muito forte, um tanto ácido, agredia-lhe as narinas. Amoníaco – ela logo reconheceu. Deviam ter usado para lhe trazer de volta à consciência.
Francesca não chegara a passar um tempo muito longo desacordada. Mesmo assim, aquele episódio acabaria por custar-lhe o emprego. Diante dela, o gerente do primeiro turno e outros dois funcionários, um tanto assustados; haviam sido escolhidos para acompanhá-la até em casa.
A fábrica não podia correr riscos. O caso de Francesca não era o primeiro num espaço de tempo bastante curto e se a doença se espalhasse mais ainda entre os empregados, logo haveria um surto e eles teriam de fechar.
Até aquele momento, quantos estariam infectados sem saber?
Francesca, por sua vez, parecia mesmo abandonada pela sorte. Sem marido, sem saúde e agora sem emprego. Sabia que no desespero não estava a salvação; mesmo assim, quem poderia lhe culpar? Na situação em que se achava, ainda restava descobrir o que fazer com uma criança. Como não fazia idéia, limitava-se a chorar.
O pior era que o choro agravava a tosse. Quanto mais chorava, mais tossia e tossia tanto que de vez em quando se engasgava em suas próprias secreções.
Os colegas, desolados, lamentavam internamente, mas lamento, naquele momento, era tudo o que podiam oferecer. Era um tempo atroz. A recessão se espalhava como nuvens em céu de tempestade. A possibilidade de contágio era real e ninguém queria para si aquela sorte.
Infelizmente para Francesca, a solidariedade era algo com o que também não poderia contar. É claro que chegara a procurar um médico depois. No fundo, tinha a esperança de que fosse outra coisa. O diagnóstico, entretanto, foi confirmado: tuberculose.
Para a tuberculose não havia cura, então. Existia uma vacina, mas no caso de Francesca era inútil. Já estava infectada. A vacina funcionava como prevenção. Talvez devesse ter pensado nisso antes, mas o dinheiro já era curto demais para a comida. Àquela altura, não havia mais nada que pudesse ser feito. Era apenas uma questão de tempo.
Neste momento cruciforme, em que a doença fatalmente levaria sua vida, coube a Enrico uma atitude ao mesmo tempo valente e desesperada. Vendo a despensa cada dia mais vazia e a mãe que definhava diante de seus olhos, o menino, que não tinha a quem recorrer, foi às ruas. Ele pegou uma lata vazia de óleo da cozinha e começou a mendigar.
Em sua busca por sustento, andava por toda parte, fizesse frio ou chuva. Colocava-se em esquinas, cruzamentos, uns dias num, outros dias noutro, alternando de acordo com o trânsito de pessoas, mas também com a disposição com que lhe recebiam – ou a falta dela.
Muitas foram as ocasiões em que foi enxotado ou mal tratado. Com frequência precisava esquivar-se da polícia ou de algum comerciante que simplesmente não podia admitir a presença de um mendigo, ainda que ele fosse apenas uma criança faminta. Mais de uma vez, apanhou. Escurraçado, via-se obrigado a procurar por pontos mais tranquilos. Algumas vezes ia para a porta das igrejas – e eram muitas –, esperando, no final das missas, pela generosidade dos fiéis.
O que ganhava não era muito, naturalmente, mas ao menos dava para comprar pão, leite e, algumas vezes, manteiga. No final, ainda sobravam alguns centesimi di lira, que o menino diligentemente juntava para aqueles dias em que a sorte não estivesse a seu favor.
Então, em uma noite muito fria, Enrico estava parado, todo encolhido com sua latinha, na frente da Chiesa di Santa Maria dei Miracoli. Anoitecera havia poucas horas, mesmo assim a via estava deserta e a igreja, quase vazia. Aquela noite não prometia coisa alguma, mas Enrico estava com tanto frio que seus ossos doíam. Não lhe restava disposição nem mesmo para sair do lugar.
Ele ficou ali parado, por incontáveis horas. O olhar perdido no nada. Sua mente livre de qualquer expectativa, completamente vazia. A única coisa que sentia, além do frio e da dor, era o som e o calor reconfortante da própria respiração. Nesse estado de completo abandono, Enrico, de repente, se surpreendeu ao ver um homem muito bem vestido e de andar garboso dobrando a esquina.
Parecia uma visão. Ele usava um longo sobretudo preto, muito elegante, daqueles com quatro botões e, mais ou menos na altura do quadril, por entre os passadores, um cinto de couro na mesma cor. A calça, que se podia ver por baixo do casaco, mesmo ele estando fechado, era cinza e tinha vincos impecavelmente marcados. A blusa, embora estivesse escuro, parecia ser de um marrom semelhante à terracota e a gravata, com um nó irrepreensível, era da mesma cor da calça e do chapéu.
O chapéu, por sua vez, com a gebada bem insinuada, não parecia barato. Tinha o cinteiro preto combinando com o casaco. Ele o usava inclinado ligeiramente para o lado esquerdo de quem via. Suas mãos, bem protegidas por um par de luvas também de couro, procuravam por abrigo nos bolsos do casaco. Em seus pés, lustrosos sapatos com solado de madeira completavam o conjunto de acessórios.
Mas não era só pela maneira como se vestia que aquele homem chamava atenção. Era também pelo seu rosto, pela sua fisionomia por assim dizer. Para começar, ele era aquilo que podia se chamar de lindo. O rosto quadrado, másculo, não tinha sinal de barba e servia de moldura perfeita para lábios, de tão voluptuosos e avermelhados, quase obscenos. O nariz era afilado, proeminente e lhe dava um aspecto nobre; sim, parecia o nariz de um príncipe ou coisa que o valha. Mas o destaque maior, sem dúvida nenhuma, era para aqueles olhos gláucos, de um cinza tão profundo e claro que por pouco pareciam não ter cor. Sobre eles, insinuantes – e espessas – sobrancelhas, tão escuras quanto os poucos fios de cabelo que escapavam do chapéu.
Ainda havia a tonalidade da pele. Sua tez era clara, mas não um claro natural, como era, por exemplo, o da pele de Enrico. Era um claro pétreo, marmóreo e ainda refletia um fulgor misterioso, quase uma luminescência. Embora discreta, era efetiva e... Bizarra.
Existia algo de incompreensível e estranho naquele homem. Ele era díspar, atraente e, de todo modo, intrigante, mas infundia também um pouco de medo. A composição de sua imagem complexa causava perplexidade e Enrico simplesmente não podia desviar os olhos dele.
O homem, de sua parte, caminhava parecendo ensimesmado em sua direção. A certa altura, percebeu que estava sendo observado e esboçou um sorriso. O coração de Enrico disparou.
Em lugar de estender a latinha de óleo, o menino encolheu-se mais ainda na calçada. O homem pareceu surpreso com aquela reação. Parou diante dele e tirou algumas notas da carteira.
Eram vinte liras. A esmola mais generosa que Enrico recebera até então. Mesmo assim, alguma coisa bloqueava sua voz. Não saía nem um “Deus lhe pague” ou um simples “obrigado”.
Pobre criança – disse o homem. – É sua mãe, não é? O que ela tem?
Enrico arregalou os olhos.
Andiamo, bambino – o homem insistiu. Pode confiar em mim.
Como... Como o signore sabe da minha mãe – gaguejava Enrico, assustado.
O homem riu.
São seus pensamentos, caro mio – disse, apontando para a cabeça de Enrico. Eles gritam tanto que é impossível não ouvir.
O signore pode... Ler meus pensamentos?
O homem riu outra vez.
Meu nome é Marco... Marco D’Ângelo. E o seu?
Enrico Del Frari.
Va bene, Enrico. Piacere! Por que não fazemos o seguinte?... Você deve estar faminto. Eu posso te pagar um lanche, enquanto você me conta da sua mãe. O que me diz?
Marco acertara nisso também – Enrico estava mesmo faminto. Não comera nada o dia inteiro e, não fosse pela esmola dadivosa que acabara de ganhar, não havia conseguido garantir sequer o pão. Ainda que desconfiasse da sinceridade das intenções de Marco, aquele não era um convite que pudesse recusar.
Enrico levantou e foi com ele pela via. A partir de certo ponto, a Corso Martiri della Libertà passava a se chamar Fratelli Porcellaga. Eles caminharam alguns metros mais, depois dobraram à direita, passando pela Università di Brescia. Só um pouco adiante estava a Piazza della Vittoria, para onde Marco parecia estar se encaminhando.
O percurso não durara mais que cinco minutos.
Na maior parte do tempo, Enrico permaneceu com o semblante baixo, mas olhava para Marco vez ou outra de relance. Alguma coisa o intrigava nele. Algo entre a beleza exagerada e a temeridade sugerida, que, no entanto, era incapaz de definir.
Marco, por outro lado, não desviara o olhar sequer por um instante. Não que ignorasse o assombro de Enrico. Absolutamente. Sabia o que passava em sua mente e até se divertia com aquilo. Sua atitude transbordava confiança. Ele estava no controle.
Eles acabaram indo para o Caffe’ Impero, um lugar de atmosfera um tanto refinada para o que Enrico estava acostumado. Marco foi direto para as escadas que levavam ao segundo andar, onde havia mesas e cadeiras em um ambiente menos devassado.
No canto da escada, havia uma chapeleira, sobre a qual deixara seu chapéu. Ele tirou as luvas, guardando-as no bolso do casaco, depois foi se sentar, indicando com as mãos para que Enrico fizesse o mesmo.
Ouvi dizer que os brioschi são muito bons! – ele disse. Por que você não experimenta? A não ser, é claro, que prefira outra coisa.
Aceito o briosche, grazie.
E então?... Que razão terrível levaria um jovenzinho encantador como você a esmolar na porta da chiesa?
Enrico respirou fundo e baixou a cabeça.
Eu junto dinheiro para comprar comida, signore. Depois que papà morreu na guerra e mamma ficou doente, não temos mais como comer.
Coisa mais triste, bambino!... Você é o único filho que seus pais tiveram?
Sou, sim.
O que aconteceu com sua mãe? Que tipo de doença ela tem?
A expressão no rosto de Enrico modificara-se completamente. Seu olhar se desviou, perdendo-se em muitas direções. Seus lábios contraíram e o brilho repentino em seus olhos denunciava a súbita emoção.
Peste Branca!
A palavra veio dos lábios de Marco.
O médico disse que não pode fazer nada... Eu fico vendo o sofrimento dela e me pergunto o que vai ser... Não tenho mais ninguém.
Marco recostou-se na cadeira e, por um momento, avaliou Enrico com cuidado. O destino parecia providencial ao arranjar aquele encontro. De imediato, ocorrera-lhe uma idéia, mas a decisão de acatá-la exigia ser pensada com cautela. Era muito séria para ser tomada num assalto, com frivolidade.
Onde ela está agora? – perguntou, por fim.
Em casa, signore – disse Enrico.
Bene... E se eu lhe dissesse que posso curá-la?
Enrico arregalou os olhos. Uma lágrima solitária escorreu-lhe pelo canto da face.
Como?!...
Como não importa, bambino. Lembra da coisa com os pensamentos? Considere que eu seja um mágico. Um mágico bastante poderoso. O importante é: você aceitaria ou não? Porque isso teria um preço, é claro...
Mas é claro que sim, signore! – Enrico respondeu afoito, sem pensar. Ele não pareceu ouvir as últimas palavras de Marco. Ou talvez tenha deliberadamente escolhido ignorá-las.
Ótimo. Temos um acordo. Leve-me até ela.



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