segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A TRISTE HISTÓRIA DE ENRICO DEL FRARI V

CAPÍTULO QUINTO




Francesca e Enrico entreolharam-se perplexos. Aquilo só podia ser piada. Então era aquele o preço de que Marco havia falado, que eles se mudassem para a sua casa? No final, não parecia bem um preço, mas outro enorme favor.
Francesca, embora Marco insistisse na necessidade de continuar aquele estranho tratamento, estava ótima. É claro que nem ela nem Enrico entendiam como ou por qual milagre aquilo era possível, mas isso não lhes preocupava. Francesca havia recebido uma oportunidade única – uma vez às portas da morte, recobrara a saúde e, nas palavras de Marco, viveria para cuidar de Enrico. De que lhe serviria conhecer o mecanismo do prodígio? Ela simplesmente queria viver e viveria. Essa certeza lhe bastava.
Quanto à exigência de viver com Marco em sua casa, bem, bastava um olhar para entender que aquilo parecia mais com caridade.
Ele definia a si mesmo como um homem solitário, que, no entanto, detestava a solidão. Estava na cidade havia poucos dias e morava numa casa enorme na via Porta Pile, no extremo norte da cidade velha. Entre os hábitos excêntricos que cultivava, estava o de dormir durante o dia, quando a propriedade parecia abandonada e precisava de alguém para tomar conta.
Resumidamente, era o que ele queria de Francesca e Enrico – que eles tomassem conta de sua casa enquanto estivesse dormindo. Somente se encontrariam à noite. No resto do dia, teriam toda a casa para que vivessem como bem quisessem.
Isso não podia ser tão ruim.
A casa em que moravam, na via Cremona, parecia um tugúrio caindo de velho. Já a residência de Marco, gentilmente oferecida em troca de um pequeno favor, tinha três andares, um banheiro em cada pavimento e cinco quartos muito confortáveis – e desocupados, uma vez que o anfitrião, por outro de seus estranhos costumes, preferia acomodar-se no porão.
A sala também era requintada. Diante da lareira, descansavam elegantes estofados recobertos de veludo bordado. Tapetes de peles legítimos escondiam quase todo o chão e as paredes, delicadamente ornamentadas por lambris de madeira encerada, ostentavam telas, na parte superior, assinadas por autores de diferentes estilos artísticos e das mais variadas regiões da Itália.
Num dos cantos, perto da mesa de jantar, ele tinha um piano, um piano de cauda. Francesca e Enrico nunca tinham visto um piano tão de perto.
Nas poucas noites em que não saía, Marco se sentava ao piano e tocava. Alguma peça de Vivaldi era sempre sua escolha predileta, mas também havia outras; Stravinsky, alguma polca de Mozart ou as melancólicas composições de Schubert nunca deixavam de encantar os ouvidos atenciosos e fascinados. Eram ocasiões em que a música invadia a casa. Mãe e filho se regozijavam e a noite terminava em festa.
A palavra de ordem, entretanto, parecia ser conforto – conforto e privacidade. Todas as enormes janelas, sempre fechadas, tinham venezianas e pesadas cortinas de brocado inglês. A cozinha, demasiado ampla, estava equipada com quase tudo que uma dona de casa poderia desejar – mas quando eles chegaram, tiveram a impressão de que nunca havia sido usada.
Isso era outra coisa estranha, aliás. Francesca e Enrico nunca viram Marco fazer uma refeição sequer. Ele sempre despertava depois do pôr do sol e, na maior parte das vezes, saía logo em seguida. Quando voltava, ninguém estava acordado para ver.
Além disso, era um homem rico, não havia dúvida, mas sua fortuna tinha origem desconhecida. Não se sabia com o que trabalhava, por exemplo, tampouco de parentes ou mesmo uma família. Talvez tivesse recebido alguma herança, mas isso era um mistério e ninguém ali estava interessado o bastante para invadir a privacidade dele e perguntar.
O que sabiam era que em seus aposentos, no porão, a entrada era expressamente proibida. Ele não se contentava com a mera recomendação. A porta era trancada a cadeado.
Certa vez, pedira uma coisa curiosa a Francesca. Se um dia, por alguma razão, alguém viesse a lhe parar na rua e perguntasse sobre a quem pertencia aquela casa, ela deveria dizer que era sua; e se, ainda assim, insistissem em saber com quem morava ali, diria ser apenas com seu filho.
Uma atitude estranha. Uma das muitas atitudes estranhas. Será que ele se escondia de alguém?
Marco era um homem de muitos segredos, isso estava claro. Insondável, quase não falava da própria história. Mas nem por isso sua companhia era menos agradável.
Ele era interessante, dono de humor ameno e irreverente. Igualmente, o ar misterioso nunca lhe impedira de ser divertido em demasia. Também jamais deixara de tratá-los com doçura. Era alguém que dispensava elogios facilmente e, com notório esmero, cuidava de fazer das poucas horas que passavam juntos momentos aprazíveis.
Por tudo quanto viviam, era inevitável que Enrico acabasse vendo em Marco um tipo de pai. Essa relação não era de nenhuma forma intencional. Marco jamais tivera a intenção de estimular um sentimento dessa natureza. Era uma consequência espontânea e natural.
Por causa do serviço militar, em seus onze anos, Enrico pouco havia visto o verdadeiro pai. É claro que ele não ignorava que o sustento da família vinha do trabalho no exército, mas era indiscutível que a distância criara um enorme vácuo entre eles. Então, justo em seu momento mais difícil, eis que surge Marco, modificando completamente o rumo da história. A melhor palavra para ele era salvador. Mais ainda que um pai, Enrico o via como herói.
Tal como fora combinado, Marco alimentava Francesca ao menos duas vezes por semana com seu sangue medicinal. A mulher já não apresentava qualquer vestígio da doença, mas ele insistia que os sintomas voltariam se parassem.
Francesca, de sua parte, não parecia incomodada pelo fato de que precisava beber sangue tantas vezes. Pelo contrário, ela parecia esperar por aquele bálsamo assombroso com admirável ansiedade. Parecia mesmo... Gostar.
Marco, ao oferecer-lhe o pulso machucado, invariavelmente precisava afastá-la no final, pois, mesmo já havendo tomado mais que o bastante, não parecia querer deixá-lo. Agarrava-se a ele com tamanha força que o tragaria por inteiro se pudesse.
Depois do ato consumado, exatamente como na primeira vez, Marco estava extenuado e Francesca entorpecida, abandonada de si, numa espécie de êxtase quase religioso.
Era um ritual estranho e um tanto incompreensível, mas se parecia com amor. Provavelmente a coisa parecida com amor que tinham conseguido ter naqueles últimos e terríveis tempos.
De um modo inusitado, construiu-se uma família. A relação que eles tinham envolvia dependência, mas também estava cheia de cumplicidade e respeito. Marco os protegia. Eles, por sua vez, evitavam as indiscrições.
Não é tão difícil entender. Depois de anos no deserto, um oásis aparece. Simples desse jeito. E quando uma coisa assim acontece, não importam os porquês. Verdades incompletas valem mais que verdades indesejáveis.
Então, um dia, como de costume, Francesca despertou por volta das sete da manhã. Era um domingo, dia em que, desde que havia se mudado para a casa de Marco, frequentava a missa na parrocchia Santi Faustino e Giovita.
A cerimônia começava às oito horas e Francesca jejuava até às nove, quando a missa terminava. Por essa razão, excepcionalmente aos domingos, a primeira refeição nunca acontecia antes das dez.
Depois de ter se levantado, ela cuidou do próprio asseio e trocou a camisola por um vestido longo preto. De uma das gavetas do criado-mudo, tirou um terço e um véu da mesma cor do vestido. Arrumara os cabelos em um coque cuidadosamente penteado; depois, na direção da porta principal, cobriu os ombros com um xale pesado de lã que descansava sobre um cabideiro.
Já se preparava para sair. Foi quando uma coisa perturbou sua atenção. Do outro lado da rua, em meios às árvores do canteiro que separava a via Porta Pile da Silvio Pellico, avistara um homem estranho que parecia espreitar a casa.
A primeira vista, achou que fosse um padre. Ele se vestia inteiramente de preto e usava um casaco comprido, que, se visto de relance, parecia uma batina. Também usava um chapéu, mas um olhar um pouco mais atento não perceberia o típico colarinho branco dos sacerdotes, nem o terço preso à cintura, apenas uma correntinha com um crucifixo de prata.
No entanto, o que mais chamava a atenção, sem dúvida nenhuma, eram aqueles olhos – uns olhos pretos, fulminantes e cruéis. A expressão no rosto dele tinha algo de perverso, sombrio e a barba por fazer acrescentava uma virilidade mórbida ao seu aspecto sujo e opressivo.
Francesca arrepiou-se. Num repente, sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Alguma coisa naquele homem parecia auspiciosamente terrível.
Ela cruzou os braços, como se sentisse frio. Então baixou o rosto e apertou o passo rumo ao portão. Naquele instante, desejava apenas desaparecer o mais rápido possível de seu campo de visão.
O homem, por sua vez, permaneceu impávido. Não esboçou qualquer sinal de reação. Continuou ali parado, apenas observando, enquanto a mulher deixava a casa exasperada e seguia quase correndo em direção à igreja.
No espaço de um segundo, mil coisas se passaram na cabeça de Francesca. Quem seria aquele homem que a deixara tão perplexa? O que fazia espiando a casa àquela hora da manhã? Uma certeza absoluta de que nunca o vira antes sobreveio, mas era evidente que estava ali por um motivo – a pergunta era qual.
Inevitavelmente se lembrou das recomendações de Marco. No início, não levara muito a sério, mas agora não sabia o que pensar. Marco estava mesmo se escondendo? Não podia acreditar que arriscaria sua vida e a de Enrico, mas que tipo de segredo tão terrível ele guardava?
Ela foi para a igreja e durante a homília não ouviu uma palavra. Sua mente estava inquieta, pressentia o perigo, não sabia o que fazer. Ao anoitecer, quando Marco despertasse, poderia lhe contar. Até lá, restava desejar que aquilo fosse um susto, nada pra se preocupar, uma coisa passageira; e na volta para casa, aquele homem – aquela sombra – já teria ido embora. Ficaria tudo bem.
Mas não foi o que aconteceu...
Francesca deparou-se outra vez com o homem, só que não estava mais do outro lado, agora estava em seu portão.
Esta casa é sua? – ele perguntou. A voz sussurrada, quase gutural.
Outro calafrio, ainda mais forte que o primeiro. O coração pulsava acelerado. Ela sentiu as pernas bambearem.
Sim – respondeu. – Por quê?
Quem mais mora aqui? – o homem insistiu, ignorando completamente a pergunta de Francesca.
Apenas meu filho e eu... Posso saber quem é o senhor?
O homem deu uma meia volta, coçando o queixo devagar.
Estranho... – disse, voltando-se outra vez para ela – A senhora parece jovem. O seu filho tem quantos anos?
O senhor me dê licença, per favore!
Mas o homem fez exatamente o contrário, colocou-se entre ela e o portão.
Porque me lembro – ele disse – de ter visto um homem entrar aí... Um pouco antes do amanhecer.
Signore, eu devo começar a pedir socorro?
Io non credo, signora – retorquiu abrindo um pouco a aba do casaco, deixando que ela visse o cabo de uma faca de caça que trazia junto à cintura. – Adesso, por que não abre a porta e me convida para entrar?



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