sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Veja X "Questão Cigana": Ignorância ou Perversidade?



Depois de quase uma semana, finalmente li a famigerada matéria da Veja sobre a “questão cigana” na Europa.

Depois de fechar a revista, precisei de um tempo para entender – acreditar, aceitar ou coisa que o valha – o que tinha acabado de ler. Passados mais ou menos vinte minutos, a primeira coisa que me veio à cabeça não teve exatamente a ver com o conteúdo da matéria e foi: “bem, se restava alguma dúvida de que essa era uma revista reacionária e simpática aos ideais de extrema-direita, agora não resta mais”.

Depois desse primeiro pensamento, fui acometido por uma espécie de tristeza... Não, acho que estava mais para um pesar. E foi analisando esse pesar que consegui encontrar algumas palavras para dizer acerca desse assunto.

Estou profundamente consternado. O que a Veja fez foi um ato de extrema crueldade. Além de cruel, também podemos dizer que foi um ato leviano e irresponsável. Cruel, porque trabalha com fatos, com coisas que não podem ser negadas, mas parte destes fatos para uma generalização assassina (desculpem, não há palavra melhor) e extremamente prejudicial. Leviana, porque leva o leitor a pensar que o crime e a violência são características naturais dos indivíduos de etnia romani. Irresponsável, porque ignora que o crime termina sendo a via de sobrevivência das populações extremamente marginalizadas, e, ao ignorar este fato, insufla o preconceito naqueles que desconhecem essa realidade.

Ora, quem me conhece, apenas um pouco, sabe que não sou nenhum partidário ingênuo de vitimizações. Muito pelo contrário. Acredito piamente na responsabilidade individual. Mas nós estamos falando de estigmas sociais atrozes e de generalizações perversas. É claro que a maior parte dos crimes de furto e roubo são praticados por ciganos, na Europa. Da mesma forma, a maior parte dos crimes de furto e roubo são praticados por negros no Brasil.

Os negros... Sempre que preciso traçar um paralelo cultural com os ciganos, escolho os judeus. Mas para traçar um paralelo social, os negros são o melhor exemplo. Não resta dúvidas: os ciganos são para a Europa o que os negros foram – e em certa medida continuam sendo – para o Brasil. Ainda que por processos históricos distintos, os dois grupos estão regidos pelas mesmas reações de causa e efeito: ambos foram submetidos a um processo de marginalização extrema, que por sua vez resultou numa população profundamente estigmatizada. Como acontece com os negros no Brasil, a maior parte dos indivíduos romanis da Europa são pessoas que vivem suas vidas de maneira honesta, ainda que, para isso, enfrentando muitas dificuldades. Mas todos acabam levando a mesma pecha de delinqüentes por natureza, bandalheiros, assassinos e ladrões.

A reportagem da Veja deixa transparecer uma abordagem xenofóbica e preconceituosa, que, para além de apenas ignorar o impasse social que, sem dúvida, é um fator determinante nas altas estatísticas de ciganos envolvidos em atividades criminosas, deixa implícita a ideia de que a condição criminosa é determinada pela origem étnica. Ou seja, são criminosos porque são ciganos. E ninguém os quer como vizinhos, ponto final.

Isso, novamente, não é muito diferente do que acontece com os negros no Brasil. Lembro de já ter ouvido máximas assustadoramente racistas, e de pessoas que se julgavam “boas cristãs”. Coisas como: “preto quando não caga na entrada, caga na saída”. Ou então coisa pior, como: “preto já nasce musculoso que é pra conseguir correr mais rápido da polícia”. E coisas muito semelhantes a essas estão sendo ditas na Europa sobre os ciganos... E são coisas desse tipo que a Veja, com o desserviço de sua reportagem, está disseminando na mente dos leitores brasileiros.

O título da reportagem reproduz uma máxima dirigida aos defensores dos ciganos e já não deixa dúvidas: “você iria querê-los como seus vizinhos?”. Ora, esse é justamente o tipo de abordagem que, além de não ajudar, acaba piorando a situação. Porque de um lado estimula o preconceito. De outro fomenta a revolta. Os ciganos, outra vez como os negros, vão sentindo-se cada vez mais excluídos, cada vez mais a parte da sociedade. E justamente por causa disso, vão se sentindo cada vez mais revoltados, cada vez menos dispostos a integrar-se e cada vez mais dispostos a boicotar o mundo gadjé.

Eu penso que é uma benção termos, hoje, indivíduos de origem romani que possuem formação para interagir com o mundo não-cigano. Porque é através de nós que o conhecimento desse tipo de coisa chega aos nossos, não passa ao largo. E, de onde vejo, é nossa obrigação usarmos do mecanismo democrático para dar voz ao nosso povo, mostrar que os ciganos não são, como muitos pensam, nômades ignorantes sem qualquer acesso à informação. Façamos, pois, valer os princípios constitucionais que execram o preconceito e estabelecem o racismo como crime imprescritível e inafiançável (CF/1988. Art. 5◦, XLII).

Ao menos por hora, já seria consideravelmente significativo, e bastante incômodo para a Veja, se todos os romá com acesso à internet, bem como todos os simpatizantes do povo Rom, pudessem assinar a seguinte petição:



E que Deula nos proteja da perversidade dos ignorantes... Porque do jeito que a coisa vai, só com muita proteção divina mesmo!

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

A Gênese de Satã

Le génie du mal. Exposta na catedral de Saint-Paul de Liège.

Comunicação apresentada no XXIII Ciclo de Debates em História Antiga: Política & Comunidade, ao dia 26 de setembro de 2013, no IFCS, UFRJ. 


Bom, vamos falar sobre a gênese de Satã, ou a origem do mal no imaginário religioso judaico-cristão. Estudar esse tema acabou sendo algo inusitado para mim. Eu sempre me interessei por religião antiga, especificamente religião grega e ainda me interesso bastante. Então, certa ocasião, estudando sobre os daimone, acabei me deparando com o fato de que foi nestes gênios, intermediários entre os deuses e os homens, que tiveram origem os temerários demônios cristãos.

Neste momento foi que surgiu a dúvida: qual teria sido a origem do Diabo propriamente dito, esta entidade personificadora do mal? É sabido que o cristianismo, enquanto religião dominante na metade ocidental do mundo, forneceu as bases para a constituição de todo o sistema ético e moral que temos hoje. E nesse sistema ético-moral, Satã tem uma participação importante. Não se pode pensar em cristianismo, na verdade, sem a presença, sempre assustadora, de Satã. Prova disso é que o aclamado historiador Peter Brown, em seu “A Ascensão do Cristianismo no Ocidente Medieval”, declara:  “Salvação significava, antes de tudo o mais, salvaguarda frente à idolatria e ao poder dos demônios.”

A crença em Satã é um dogma oficial da religião católica, tendo sido estabelecida no Concílio IV de Latrão, de maneira que negar sua existência acaba por constituir uma heresia. E os segmentos protestantes, mesmo não se importando muito com a questão das heresias, parecem reconhecer a importância da consciência de que há uma força maligna a solta no universo trabalhando para a destruição da criação divina, em especial do gênero humano. Como um historiador mais ou menos familiarizado com a ideia das modificações e adaptações pelas quais passam as crenças religiosas, achei que cabia a seguinte pergunta: teria Satã sido uma realidade com a qual conviveram os hebreus desde os primórdios da crença em Iahweh?   

Muitos são os nomes ou alcunhas pelas quais se conhece o espírito da maldade. No entanto, em se tratando da história de Satã, é importante deixar claro que se trata de uma pesquisa longa, que se desdobra por várias épocas e contextos, nos quais o nome pelo qual a entidade é conhecida se torna especialmente importante. Desta forma, como essa apresentação está voltada para uma primeira etapa da pesquisa, que procura dar conta do surgimento da crença em Satã no pensamento religioso hebreu, vamos usar somente o nome Satã. Satã corresponde à forma hebraica, presente no Antigo Testamento, que mais tarde encontraria paralelo no Aramaico Satanás, tal como está presente no Novo Testamento. As formas “Diabo”, “Demônio” e “Lúcifer” pertencem a um contexto mais tardio, cada uma delas encerrando uma demanda específica, caracterizada pelas necessidades politico-religiosas da época.

É importante frisar, também, que para este primeiro momento da pesquisa foram tomadas como fontes, em comparação, a Bíblia de Jerusalém, pelo seu reconhecimento acadêmico, e a Tora, edição bilíngüe da Sefer, de 2001.

Pois bem, o primeiro grande impasse que encontramos ao pesquisar a origem da crença em Satã é o fato de uma entidade sobrenatural que encerre em si mesma a síntese de todo o mal, no pensamento da esmagadora maioria dos povos da antiguidade, não fazer muito sentido. Trata-se da definição de coisas como mal e bem. Já dissemos que Satã é imprescindível para a idealização cristã e ocidental do mundo. Um mundo dicotômico, onde o bem e o mal existem em esferas muito bem definidas e separadas. No entanto, os povos da antiguidade não pensavam um mundo assim tão bem divido entre forças opostas, luz e escuridão, bem e mal. Antes, todos os seres da criação, bem como os deuses, encerravam em si mesmos luz e sombras, e podiam ser bons e justos num momento, maus e perversos em outro. Na Mesopotâmia, por exemplo, havia o deus Adad, senhor do clima e das tempestades. Adad era considerado um deus benevolente e provedor, pois era responsável pelas cheias que inundavam as planícies do Crescente Fértil, favorecendo a agricultura. No entanto, o mesmo deus recebia o epíteto de “o de iras terríveis”, era considerado temperamental e no episódio do dilúvio, que encontra em textos mesopotâmicos a sua versão mais antiga, dizimou a humanidade inteira com uma chuva torrencial, depois de haver fracassado na tentativa de exterminar os homens através da seca.     

Para usar um exemplo grego, Afrodite é uma deusa ora enaltecida pela beleza e pelos prazeres com os quais brinda o mundo, ora temida e execrada como uma donzela caprichosa que a todos faz sucumbir ante aos desmandos irracionais da paixão. E o mesmo vale para todos os deuses. Até mesmo para Iahweh, o deus tutelar dos hebreus. Mesmo na religião hebraica primitiva, o bem e o mal emanavam da mesma e única fonte. Não havia, pois, uma distinção originária entre o bem e o mal. Essa divisão, que a nós parece tão familiar, simplesmente não existia. E isso se faz visível em várias passagens do Antigo Testamento.

Cabe então a seguinte pergunta, se a questão da natureza do mal estava desta forma resolvida, de que maneira poderia vir a ser concebida a existência do mal personificado, a existência de Satã? 

Havia um povo, em especial, cujas crenças e cosmovisão destoavam do panorama apresentado: os persas. Os persas, no período Aquemênida, apresentavam já cristalizada uma visão espiritual do mundo em conflito. Toda a criação estaria, segundo as crenças de Zaratustra, que ficaram conhecidas como zoroastrismo, dividida entre dois seres: Ahura Mazda, e Angra Mainyu, o primeiro personificação do bem, da vida e da justiça; o segundo, em oposição, o mal, a fome, as pestes, a escuridão e a morte. Esses dois seres lutariam pela supremacia do universo até o juízo final, quando Angra Mainyu seria derradeiramente derrotado. E apenas nesta breve explanação sobre as crenças persas, vocês já devem ter percebido várias coisas bastante familiares a tudo o que conhecemos da religião cristã.

Infelizmente, o tempo que temos aqui não me permite entrar muito profundamente nesse assunto, que é fascinante. Vale para nós sabermos que os cinco livros da Tora, que constituem o Pentateuco, a assim chamada “Lei de Moisés”, não mencionam a figura de Satã nem uma única vez. Ele vai aparecer somente nos livros dos profetas escatológicos, posteriores ao Exílio da Babilônia, quando o povo hebreu esteve por um período prolongado em intenso intercâmbio cultural com o próprio povo babilônico – e suas crenças – e, já no finalzinho e por um longo período depois, com os persas, que por causa de disputas internas, disputas estas que tinham a ver com religião, acabaram conquistando Babilônia, quase sem luta, em 539 a.E.C.

A troca cultural que houve neste período e em períodos posteriores é inegável. Primeiro, há que notar que os Hebreus, antes do contato com os persas, eram um povo de tradição predominantemente oral. Tradição esta que sobrevive até hoje na forma do Talmud e da Kaballah. Os persas, com o seu Zend Avesta, foram o primeiro povo de que se tem notícia a adotar textos como escrituras sagradas. Este hábito influenciou os indianos e os hebreus. Também Ciro II, então o rei dos persas aquemênidas, foi o primeiro a receber o título de “messias” nos textos escatológicos. Ciro, que nunca foi hebreu. E várias outras inovações foram sendo introduzidas no pensamento religioso hebreu a partir desse contato, que pela vassalagem dos monarcas do povo de Israel, recém-liberto do cativeiro, continuaria por um longo período, praticamente até Alexandre invadir e conquistar a Pérsia, dando início ao período helenístico.

Tudo leva a crer que é Satã, na verdade Angra Mainyu, mais uma dessas inovações, que penetraram no universo espiritual hebreu por via dessas trocas culturais com os persas. Um povo de todas as maneiras muito admirado pelos hebreus, tanto por haver lhes concedido outra vez a liberdade quanto por haver destituído do poder a família do monarca, para eles um tirano, que os havia aprisionado. Mas a inserção da figura de Satã, bem como todas essas inovações de que estamos falando, não aconteceram de maneira absoluta ou imediata. Não foram desde sempre aceitas por todos os grupos, de maneira que jamais constituíram uma unanimidade. E reflexos de algumas discordâncias podem ser encontrados no próprio texto bíblico. Por exemplo, na questão do famigerado senso que teria sido promovido por Davi, cronistas diferentes se dividem quanto à responsabilidade objetiva pelo ato do monarca ( ver I Crônicas, 21:1 e II Samuel, 24:1).

Os censos, aliás, eram, ao que tudo indica, motivo de grande instabilidade social à época. Não sem motivo, pois que quase sempre eles revelavam uma necessidade do soberano de engordar o tesouro, o que não poderia ser feito sem onerar os lucros dos súditos. É provavelmente ao medo que a realização de sensos suscitava que Satã deve seu nome. Havia no sistema de governo financeiros dos aquemênidas um funcionário de confiança do soberano, encarregado de andar pelas terras do reino, tanto as originárias quanto às conquistadas, conferindo e relatando ao rei se seus súditos estavam declarando honestamente os rendimentos. Esse funcionário era conhecido como “Os Olhos do Rei”, e como a resposta quase nunca era positiva, a visita dele quase sempre significa algum aumento na carga tributária do povo.

É provável que a palavra “satã”, que, como já dissemos, significa adversário ou acusador, tenha sido primeiramente usada não como um nome próprio, mas como um adjetivo pejorativo para esses enviados do rei: famigerados acusadores, para não dizer delatores, aos olhos dos desafortunados vassalos. Inicialmente, o Satã espiritual não parece distinguir-se muito dessa ideia. A primeira vez em que aparece nas Escrituras é no livro de Jó, um verdadeiro tratado sobre as razões espirituais da desventura, e no original em hebraico é grafado com inicial minúscula, ou seja, não como um nome, mas uma espécie de alcunha ou título. Iahweh, retratado a exemplo dos monarcas terrestres (como não poderia deixar de ser, afinal era um de seus epítetos o de “rei dos reis”), encontrava-se reunido com os anjos em assembléia. É quando chega satã e lhe insufla a duvida quanto a honestidade de seu mais estimado servo, o fiel Jó. E satã, que neste primeiro momento não se apresenta como um inimigo de Iahweh, mas como um de seus anjos, portador de tarefa indesejável aos homens, executa tarefa análoga ao do funcionário aquemênida: ele diz a Iahweh que a fidelidade de Jó se deve aos privilégios que recebe ante aos demais. Iahweh, por sua vez, novamente a exemplo do rei da Pérsia, manda que satã lhe prive de seus privilégios para testar-lhe a fidelidade.

A imagem de Satã, esse ser indesejável, porém a serviço de Iahweh, mudará pouco e de forma gradual no Antigo Testamento. Aos poucos, ele passará de um anjo, que apenas fiscaliza os atos dos homens para denunciar os maus a Deus, a um ser com a perniciosa capacidade de inspirar más ações, com o objetivo puro e simples de levar o homem à perdição. Aos poucos, paradoxalmente, Satã se tornaria cada vez mais parecido com o seu ancestral persa, Angra Mainyu, ganhando contornos mais bem definidos e nitidamente perversos nos primeiros anos da era cristã.


A história que começa a se delinear no período do Exílio Babilônico é longa e cheia de reviravoltas. Não seria um erro afirmar que ela se estende até os dias de hoje, pois a figura de Satã, que foi agregando alcunhas no curso do tempo, ainda é distorcida e remodelada para atender às demandas e necessidades religiosas dos dias de hoje. Todavia, em termos de sua gênese, quer dizer, de seu nascimento no pensamento religioso hebreu, do qual passaria ao imaginário cristão, cabem três conclusões. Num primeiro momento, observamos que a crença dicotômica em um bem e mal absolutos não é originalmente hebraica. Num segundo momento, observamos que o Exílio da Babilônia provoca uma crise religiosa muito séria, na qual já não é possível afirmar que a maldade é sempre punida e a virtude é sempre recompensada. Neste sentido, o contato com a espiritualidade persa oferece algumas respostas e o surgimento da figura de Satã a partir deste contato irá, progressivamente, tornando Deus uma figura mais leve, na medida em que tira dele a responsabilidade pelo mal. Por fim, num terceiro e último momento, cabe reforçar a ideia já implícita de que Satã não nasce como um inimigo de Deus, embora o seja, de fato, dos homens. Ele - ou eles, já que o texto bíblico não deixa suficientemente claro se é um ou se são vários - é um aliado de Iahweh. E Satã, que hoje grafamos com inicial maiúscula, é antes um adjetivo pejorativo que propriamente um nome.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Considerações sobre o "etnocídio" cigano.

Crianças ciganas em comunidade na Romênia.

Bem, amigos, preparem-se que lá vem livro! (risos) Agradeço desde já aos que tiverem coragem e disposição para ler até o final, ok?

Estou lendo um livro muito bom sobre ciganos, que reproduz, porém, uma maneira de pensar muito própria da década de 70 (década em que foi publicado o livro que estou lendo) e que ainda encontra ecos nos dias de hoje. Transcrevo um trecho, abaixo, que sintetiza bem a posição defendida pelo autor:

“Os ciganos são como os Peles-Vermelhas, os Bascos, os Mongóis, e os Judeus, um dos grupos humanos mais misteriosos e, como tal mais perseguidos. São também alvo do maior 'etnocídio pela absorção' dos últimos tempos, somente comparável ao que foi (e continua a ser) levado a cabo contra os Peles-Vermelhas. Essa tentativa de absorção não é, afinal, mais que um entre os múltiplos signos que nos avisam da aproximação do 'fim dos tempos' ― do 'óbito' da espiritualidade, do começo de uma verdadeira 'ditadura da História', com todas as conotações geo-políticas e espaço-vitais que tal tempo disfarça ― do término da Era de Kali, a da Dissolução. O verdadeiro cigano, o nómada, tende a desaparecer, e com ele toda a Tradição, todo um povo que sempre recusou a 'identidade cultural' tipo Nações Unidas que, hoje, lhe pretendem impor. Este livro é o apelo do autor a todos os Homens, entendendo por este termo todos aqueles que não querem deixar-se destruir ― e aos Ciganos que querem manter-se fiéis à sua Tradição.” (O Testamento Mágico dos Ciganos, contracapa)

No geral, o livro é, como já disse, muito bom, mas eu gostaria de chamar a atenção para esse entendimento particular de etnocídio que ele nos apresenta. Em outro trecho do livro, o autor diz: “[...] E convém que façamos aqui uma distinção, que deverá ficar bem nítida, entre este verdadeiro cigano e a grande maioria dos ciganos actuais, ou seja, entre o cigano tradicional e o moderno cigano 'progressista'.” (p. 11) Ou seja, para o autor, verdadeiro cigano é aquele das antigas caravanas, nômade por excelência, alvo de perseguições cruéis, um pária social. E há um enobrecimento nítido dessa condição, que fica ainda mais claro quando, para o autor, o cigano “assimilado”, sedentário, portador de direitos humanos declarados pela ONU, deixa de ser um “verdadeiro cigano”.

Acho que cabe aqui uma reflexão. Aliás, algumas reflexões. A primeira delas: o que faz um cigano “mais” cigano ou “menos”cigano? Será que algum critério pode ser estabelecido de maneira absoluta a este respeito? Eu acho que não. Ser cigano é, até onde eu compreendo, pertencer a um grupo étnico, a uma linhagem que passa por descendência e hereditariedade, não uma condição assumida, que paira num céu de abstração e pode ser arrematada por qualquer pessoa, a qualquer tempo. Para ficar mais claro, não consigo ver um cigano deixando de ser cigano em qualquer circunstância. Pois se adotarmos o paradigma inverso, por exemplo, só poderemos considerar cigano aquele que comer sarmá todo dia! Comeu sushi no fim de semana, já era!

Outro ponto, creio, bastante importante, é a concepção de liberdade que normalmente o gadjô tem. Para os gadjé, o cigano é uma criatura completamente livre porque está fora do sistema social em que a comunidade gadjikane (não-cigana) como um todo se encontra inserida. Mas, ao pensar assim, ele se esquece que essa é uma liberdade relativa. Se de um lado o cigano está fora de um contexto sócio-cultural gadjô, de outro ele está absolutamente imerso em um contexto sócio-cultural romani, ainda mais rígido e, muitas vezes, mais opressor que o não-cigano. Desse modo, essa coisa, muito comum no discurso dos admiradores dos ciganos, de família, fraternidade, etc., é linda, realmente, mas pode ser muito sufocante também. Uma espécie de prisão que os não-ciganos há muito esqueceram como é, pois sua cultura mudou.

É claro que não estou querendo sentar o pau na minha própria gente aqui. Não é isso. Estou apenas oferecendo um outro olhar. Estou tentando mostrar que, como diz o velho jargão, a grama do vizinho parece sempre mais verde do que é.

E como último ponto, gostaria de voltar ao que disse mais em cima, quando falei que a cultura gadjikane mudou.O cigano é um povo complicado. Complicado porque sofre de um grave problema de identidade. É como se a identidade do cigano estivesse na cultura, em costumes que, uma vez perdidos, levam junto a própria "ciganidade" do indivíduo. O problema desse tipo de compreensão é que a cultura, por ser uma coisa viva, muda, naturalmente. Não é uma coisa inerte, estática. E muitos ciganos acabam num torturante processo de luta contra o ciclo natural das coisas, tentando manter a tradição intacta, intocada pela passagem do tempo e das gerações. 

Cabe aqui outra pergunta: o quanto do que julgamos "tradição cigana" é realmente cigano? Pra ficar melhor ainda, o quanto do que pensamos ser uma tradição "tão nossa" não foi resultado de trocas e empréstimos de culturas não ciganas em tempos passados? Só para citar um exemplo bastante famoso, as slavas e as pomanas (rito fúnebre) encontram origem numa cultura não-cigana, os antigos eslavos, com pouquíssimas diferenças do que hoje se apresenta como tradição romani autêntica!

Não sou, nem quero ser o dono da verdade, mas algo que aprendi com as ciências humanas foi que seu maior legado para a humanidade está justamente na possibilidade de ver uma mesma coisa sob várias e diferentes perspectivas. E esta é a perspectiva que eu, humildemente, proponho. Ora, o autor traça uma comparação entre ciganos e judeus. Pois os judeus são um exemplo perfeito de povo que soube se unir e penetrar na sociedade gadjikane sem perder as raízes.

Esse é um questionamento importante: será que no mundo de hoje, quando a humanidade já passou a marca dos 7 bilhões de indivíduos, existe espaço para um povo sem lugar nenhum, que se coloca à margem de todos os lugares? Um povo que nasce numa terra e passa a vida toda se considerando estrangeiro na própria terra em que nasceu? Um povo que se condena a não ter os mesmos benefícios que esta terra oferece para todos os seus filhos? Será que há sabedoria nisso?

Se o lado ruim da globalização é o risco (real) de que aconteça uma homogeneização generalizada dos povos, o lado bom (que também existe) me parece ser proporcionar a povos distintos algo de comum em uma convivência pacífica compartilhada. E eu acho, só acho, que nesse aspecto nós, ciganos, podemos perfeitamente dividir o mundo com os gadjé, aceitar as suas leis e a sua estrutura de base, já que nunca tivemos – e nem quisemos ter – um país para fazer do nosso jeito, mas, a exemplo dos judeus, nos manter unidos em torno de nossa própria identidade cultural, com tudo o que ela representa. Buscar resgatar a nossa história, aprendendo a valorizá-la e ensinando isso aos nossos jovens, sem, contudo, deixar de perceber que a cultura muda, isso é inevitável, e que os jovens têm o direito de experimentar a vida ao seu próprio modo. 

Afinal, não há o que temer. Se a árvore for forte, o fruto não cairá longe do pé.