Recentemente, tenho visto alguma celeuma acerca da possível divindade de Medusa, referida em alguns círculos neopagãos como “aspecto negro” de Athená e em outros como deusa pré-olímpica, rebaixada à condição de monstro pelo patriarcado. Como sempre, faltam fontes para a discussão em português, que se ampara principalmente em textos de sites esotéricos, e as opiniões se dividem em radicalismos para todos os lados – tanto por parte dos que negam, quanto por parte dos que afirmam. Como tenho alguns anos de estrada em mitografia e, especialmente, no culto de Athená, resolvi escrever este texto para tentar trazer alguma luz à questão.
Primeiramente, há que se dizer que a divindade de Medusa não é uma invenção brasileira, muito menos de certos grupos que advogam para si mesmos a condição de tradição. De fato, é tema já antigo em estudos mitológicos e amplamente difundido no exterior, mas pouco comentado no Brasil. Até mesmo as distorções, segundo às quais Medusa é o “aspecto ancião” de uma “deusa tríplice da lua”, cujos outros dois aspectos seriam Métis e a própria Athená, é cópia do que se afirma nos mesmos círculos neopagãos, sobretudo nos Estados Unidos. Mas, afinal, Medusa é deusa ou monstro? Uma resposta simples: depende.
O mito de Medusa chega a nós enquanto a tragédia de uma sacerdotisa de Athená que teve a infelicidade de se apaixonar, em algumas versões, ou de ser estuprada, em outras, por Posídon, soberano divino dos mares. A violação da sacerdotisa, nas dependências do templo da deusa, teriam despertado a fúria de Athená, que então amaldiçoou Medusa, transformando-a em um monstro com cabelos de serpentes venenosas, capaz de tornar quem olhasse para ela em pedra. Dada a impetuosidade da vingança de Athená, faz mais sentido para nós pensar na primeira hipótese, de paixão e entrega voluntária, do que na segunda, de violação e estupro. Mas quando se trata de mito, é importante ter em mente que não existe certo e errado. O mito é, por definição, linguagem metafórica. Ele encerra chaves de mistérios. Não tem a pretensão de verdade factual e objetiva.
Ainda sobre a Medusa, o herói Perseus, em sua trajetória mítica, defronta-se com ela mais tarde, decapitando-a. Sua cabeça, que preserva todas as potencialidades ativas, é então usada para uma série de fins, sendo, finalmente, entregue à própria Athená, que a assenta em sua Égide, onde permanece desde então.
Primeiramente, há que se dizer que a divindade de Medusa não é uma invenção brasileira, muito menos de certos grupos que advogam para si mesmos a condição de tradição. De fato, é tema já antigo em estudos mitológicos e amplamente difundido no exterior, mas pouco comentado no Brasil. Até mesmo as distorções, segundo às quais Medusa é o “aspecto ancião” de uma “deusa tríplice da lua”, cujos outros dois aspectos seriam Métis e a própria Athená, é cópia do que se afirma nos mesmos círculos neopagãos, sobretudo nos Estados Unidos. Mas, afinal, Medusa é deusa ou monstro? Uma resposta simples: depende.
O mito de Medusa chega a nós enquanto a tragédia de uma sacerdotisa de Athená que teve a infelicidade de se apaixonar, em algumas versões, ou de ser estuprada, em outras, por Posídon, soberano divino dos mares. A violação da sacerdotisa, nas dependências do templo da deusa, teriam despertado a fúria de Athená, que então amaldiçoou Medusa, transformando-a em um monstro com cabelos de serpentes venenosas, capaz de tornar quem olhasse para ela em pedra. Dada a impetuosidade da vingança de Athená, faz mais sentido para nós pensar na primeira hipótese, de paixão e entrega voluntária, do que na segunda, de violação e estupro. Mas quando se trata de mito, é importante ter em mente que não existe certo e errado. O mito é, por definição, linguagem metafórica. Ele encerra chaves de mistérios. Não tem a pretensão de verdade factual e objetiva.
Ainda sobre a Medusa, o herói Perseus, em sua trajetória mítica, defronta-se com ela mais tarde, decapitando-a. Sua cabeça, que preserva todas as potencialidades ativas, é então usada para uma série de fins, sendo, finalmente, entregue à própria Athená, que a assenta em sua Égide, onde permanece desde então.
Athená e o Aégis com a cabeça de górgona. |
Medusa, em grego Μέδουσα,
que
significa “protetora”, foi usada, ou melhor, sua cabeça, acima
das portas de entrada de residências, templos e prédios públicos
como um amuleto de proteção contra a má intenção dos inimigos, o
gorgónion.
Então nos parece óbvio que ela, para além de mero monstro de
fábulas, sempre teve algum significado religioso para o grego pagão
de
outrora.
De
fato, filha de Fórcis e Ceto, duas divindades primordiais das águas,
Medusa é referida muitas vezes como deusa pré-olímpica na
mitografia. Ora, faz tanto sentido pensar que um filho mortal possa
nascer de pais imortais quanto o contrário. E ela também parece ter
sido, originalmente, a górgona por excelência, ocorrendo a divisão
em três – Medusa, Esteno e Euríale – em época posterior. É um
erro pensar que Medusa era “a única mortal” das três górgonas
por conta de sua decaptação. Sua cabeça, o gorgónion,
permanece, como já dissemos, com todas as potencialidades plenamente
ativas, de maneira que o fato de ter sido separada do corpo está
muito longe de significar a sua morte.
Sobre
tudo isso, Junito Brandão nos diz o seguinte:
Em
tese, apenas Medusa é Górgona. As duas outras, Ésteno e Euríale,
somente lato
sensu
é que podem ser assim denominadas. […] O mitologema de Medusa
evoluiu muito desde suas origens até a época helenística. De
início, a Górgona, apesar de monstro, é uma das divindades
primordiais, pertencente à geração pré-olímpica. Depois, foi
tida como vítima de uma metamorfose. (Mitologia Grega, vol. I, págs
238-239)
Então,
para chegar a uma conclusão sobre a divindade de Medusa, devemos
refletir,
primeiro, sobre o que caracteriza a condição divina. De fato, em
todo o período arcaico, clássico e helenístico não se tem notícia
de que se haja dado culto à Medusa. Mas para o grego antigo, o que
define o caráter divino é, principalmente, a condição da
eternidade. Nem a tudo o que é eterno se dá culto. Assim, podemos
concluir que, sim, há uma condição divina em Medusa, como há uma
condição divina em todos os monstros, eles mesmos representações
de forças imemoriais, a exemplo de Cérbero e Equidna. Dar culto aos
monstros, no entanto, é outra história.
UM
ASPECTO DE ATHENÁ?
Surge
a pergunta: de onde surgiu a ideia de que Medusa seria um “aspecto
negro” de Athená?
Não,
não é uma viagem interpretativa do mito clássico. Por incrível
que pareça,
há embasamento teórico, ainda que a afirmação, em si, seja uma
distorção.
Ocorre
que o mito mais famoso de Athená é aquele em que ela nasce da
cabeça de Zeus. Mas precisamos ter em mente que mito, também, é
uma narrativa. E, no curso da história, algumas narrativas parecem
prevalecer sobre outras. Para alguém minimamente familiarizado com o
universo religioso grego, a notícia de que mitos não são únicos e
uniformes não é nenhuma novidade. Assim, a versão segundo a qual
Athená nasce da cabeça de Zeus é uma opção narrativa que existe
desde o Arcaico, mas ganha
força no período clássico, em que se pode notar uma tendência
crescente de colocar Zeus no centro de tudo, sobretudo na cidade de
Atenas. A organização divina que
nos chega hoje como dada e muito natural,
com doze deuses olímpicos liderados por Zeus, é
tipicamente ateniense.
Hoje
sabemos que quase todas as deusas gregas têm origem cretense, e
alguns deuses, a exemplo do próprio Zeus, também. Com Athená não
é diferente. Ela chega à Grécia continental via Creta, assim como
Hera, Deméter, Perséphone, Ártemis e outras. Mas, no caso de
Athená, é sabido desde os tempos antigos que sua origem primeira é
muito antiga e africana, entre os bérberes da Líbia. Heródoto,
em sua Historiae,
nos conta o seguinte:
“[As
tribos da Líbia:] [...]
vivem às margens do lago Tritonis. […]
Eles
celebram um festival anual de Athená,
onde suas donzelas são separadas em dois grupos que lutam um contra
o outro com pedras, paus, dizem eles, honrando o caminho dos seus
ancestrais desta deusa nativa que nós chamamos de Athená.
Donzelas que morrem de seus ferimentos são consideradas falsas
virgens. Antes das garotas serem postas a lutar, o povo escolhe a
donzela mais bela e a arma com um capacete coríntio e uma panóplia
grega, para então ser montada em uma carruagem e conduzida ao longo
da margem do lago. Com qual armadura eles equipavam suas donzelas
antes dos gregos viverem próximos a eles eu não sei dizer; mas eu
suponho que a armadura seja egípcia; pois eu afirmo que os gregos
tomaram seu escudo e capacete dos egípcios. Como com Athená,
eles dizem que ela é filha de Poseidon e do lago Tritonis e que, por
algum motivo zangada com seu pai, ela deu a si mesma a Zeus, que a
fez sua filha. Tal é o que contam. A relação entre homens e
mulheres lá é promíscua; eles não coabitam, mas cruzam como gado.
Quando o filho de uma mulher está bem crescido, os homens se reúnem
por três meses e o filho é julgado como pertencendo ao homem com
quem ele mais se parece.” Heródoto,
História 4. 180 (trans. Godley) (Historiador grego séc. V A.E.C.)
Efetivamente,
podemos observar que o referido Lago Tritonis permanece importante
para a deusa em muitas tradições posteriores, mas as versões mais
antigas dão conta de que ela nasceu às margens do Lago Tritonis
(donde o epíteto Tritogenéia),
filha
de Posídon, ou ainda Tritão, e Tritonis. O mesmo Posídon que, no
mito aqueu, torna-se pivô da metamorfose de Medusa, de sacerdotisa a
monstro.
A
deusa nativa a que se refere Heródoto, e também Platão, não é
outra senão Tannit, da qual também deriva a antiquíssima divindade
pré-dinástica do Egito, Neith. Os paralelos entre Athená e Neith
são tantos e tão óbvios que se poderia discorrer uma longa lista
sobre eles. Em verdade, a relação entre as duas deusas, bem como a
origem comum em Tannit, eram conhecidas pelos próprios egípcios,
assim como pelos gregos. Havia um grande templo em honra a Neith na
cidade egípcia de Sais, onde se diz que Sólon foi bem recebido
apenas por ser ateniense.
O símbolo de Tannit contraposto à Snake-Goddess, de Creta. |
Ainda
sobre o relato de Heródoto, é correto dizer que essas sacerdotisas
guerreiras do Lago Tritonis inspiraram o mito grego das Amazonas. Até
onde sabemos, havia nas margens do lago mistérios em torno de
Tannit, cuja face não podia ser contemplada. Por causa disso, suas
sacerdotisas usavam máscaras de rostos femininos com cabelos de
serpente, representando
o
mistério que se oculta ao não-iniciado sob
aspectos pavorosos. A inscrição que se encontrava no adyton
do templo de Neith, em Sais, conforme descrita por Próclo,
provavelmente se deve a esse fato: “Eu sou as coisas que são, que
serão e que têm sido. Nenhum mortal jamais contemplou a minha face.
O fruto de meu ventre é o sol.”
Uma representação de Neith. |
Então talvez possamos supôr – e a historiografia frequentemente o faz – que o mito grego da Medusa é uma reminiscência desses antigos cultos às margens do lago Tritonis, na Líbia. Um culto voltado para os aspectos mais selvagens, ctônios, ligados à ritos de fertilidade, dos quais a Athená aquéia, Polia, havia se distanciado, mas com os quais ela vem a se reconciliar por intermédio de Perseu. Afinal, ao receber o gorgónion, a deusa o coloca estampado em sua égide, no meio do peito, exibindo-o para todos ao mesmo tempo em que o faz de escudo.
A
Medusa, assim, permanece viva. Sua eternidade perpetua-se não apenas
pelas irmãs, górgonas lato
sensu,
como nos diz Junito, mas também pela própria Athená, da qual se
torna parte indissociável. Como
Jane
Ellen Harrison observa,
em
Prolegomena
to the Study of Greek Religion,
“Medusa
é uma cabeça e nada mais […] uma máscara com um corpo anexado
mais tarde.”
De fato, ao analisarmos o mito aqueu da jornada heróica de Perseu,
vemos que é somente após a decaptação que o potencial de Medusa
se manifesta completamente. Das gotas de seu sangue nascem as
serpentes, o cavalo alado Pégasu e o gigante Crisaor, além de ter
sido creditado ao sangue da Medusa os segredos que fizeram de
Asklépio o deus da medicina.
Medusa
é, portanto, uma parte de Athená, um mistério ligado às origens
de seu culto, e certamente não pode ser privada da condição divina
que possui. Por
outro lado, exatamente por ser parte de Athená e por estar ligada a
Ela tanto quanto a Égide em seu peito, nunca se lhe deu culto, pois
se em uma visão não faz sentido dar culto a um monstro, em outra
não faz sentido pensar as duas separadas.
Para
saber mais:
Robert
Graves
– Os Mitos Gregos.
Junito
de Souza Brandão
– Mitologia Grega. Vol. I, II e III.
Junito
de Souza Brandão
– Dicionário Mítico-Etimológico. Vol. I e II.
Jane
Ellen Harrison
– Prolegomena
to the Study of Greek Religion.
Martin
Bernal
– Black Athena: the
afroasiatic
roots
of classical
civilization.
Vol. I, II e III.
Daniel
Orrells, Gurminder K. Bhambra e Tessa Roynon
– African Athena: new agendas (classical presences).
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