Depois de quase uma semana,
finalmente li a famigerada matéria da Veja sobre a “questão cigana” na Europa.
Depois de fechar a revista, precisei
de um tempo para entender – acreditar, aceitar ou coisa que o valha – o que
tinha acabado de ler. Passados mais ou menos vinte minutos, a primeira coisa
que me veio à cabeça não teve exatamente a ver com o conteúdo da matéria e foi:
“bem, se restava alguma dúvida de que essa era uma revista reacionária e
simpática aos ideais de extrema-direita, agora não resta mais”.
Depois desse primeiro pensamento,
fui acometido por uma espécie de tristeza... Não, acho que estava mais para um
pesar. E foi analisando esse pesar que consegui encontrar algumas palavras para
dizer acerca desse assunto.
Estou profundamente consternado. O
que a Veja fez foi um ato de extrema crueldade. Além de cruel, também podemos
dizer que foi um ato leviano e irresponsável. Cruel, porque trabalha com fatos,
com coisas que não podem ser negadas, mas parte destes fatos para uma
generalização assassina (desculpem, não há palavra melhor) e extremamente
prejudicial. Leviana, porque leva o leitor a pensar que o crime e a violência são
características naturais dos indivíduos de etnia romani. Irresponsável, porque
ignora que o crime termina sendo a via de sobrevivência das populações
extremamente marginalizadas, e, ao ignorar este fato, insufla o preconceito naqueles
que desconhecem essa realidade.
Ora, quem me conhece, apenas um
pouco, sabe que não sou nenhum partidário ingênuo de vitimizações. Muito pelo
contrário. Acredito piamente na responsabilidade individual. Mas nós estamos
falando de estigmas sociais atrozes e de generalizações perversas. É claro que
a maior parte dos crimes de furto e roubo são praticados por ciganos, na
Europa. Da mesma forma, a maior parte dos crimes de furto e roubo são
praticados por negros no Brasil.
Os negros... Sempre que preciso
traçar um paralelo cultural com os ciganos, escolho os judeus. Mas para traçar
um paralelo social, os negros são o melhor exemplo. Não resta dúvidas: os
ciganos são para a Europa o que os negros foram – e em certa medida continuam
sendo – para o Brasil. Ainda que por processos históricos distintos, os dois
grupos estão regidos pelas mesmas reações de causa e efeito: ambos foram
submetidos a um processo de marginalização extrema, que por sua vez resultou numa
população profundamente estigmatizada. Como acontece com os negros no Brasil, a
maior parte dos indivíduos romanis da Europa são pessoas que vivem suas vidas
de maneira honesta, ainda que, para isso, enfrentando muitas dificuldades. Mas
todos acabam levando a mesma pecha de delinqüentes por natureza, bandalheiros,
assassinos e ladrões.
A reportagem da Veja deixa
transparecer uma abordagem xenofóbica e preconceituosa, que, para além de
apenas ignorar o impasse social que, sem dúvida, é um fator determinante nas
altas estatísticas de ciganos envolvidos em atividades criminosas, deixa implícita
a ideia de que a condição criminosa é determinada pela origem étnica. Ou seja,
são criminosos porque são ciganos. E ninguém os quer como vizinhos, ponto final.
Isso, novamente, não é muito
diferente do que acontece com os negros no Brasil. Lembro de já ter ouvido máximas
assustadoramente racistas, e de pessoas que se julgavam “boas cristãs”. Coisas
como: “preto quando não caga na entrada, caga na saída”. Ou então coisa pior,
como: “preto já nasce musculoso que é pra conseguir correr mais rápido da polícia”.
E coisas muito semelhantes a essas estão sendo ditas na Europa sobre os ciganos...
E são coisas desse tipo que a Veja, com o desserviço de sua reportagem, está
disseminando na mente dos leitores brasileiros.
O título da reportagem reproduz uma
máxima dirigida aos defensores dos ciganos e já não deixa dúvidas: “você iria
querê-los como seus vizinhos?”. Ora, esse é justamente o tipo de abordagem que,
além de não ajudar, acaba piorando a situação. Porque de um lado estimula o
preconceito. De outro fomenta a revolta. Os ciganos, outra vez como os negros,
vão sentindo-se cada vez mais excluídos, cada vez mais a parte da sociedade. E
justamente por causa disso, vão se sentindo cada vez mais revoltados, cada vez
menos dispostos a integrar-se e cada vez mais dispostos a boicotar o mundo gadjé.
Eu penso que é uma benção termos,
hoje, indivíduos de origem romani que possuem formação para interagir com o
mundo não-cigano. Porque é através de nós que o conhecimento desse tipo de
coisa chega aos nossos, não passa ao largo. E, de onde vejo, é nossa obrigação
usarmos do mecanismo democrático para dar voz ao nosso povo, mostrar que os
ciganos não são, como muitos pensam, nômades ignorantes sem qualquer acesso à
informação. Façamos, pois, valer os princípios constitucionais que execram o
preconceito e estabelecem o racismo como crime imprescritível e inafiançável
(CF/1988. Art. 5◦, XLII).
Ao
menos por hora, já seria consideravelmente significativo, e bastante incômodo
para a Veja, se todos os romá com acesso à internet, bem como todos os
simpatizantes do povo Rom, pudessem assinar a seguinte petição:
E que
Deula nos proteja da perversidade dos ignorantes... Porque do jeito que a coisa
vai, só com muita proteção divina mesmo!
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