quinta-feira, 6 de março de 2014

A JUSTIÇA DOS JUSTICEIROS

O Remorso de Orestes. William-Adolphe Bouguereau

Recentemente, o Brasil vem sendo palco da atuação de grupos civis vulgarmente denominados “justiceiros”. Trata-se, amiúde, da boa e velha justiça com as próprias mãos, a Lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”. Já tornou-se uma brincadeira em meu círculo de amigos dizermos que o país está sofrendo de Transtorno Bipolar e, como não poderia deixar de ser, as opiniões quanto a isso se dividem nas redes sociais e botequins brasis afora entre os que são radicalmente contra e os que são radicalmente a favor.

Quem é radicalmente contra costuma adotar o discurso de culpabilização da sociedade. A sociedade, esse ente abstrato e carente de definição, seria a culpada por produzir a criminalidade – ela mesma produz o meliante por meio das injustiças sociais. Para este grupo, a criminalidade é um sintoma de nossas estruturas sociais desiguais e extremamente decadentes. Ela não pode ser vista como um problema sanitário e, portanto, a ação dos justiceiros é apenas mais uma forma de discriminação sócio-econômica-racial.

Eles certamente deixam de considerar que, se por um lado a criminalidade exacerbada é fruto de um quadro social doente, por outro a ação dos justiceiros é igualmente sintomática de um sistema judicial e carcerário falidos, da impunidade aviltante e da sensação de insegurança crescente. Alguns chegam mesmo a negar o óbvio, reduzindo o fenômeno a uma questão cultural, racismo/elitismo secular. Não é preciso ser Einstein, no entanto, para calcular a fórmula simples, quase matemática: sem impunidade a ação de “justiceiros” não faz o menor sentido. Pela própria lógica da coisa, uma existe em função da outra.

Os que são radicalmente a favor, por outro lado, costumam adotar o discurso do “bandido bom é bandido morto”. Para eles, a desigualdade social existe, mas não é desculpa para o crime. Eles afirmam que o cidadão trabalhador, que paga seus impostos, sente-se acuado, com medo, em meio a tanta violência. E a culpa da criminalidade acentuada em nossas cidades seria do sucateamento e da corrupção das forças policiais, bem como da sensação de impunidade de que goza o indivíduo ao cometer um crime. É como se cada um pudesse fazer o que quisesse.

Estes, por ingenuidade ou incompetência política, preocupam-se com o momento, desconsiderando os efeitos dessa “solução” um pouco mais a frente. Quando escolhemos viver em sociedade, institui-se algo que  Thomas Hobbes, John Locke  e Jean-Jacques Rousseau denominaram Pacto Social. Confiamos a uma entidade denominada Estado a responsabilidade por manter a segurança no meio social. Se o Pacto é rompido, seja pela ação do próprio Estado ou pela nossa, enquanto cidadãos, o resultado disso é o caos em longo prazo. Justiça não é algo como o azul, o quente ou o claro, com um significado absoluto e fixo para todos. Existem tantas concepções de justiça quanto existem de coisas como bom e ruim, certo e errado... Imaginemos o que aconteceria caso vários grupos diferentes começassem a se organizar, cada um deles defendendo a sua própria concepção de justiça.

Para exemplificar, recorro à mitologia grega. O mito de Orestes e a Maldição da Casa de Atreu é uma das passagens mais sangrentas da mitologia de todos os povos. Narrada detalhadamente na obra de Ésquilo (525 a.E.C. - 456 a.E.C.), a saga apresenta uma sucessão terrível de assassinatos motivados por vingança. Tudo começa quando os irmãos Atreu e Tiestes, após a morte do pai, o rei Euristeu, em batalha, passam a disputar o trono de Argos. Uma antiga profecia indicava que Atreu seria o sucessor de Euristeu. Isso fez Tiestes trapacear. Ele decidiu atrair as atenções da esposa do irmão, seduzindo-a e convencendo-a a trair o marido para favorecê-lo. A dupla traição, no entanto, não tardou a ser descoberta e Tiestes acabou exilado em outra cidade, onde se casou com outra mulher e com ela teve três filhos.

Atreu, de contrapartida, conseguiu o trono de Argos, mas amargava um ódio incurável pela traição sofrida. Decidido a vingar-se, tramou um plano terrível – atirou a esposa ao mar e convidou o irmão para um banquete, fingindo motivado pelo desejo de reconciliação. Nesse banquete, Atreu serviu a Tiestes a carne de seus próprios filhos num ensopado. Tiestes não desconfiou de nada até o final da refeição, quando lhe foram mostradas as cabeças decepadas dos meninos. Desesperado, ele amaldiçoou Atreu por toda a sua descendência. Esse é apenas o começo da história.

Anos mais tarde, Atreu acabou morto por Egisto, também filho de Tiestes, que então se apoderou do trono de Argos, passando a governar ao lado do pai. O tempo passou e Agamêmnon, filho de Atreu, agora rei de Micenas, partiu de Argos para a Guerra de Tróia. Com o objetivo de aplacar a fúria da deusa Ártemis por um malfeito passado e conseguir bons ventos para a viagem, ele sacrificou a própria filha, Ifigênia, provocando a fúria e o rancor de sua esposa, Clitemnestra.

No curso dos dez anos que, segundo a Ilíada, teria durado a Guerra de Tróia, Clitemnestra e Egisto tornaram-se amantes, tramando em segredo o brutal assassinato de Agamêmnon tão logo ele pusesse os pés casa. O plano foi levado a cabo e Clitemnestra pode, enfim, vingar a morte da filha. No entanto, passados mais alguns anos, o assassinato de Agamêmnon foi vingado pelo filho, Orestes, que acabou, por sua vez, matando a própria mãe. O matricídio era um crime imperdoável segundo as leis mais antigas. Deste modo, o fantasma de Clitemnestra, das profundezas do Hades, clamou às Erínias, deusas da vingança. O resultado foi que Orestes passou a sofrer perseguições terríveis.

O mito culmina com a intervenção de Atená, deusa da sabedoria, que, para o propósito de julgar o crime de Orestes, convoca o primeiro tribunal do júri, composto por doze cidadãos atenienses (o número dos ministros de Zeus). Na ocasião, segundo o mito, o julgamento terminou em empate. Os cidadãos, divididos, não foram capazes de chegar a um consenso, cabendo à própria deusa a solução para o impasse (o Voto de Minerva). Atená optou pelo fim daquele ciclo interminável de ódio e vingança, absolvendo Orestes. Mas esse ato acabou despertando a ira das Erínias, que se sentiram humilhadas e privadas da função que assumiram desde a noite dos tempos.

Novamente, usando de toda a sabedoria que caracterizava a sua natureza, Atená conseguiu apaziguá-las, auferindo-lhes o título de Eumênides (as boas deusas) e ordenando que lhes fosse consagrado um templo ao lado do novo tribunal. Assim, todos os homens deveriam lembrar-se do que acontece quando a justiça não é tratada com sabedoria e efetividade.

Esse mito ilustra bem o momento que estamos vivendo e acho lamentável que tenhamos perdido a capacidade de extrair sabedoria dessas passagens milenares. Não se pode dizer que não haja justiça na ação dos justiceiros. Há. Mas a questão é – que justiça é essa?

É a justiça das Erínias, a justiça ancestral, que já encontrou respaldo jurídico entre os homens e, de certa forma, ainda encontra respaldo moral. A verdade é que os justiceiros têm lá a sua razão. Os dois lados, tanto dos que são radicalmente contra quanto dos que são radicalmente a favor, aliás, têm sua parcela de razão. Falta-lhes, todavia, perceber que essa razão não é absoluta. Quiçá tentar olhar para a razão do outro.

No fundo, ainda somos como os cidadãos atenienses, divididos entre a condenação ou absolvição de Orestes. O problema da justiça das Erínias é que ela é avassaladora, insaciável, reproduz-se em um ciclo interminável de tormento. Já a justiça de Atená é a justiça do Pacto Social, a justiça preocupada com o equilíbrio da balança.

O sociólogo Émile Durkheim afirmava que o crime é uma condição normal em toda e qualquer sociedade. A condição patológica não está no crime, mas na impunidade. Infelizmente, hoje já não temos o Templo das Eumênides ao lado dos tribunais, para nos lembrar do que acontece quando a justiça de Atená sai de cena e entra a das Erínias. Deixo, então, a seguinte questão em aberto: teremos sabedoria para dar o Voto de Minerva? Porque, seja como for, nosso futuro depende dessa resposta.   

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