sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Veja X "Questão Cigana": Ignorância ou Perversidade?



Depois de quase uma semana, finalmente li a famigerada matéria da Veja sobre a “questão cigana” na Europa.

Depois de fechar a revista, precisei de um tempo para entender – acreditar, aceitar ou coisa que o valha – o que tinha acabado de ler. Passados mais ou menos vinte minutos, a primeira coisa que me veio à cabeça não teve exatamente a ver com o conteúdo da matéria e foi: “bem, se restava alguma dúvida de que essa era uma revista reacionária e simpática aos ideais de extrema-direita, agora não resta mais”.

Depois desse primeiro pensamento, fui acometido por uma espécie de tristeza... Não, acho que estava mais para um pesar. E foi analisando esse pesar que consegui encontrar algumas palavras para dizer acerca desse assunto.

Estou profundamente consternado. O que a Veja fez foi um ato de extrema crueldade. Além de cruel, também podemos dizer que foi um ato leviano e irresponsável. Cruel, porque trabalha com fatos, com coisas que não podem ser negadas, mas parte destes fatos para uma generalização assassina (desculpem, não há palavra melhor) e extremamente prejudicial. Leviana, porque leva o leitor a pensar que o crime e a violência são características naturais dos indivíduos de etnia romani. Irresponsável, porque ignora que o crime termina sendo a via de sobrevivência das populações extremamente marginalizadas, e, ao ignorar este fato, insufla o preconceito naqueles que desconhecem essa realidade.

Ora, quem me conhece, apenas um pouco, sabe que não sou nenhum partidário ingênuo de vitimizações. Muito pelo contrário. Acredito piamente na responsabilidade individual. Mas nós estamos falando de estigmas sociais atrozes e de generalizações perversas. É claro que a maior parte dos crimes de furto e roubo são praticados por ciganos, na Europa. Da mesma forma, a maior parte dos crimes de furto e roubo são praticados por negros no Brasil.

Os negros... Sempre que preciso traçar um paralelo cultural com os ciganos, escolho os judeus. Mas para traçar um paralelo social, os negros são o melhor exemplo. Não resta dúvidas: os ciganos são para a Europa o que os negros foram – e em certa medida continuam sendo – para o Brasil. Ainda que por processos históricos distintos, os dois grupos estão regidos pelas mesmas reações de causa e efeito: ambos foram submetidos a um processo de marginalização extrema, que por sua vez resultou numa população profundamente estigmatizada. Como acontece com os negros no Brasil, a maior parte dos indivíduos romanis da Europa são pessoas que vivem suas vidas de maneira honesta, ainda que, para isso, enfrentando muitas dificuldades. Mas todos acabam levando a mesma pecha de delinqüentes por natureza, bandalheiros, assassinos e ladrões.

A reportagem da Veja deixa transparecer uma abordagem xenofóbica e preconceituosa, que, para além de apenas ignorar o impasse social que, sem dúvida, é um fator determinante nas altas estatísticas de ciganos envolvidos em atividades criminosas, deixa implícita a ideia de que a condição criminosa é determinada pela origem étnica. Ou seja, são criminosos porque são ciganos. E ninguém os quer como vizinhos, ponto final.

Isso, novamente, não é muito diferente do que acontece com os negros no Brasil. Lembro de já ter ouvido máximas assustadoramente racistas, e de pessoas que se julgavam “boas cristãs”. Coisas como: “preto quando não caga na entrada, caga na saída”. Ou então coisa pior, como: “preto já nasce musculoso que é pra conseguir correr mais rápido da polícia”. E coisas muito semelhantes a essas estão sendo ditas na Europa sobre os ciganos... E são coisas desse tipo que a Veja, com o desserviço de sua reportagem, está disseminando na mente dos leitores brasileiros.

O título da reportagem reproduz uma máxima dirigida aos defensores dos ciganos e já não deixa dúvidas: “você iria querê-los como seus vizinhos?”. Ora, esse é justamente o tipo de abordagem que, além de não ajudar, acaba piorando a situação. Porque de um lado estimula o preconceito. De outro fomenta a revolta. Os ciganos, outra vez como os negros, vão sentindo-se cada vez mais excluídos, cada vez mais a parte da sociedade. E justamente por causa disso, vão se sentindo cada vez mais revoltados, cada vez menos dispostos a integrar-se e cada vez mais dispostos a boicotar o mundo gadjé.

Eu penso que é uma benção termos, hoje, indivíduos de origem romani que possuem formação para interagir com o mundo não-cigano. Porque é através de nós que o conhecimento desse tipo de coisa chega aos nossos, não passa ao largo. E, de onde vejo, é nossa obrigação usarmos do mecanismo democrático para dar voz ao nosso povo, mostrar que os ciganos não são, como muitos pensam, nômades ignorantes sem qualquer acesso à informação. Façamos, pois, valer os princípios constitucionais que execram o preconceito e estabelecem o racismo como crime imprescritível e inafiançável (CF/1988. Art. 5◦, XLII).

Ao menos por hora, já seria consideravelmente significativo, e bastante incômodo para a Veja, se todos os romá com acesso à internet, bem como todos os simpatizantes do povo Rom, pudessem assinar a seguinte petição:



E que Deula nos proteja da perversidade dos ignorantes... Porque do jeito que a coisa vai, só com muita proteção divina mesmo!

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