CAPÍTULO SEGUNDO
Chiesa di Santa Maria dei Miracoli, Brescia. |
Francesca
acordou um tempo depois, em cima de uma maca improvisada na
enfermaria da fábrica. Ainda sentia frio e seus lábios estavam
ressequidos.
Um
cheiro muito forte, um tanto ácido, agredia-lhe as narinas. Amoníaco
– ela logo reconheceu. Deviam ter usado para lhe trazer de volta à
consciência.
Francesca
não chegara a passar um tempo muito longo desacordada.
Mesmo assim, aquele episódio acabaria por custar-lhe o emprego.
Diante dela, o gerente do primeiro turno e outros dois funcionários,
um tanto assustados; haviam sido escolhidos para acompanhá-la até
em
casa.
A
fábrica não podia correr riscos.
O caso de Francesca não era o primeiro num espaço de tempo bastante
curto e se a doença se espalhasse mais ainda entre os empregados,
logo haveria
um
surto e eles teriam de fechar.
Até
aquele momento, quantos estariam infectados sem saber?
Francesca,
por sua vez, parecia mesmo abandonada pela sorte. Sem marido, sem
saúde e agora sem emprego. Sabia que no desespero não estava a
salvação; mesmo assim, quem poderia
lhe culpar? Na situação em que se achava,
ainda restava descobrir o que fazer com uma criança. Como
não
fazia idéia, limitava-se
a chorar.
O
pior era que o choro agravava
a
tosse. Quanto mais chorava,
mais tossia e tossia tanto que de vez em quando se engasgava em suas
próprias secreções.
Os
colegas, desolados, lamentavam internamente,
mas lamento,
naquele
momento,
era
tudo o
que podiam oferecer. Era
um tempo atroz. A
recessão se
espalhava como nuvens em céu de tempestade.
A possibilidade de contágio era real e ninguém queria para
si aquela sorte.
Infelizmente
para Francesca, a solidariedade era algo com o que também não
poderia contar. É
claro que chegara a procurar um médico depois. No fundo, tinha a
esperança de que fosse outra coisa. O diagnóstico, entretanto, foi
confirmado: tuberculose.
Para
a tuberculose não havia cura, então. Existia uma vacina, mas no
caso de Francesca era inútil. Já
estava infectada. A
vacina funcionava como prevenção. Talvez devesse ter pensado nisso
antes, mas o dinheiro já era curto demais para a comida. Àquela
altura, não
havia mais nada que pudesse
ser feito. Era apenas
uma questão de tempo.
Neste
momento cruciforme, em que a doença fatalmente levaria sua vida,
coube a Enrico uma atitude ao mesmo tempo valente e desesperada.
Vendo a despensa cada dia mais vazia e
a mãe que definhava diante de seus olhos, o menino, que não tinha
a quem recorrer, foi às ruas. Ele
pegou
uma lata vazia de óleo da cozinha e começou
a mendigar.
Em
sua busca por sustento, andava por
toda parte, fizesse frio ou chuva. Colocava-se em esquinas,
cruzamentos, uns dias num, outros dias noutro, alternando de acordo
com o trânsito de pessoas, mas também com a disposição com que
lhe recebiam
– ou a
falta dela.
Muitas
foram as ocasiões em que foi
enxotado ou
mal
tratado.
Com frequência precisava esquivar-se da polícia ou
de algum comerciante que simplesmente não podia
admitir
a presença de um mendigo, ainda
que ele fosse apenas uma criança faminta.
Mais de uma vez, apanhou. Escurraçado,
via-se obrigado a procurar por pontos mais tranquilos. Algumas vezes
ia para a porta das igrejas – e eram muitas –, esperando, no
final das missas, pela generosidade dos fiéis.
O
que ganhava não era muito, naturalmente, mas ao menos dava para
comprar pão, leite e, algumas vezes, manteiga. No final, ainda
sobravam alguns centesimi
di
lira,
que o menino diligentemente juntava para aqueles dias em que a sorte
não estivesse a seu favor.
Então,
em
uma
noite muito fria,
Enrico estava parado, todo encolhido com sua latinha, na frente da
Chiesa
di Santa Maria dei Miracoli.
Anoitecera havia poucas horas, mesmo assim a via
estava deserta e a igreja, quase vazia. Aquela noite não prometia
coisa alguma, mas Enrico estava com tanto frio que seus ossos doíam.
Não
lhe restava disposição nem mesmo para sair do lugar.
Ele
ficou ali parado, por incontáveis horas. O olhar perdido no nada.
Sua mente livre de qualquer expectativa,
completamente vazia. A única coisa que sentia, além do frio e da
dor, era o som e o calor reconfortante da própria respiração.
Nesse estado de completo abandono, Enrico, de repente, se surpreendeu
ao ver um homem muito bem vestido e de andar garboso dobrando a
esquina.
Parecia
uma visão. Ele usava um longo sobretudo preto, muito elegante,
daqueles com quatro botões e, mais ou menos na altura do quadril,
por entre os passadores, um cinto de couro na mesma cor. A calça,
que se podia ver por baixo do casaco, mesmo ele estando fechado, era
cinza e tinha vincos impecavelmente marcados. A blusa, embora
estivesse escuro, parecia ser de um marrom semelhante à terracota e
a gravata, com um nó irrepreensível, era da mesma cor da calça e
do chapéu.
O
chapéu, por sua vez, com a gebada bem insinuada, não parecia
barato. Tinha
o cinteiro preto combinando com o casaco. Ele o usava inclinado
ligeiramente para o lado esquerdo de quem via. Suas mãos, bem
protegidas por um par de luvas também de couro, procuravam por
abrigo nos bolsos do casaco.
Em
seus
pés, lustrosos sapatos com solado de madeira completavam o conjunto
de acessórios.
Mas
não era só pela maneira como se vestia que aquele homem chamava
atenção. Era também pelo seu rosto, pela sua fisionomia por assim
dizer. Para começar, ele era aquilo que podia se chamar de lindo. O
rosto quadrado, másculo, não tinha sinal de barba e servia de
moldura perfeita para lábios, de tão voluptuosos e avermelhados,
quase obscenos. O nariz era afilado, proeminente e lhe dava um
aspecto nobre; sim, parecia o nariz de um príncipe ou coisa que
o valha.
Mas o destaque maior, sem dúvida nenhuma, era para aqueles olhos
gláucos, de um cinza tão profundo e claro que por pouco pareciam
não ter cor. Sobre eles, insinuantes – e espessas –
sobrancelhas, tão escuras quanto os poucos fios de cabelo que
escapavam do chapéu.
Ainda
havia a tonalidade da pele. Sua tez era clara, mas não um claro
natural, como era, por exemplo, o da pele de Enrico. Era
um claro pétreo, marmóreo e ainda refletia um fulgor misterioso,
quase uma luminescência. Embora
discreta, era
efetiva e... Bizarra.
Existia
algo de incompreensível e estranho naquele homem. Ele era díspar,
atraente e, de todo modo, intrigante, mas infundia também um pouco
de medo. A
composição de sua
imagem complexa
causava
perplexidade e Enrico simplesmente não podia desviar os olhos dele.
O
homem, de sua parte, caminhava parecendo ensimesmado em sua direção.
A certa altura, percebeu que estava sendo observado e esboçou um
sorriso. O coração de Enrico disparou.
Em
lugar de estender a latinha de
óleo,
o menino encolheu-se mais ainda na calçada. O homem pareceu surpreso
com aquela reação. Parou diante dele e tirou algumas notas da
carteira.
Eram
vinte liras. A esmola mais generosa que Enrico recebera até então.
Mesmo assim, alguma coisa bloqueava sua voz. Não saía nem um “Deus
lhe pague” ou um simples “obrigado”.
― Pobre
criança – disse o homem. – É sua mãe, não é? O que ela tem?
Enrico
arregalou os olhos.
― Andiamo,
bambino
–
o homem insistiu. Pode
confiar em mim.
― Como...
Como o signore
sabe da minha mãe – gaguejava Enrico, assustado.
O
homem riu.
― São
seus
pensamentos, caro
mio
– disse, apontando para a cabeça de Enrico. Eles gritam
tanto que é impossível não ouvir.
― O
signore
pode... Ler
meus pensamentos?
O
homem riu outra vez.
― Meu
nome é Marco... Marco D’Ângelo. E o seu?
― Enrico
Del Frari.
― Va
bene,
Enrico. Piacere!
Por que não fazemos o seguinte?... Você deve estar faminto. Eu
posso te pagar um lanche, enquanto você me conta
da sua mãe. O
que me diz?
Marco
acertara nisso também – Enrico estava mesmo faminto.
Não comera nada o dia inteiro e, não fosse pela esmola dadivosa que
acabara de ganhar,
não havia conseguido garantir sequer o pão. Ainda que desconfiasse
da sinceridade das intenções de
Marco,
aquele não era um convite que pudesse
recusar.
Enrico
levantou e foi com ele pela via.
A
partir de certo ponto, a Corso
Martiri
della
Libertà
passava a se chamar Fratelli
Porcellaga.
Eles caminharam alguns metros mais, depois dobraram à direita,
passando pela Università
di
Brescia.
Só um pouco adiante estava a Piazza
della
Vittoria,
para onde Marco parecia estar se encaminhando.
O
percurso não durara mais que cinco minutos.
Na
maior parte do tempo, Enrico permaneceu com o semblante baixo, mas
olhava para Marco vez ou outra de relance. Alguma coisa o intrigava
nele. Algo entre a beleza exagerada e a temeridade sugerida, que, no
entanto, era incapaz de definir.
Marco,
por outro lado, não desviara o olhar sequer por um instante. Não
que ignorasse o assombro de Enrico. Absolutamente. Sabia o que
passava em sua mente e até se divertia com aquilo. Sua atitude
transbordava confiança. Ele estava no controle.
Eles
acabaram indo para o Caffe’
Impero,
um lugar de atmosfera um tanto refinada para o que Enrico estava
acostumado. Marco foi direto para as escadas que levavam ao segundo
andar, onde havia mesas e cadeiras em um ambiente menos devassado.
No
canto da escada, havia uma chapeleira, sobre a qual deixara seu
chapéu. Ele tirou as luvas, guardando-as no bolso do casaco, depois
foi se sentar, indicando com
as mãos
para que Enrico fizesse
o mesmo.
― Ouvi
dizer que os brioschi
são muito bons! – ele disse. Por que você não experimenta? A não
ser, é claro, que prefira outra coisa.
― Aceito
o briosche,
grazie.
― E
então?... Que razão terrível levaria um jovenzinho encantador como
você a esmolar na porta da chiesa?
Enrico
respirou fundo e baixou a cabeça.
― Eu
junto dinheiro para comprar comida, signore.
Depois que papà
morreu na guerra e mamma
ficou doente, não temos mais como comer.
― Coisa
mais triste,
bambino!...
Você é o único filho que seus pais tiveram?
― Sou,
sim.
― O
que aconteceu com sua mãe? Que tipo de doença ela tem?
A
expressão no rosto de Enrico modificara-se completamente. Seu olhar
se desviou, perdendo-se em muitas direções. Seus lábios contraíram
e o brilho repentino em
seus olhos denunciava a súbita emoção.
― Peste
Branca!
A
palavra veio dos lábios de Marco.
― O
médico disse que não pode fazer nada... Eu fico vendo o sofrimento
dela e me pergunto o que vai ser... Não tenho mais ninguém.
Marco
recostou-se na cadeira e, por um momento, avaliou Enrico com cuidado.
O destino parecia providencial
ao arranjar aquele encontro. De imediato, ocorrera-lhe uma idéia,
mas a decisão de acatá-la exigia ser pensada com cautela. Era
muito séria para ser tomada num
assalto, com
frivolidade.
― Onde
ela está agora? – perguntou, por fim.
― Em
casa, signore
– disse Enrico.
― Bene...
E se eu lhe dissesse que posso curá-la?
Enrico
arregalou os olhos. Uma lágrima solitária escorreu-lhe pelo canto
da face.
― Como?!...
― Como
não importa, bambino.
Lembra
da coisa com os
pensamentos? Considere
que eu seja um mágico. Um
mágico bastante
poderoso. O importante é: você aceitaria
ou
não? Porque
isso teria um preço, é claro...
― Mas
é claro que
sim,
signore!
– Enrico respondeu
afoito,
sem pensar. Ele
não pareceu ouvir as últimas palavras de Marco. Ou talvez tenha
deliberadamente escolhido ignorá-las.
― Ótimo.
Temos um acordo. Leve-me até ela.
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