CAPÍTULO QUINTO
Francesca
e Enrico entreolharam-se perplexos. Aquilo só podia ser piada. Então
era aquele o preço de que Marco havia falado, que eles se mudassem
para a sua casa? No final, não parecia bem um preço, mas outro
enorme favor.
Francesca,
embora Marco insistisse na necessidade de continuar aquele estranho
tratamento, estava ótima. É claro que nem ela nem Enrico entendiam
como ou por qual milagre aquilo era possível, mas isso
não lhes preocupava.
Francesca havia
recebido
uma oportunidade única
–
uma
vez às portas da morte, recobrara
a saúde e, nas palavras de Marco, viveria
para cuidar de Enrico.
De que lhe serviria conhecer o mecanismo do prodígio? Ela
simplesmente queria viver
e viveria. Essa
certeza lhe bastava.
Quanto
à exigência de viver com Marco em sua casa, bem, bastava um olhar
para entender que aquilo parecia mais com caridade.
Ele
definia a si mesmo como um homem solitário, que, no entanto,
detestava a solidão. Estava na cidade havia poucos dias e morava
numa casa enorme na via
Porta Pile,
no extremo norte da cidade velha. Entre os hábitos excêntricos que
cultivava, estava o de dormir durante o dia, quando a propriedade
parecia abandonada e precisava de alguém para tomar
conta.
Resumidamente,
era o que ele queria de Francesca e Enrico – que eles tomassem
conta de sua casa enquanto estivesse dormindo. Somente se
encontrariam à noite. No resto do dia, teriam toda a casa para que
vivessem como bem quisessem.
Isso
não podia ser tão ruim.
A
casa em que moravam, na via
Cremona,
parecia um tugúrio caindo de velho. Já a residência de Marco,
gentilmente oferecida em troca de um pequeno favor, tinha três
andares, um banheiro em cada pavimento e cinco quartos muito
confortáveis – e desocupados, uma vez que o anfitrião, por outro
de seus estranhos costumes, preferia acomodar-se no porão.
A
sala também era requintada. Diante da lareira, descansavam elegantes
estofados recobertos de veludo bordado. Tapetes de peles legítimos
escondiam quase todo o chão e as paredes, delicadamente ornamentadas
por lambris de madeira encerada, ostentavam telas, na parte superior,
assinadas por autores de diferentes estilos artísticos e das mais
variadas regiões da Itália.
Num
dos cantos, perto da mesa de jantar, ele tinha um piano, um piano de
cauda. Francesca e Enrico nunca tinham visto um piano tão de perto.
Nas
poucas noites em que não saía, Marco se sentava ao piano e tocava.
Alguma peça de Vivaldi era sempre sua escolha predileta, mas também
havia outras; Stravinsky, alguma polca de Mozart ou as melancólicas
composições de Schubert nunca deixavam de encantar os ouvidos
atenciosos e fascinados. Eram ocasiões em que a música invadia a
casa. Mãe e filho se regozijavam e a noite terminava em festa.
A
palavra de ordem, entretanto, parecia ser conforto – conforto e
privacidade. Todas as enormes janelas, sempre fechadas, tinham
venezianas e pesadas cortinas de brocado inglês. A cozinha,
demasiado ampla, estava equipada com quase tudo que uma dona de casa
poderia desejar – mas quando eles chegaram, tiveram a impressão de
que nunca havia sido usada.
Isso
era outra coisa estranha, aliás. Francesca e Enrico nunca viram
Marco fazer uma refeição sequer. Ele sempre despertava depois do
pôr do sol e, na maior parte das vezes, saía logo em seguida.
Quando voltava, ninguém estava acordado para ver.
Além
disso, era um homem rico, não havia dúvida, mas sua fortuna tinha
origem desconhecida. Não se sabia com o que trabalhava, por exemplo,
tampouco de parentes ou mesmo uma família. Talvez tivesse recebido
alguma herança, mas isso era um mistério e ninguém ali estava
interessado o bastante para invadir a privacidade dele e perguntar.
O
que sabiam era que em seus aposentos, no porão, a entrada era
expressamente proibida. Ele não se contentava com a mera
recomendação. A porta era trancada a cadeado.
Certa
vez, pedira uma coisa curiosa a Francesca. Se um dia, por alguma
razão, alguém viesse a lhe parar na rua e perguntasse sobre a quem
pertencia aquela casa, ela deveria dizer que era sua; e se, ainda
assim, insistissem em saber com quem morava ali, diria ser apenas com
seu filho.
Uma
atitude estranha. Uma das muitas atitudes estranhas. Será que ele se
escondia de alguém?
Marco
era um homem de muitos segredos, isso estava claro. Insondável,
quase não falava da própria história. Mas nem por isso sua
companhia era menos agradável.
Ele
era interessante, dono de humor ameno e irreverente. Igualmente, o ar
misterioso nunca lhe impedira de ser divertido em demasia. Também
jamais deixara de tratá-los com doçura. Era alguém que dispensava
elogios facilmente e, com notório esmero, cuidava de fazer das
poucas horas que passavam juntos momentos aprazíveis.
Por
tudo quanto viviam, era
inevitável que Enrico acabasse vendo em Marco um tipo de pai.
Essa
relação não era de nenhuma forma intencional. Marco jamais tivera
a intenção de estimular um sentimento dessa natureza. Era uma
consequência espontânea
e natural.
Por
causa do serviço militar, em seus onze anos, Enrico pouco havia
visto o verdadeiro pai. É claro que ele não ignorava que o sustento
da família vinha do trabalho no exército, mas era indiscutível que
a distância criara um enorme vácuo entre eles. Então, justo em seu
momento mais difícil, eis que surge Marco, modificando completamente
o rumo da história. A melhor palavra para ele era salvador.
Mais ainda que um pai, Enrico o via como herói.
Tal
como fora combinado, Marco alimentava Francesca ao menos duas vezes
por semana com seu sangue medicinal. A mulher já não apresentava
qualquer vestígio da doença, mas ele insistia que os sintomas
voltariam se parassem.
Francesca,
de sua parte, não parecia incomodada pelo fato de que precisava
beber sangue tantas vezes. Pelo contrário, ela parecia esperar por
aquele bálsamo assombroso com admirável ansiedade. Parecia mesmo...
Gostar.
Marco,
ao oferecer-lhe o pulso machucado, invariavelmente precisava
afastá-la no final, pois, mesmo já havendo tomado mais que o
bastante, não parecia querer deixá-lo. Agarrava-se a ele com
tamanha força que o tragaria por inteiro se pudesse.
Depois
do ato consumado, exatamente como na primeira vez, Marco estava
extenuado e Francesca entorpecida, abandonada de si, numa espécie de
êxtase quase religioso.
Era
um ritual estranho e um tanto incompreensível, mas se parecia com
amor. Provavelmente a coisa parecida com amor que tinham conseguido
ter naqueles últimos e terríveis tempos.
De
um modo inusitado, construiu-se uma família. A relação que eles
tinham envolvia dependência, mas também estava cheia de
cumplicidade e respeito. Marco os protegia. Eles, por sua vez,
evitavam as indiscrições.
Não
é tão difícil entender. Depois de anos no deserto, um oásis
aparece. Simples desse jeito. E quando uma coisa assim acontece, não
importam os porquês. Verdades incompletas valem mais que verdades
indesejáveis.
Então,
um
dia, como de costume, Francesca despertou por volta das sete da
manhã. Era um domingo, dia em que, desde que havia se mudado para a
casa de Marco, frequentava
a
missa na parrocchia
Santi Faustino e Giovita.
A
cerimônia começava às oito horas e Francesca jejuava até às
nove, quando a missa terminava. Por essa razão, excepcionalmente aos
domingos, a primeira refeição nunca acontecia antes das dez.
Depois
de ter se levantado, ela cuidou do próprio asseio e trocou a
camisola por um vestido longo preto. De uma das gavetas do
criado-mudo, tirou um terço e um véu da mesma cor do vestido.
Arrumara os cabelos em um coque cuidadosamente penteado; depois, na
direção da porta principal, cobriu os ombros com um xale pesado de
lã que descansava sobre um cabideiro.
Já
se preparava para sair. Foi quando uma coisa perturbou sua atenção.
Do outro lado da rua, em meios às árvores do canteiro que separava
a via
Porta Pile
da Silvio
Pellico,
avistara um homem estranho
que parecia espreitar a casa.
A
primeira vista, achou que fosse um padre. Ele se vestia inteiramente
de preto e usava um casaco comprido, que, se visto de relance,
parecia uma batina. Também usava um chapéu, mas um olhar um pouco
mais atento não perceberia o típico colarinho branco dos
sacerdotes, nem o terço preso à cintura, apenas uma correntinha com
um crucifixo de prata.
No
entanto, o que mais chamava a atenção, sem dúvida nenhuma, eram
aqueles olhos – uns olhos pretos, fulminantes e cruéis. A
expressão no rosto dele tinha algo de perverso, sombrio e a barba
por fazer acrescentava uma virilidade mórbida ao seu aspecto sujo e
opressivo.
Francesca
arrepiou-se. Num repente, sentiu um calafrio percorrer sua espinha.
Alguma coisa naquele homem parecia auspiciosamente terrível.
Ela
cruzou os braços, como se sentisse frio. Então baixou o rosto e
apertou o passo rumo ao portão. Naquele instante, desejava apenas
desaparecer o mais rápido possível de seu campo de visão.
O
homem, por sua vez, permaneceu impávido. Não esboçou qualquer
sinal de reação. Continuou ali parado, apenas observando, enquanto
a mulher deixava a casa exasperada e seguia quase correndo em direção
à igreja.
No
espaço de um segundo, mil coisas se passaram na cabeça de
Francesca. Quem seria aquele homem que a deixara tão perplexa? O que
fazia espiando a casa àquela hora da manhã? Uma certeza absoluta de
que nunca o vira antes sobreveio, mas era evidente que estava ali por
um motivo – a pergunta era qual.
Inevitavelmente
se lembrou das recomendações de Marco. No início, não levara
muito a sério, mas agora não sabia o que pensar. Marco estava mesmo
se escondendo? Não podia acreditar que arriscaria sua vida e a de
Enrico, mas que tipo de segredo tão terrível ele guardava?
Ela
foi para a igreja e durante a homília não ouviu uma palavra. Sua
mente estava inquieta, pressentia o perigo, não sabia o que fazer.
Ao anoitecer, quando Marco despertasse, poderia lhe contar. Até lá,
só
restava desejar que aquilo fosse um susto, nada pra se preocupar, uma
coisa passageira; e na volta para casa, aquele homem – aquela
sombra – já teria ido embora. Ficaria
tudo
bem.
Mas
não foi o que aconteceu...
Francesca
deparou-se outra vez com o homem, só que não estava mais do outro
lado, agora estava em seu portão.
― Esta
casa é sua? – ele perguntou. A
voz sussurrada, quase gutural.
Outro
calafrio, ainda mais forte que o primeiro. O coração pulsava
acelerado. Ela sentiu as pernas bambearem.
― Sim
– respondeu. – Por quê?
― Quem
mais mora aqui? – o homem insistiu, ignorando completamente a
pergunta de Francesca.
― Apenas
meu filho e eu... Posso saber quem é o senhor?
O
homem deu uma meia volta, coçando o queixo devagar.
― Estranho...
– disse, voltando-se outra vez para ela – A senhora parece jovem.
O seu filho tem quantos anos?
― O
senhor me dê licença, per
favore!
Mas
o homem fez exatamente o contrário, colocou-se entre ela e o portão.
― Porque
me lembro – ele disse – de ter visto um homem entrar aí... Um
pouco antes do amanhecer.
― Signore,
eu devo começar a pedir socorro?
― Io
non credo, signora
– retorquiu abrindo um pouco a aba do casaco, deixando que ela
visse o cabo de uma faca de caça que trazia junto à cintura. –
Adesso,
por que não abre a porta e me convida para entrar?
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