quarta-feira, 2 de setembro de 2015

A ESPADA DA HONRA



“Honra. Que palavra maldita.”, ele dizia para si mesmo na escuridão solitária de sua tenda. A wakizashi de Heika nas mãos.

Haviam parado para pernoitar em algum ponto da estrada que os levaria de volta a Toshi Ranbo. Dentro em breve, atravessariam os muros da cidade, sem saber que armadilhas a mente diabólica de Chuto haveria preparado. Enquanto isso, envolvido pela tranquilidade silenciosa da noite, Sakurajima repensava os trágicos acontecimentos de Chikuzen.

“Não foi isso que Akodo-kami pensou quando escreveu sobre honra”, ele pensava. “Ele criou a honra para dar à raça dos homens algum senso de nobreza. O grande Akodo viu a natureza frágil dos homens, em sua guerra incessante contra a própria corrupção, e temeu que a herança divina dos kamis se perdesse na escuridão de nossas almas. Ao contrários dos deuses, nós apodrecemos e morremos. Nossa natureza tende a corrupção.

“O Bushido, no fim das contas, é apenas isto: uma tentativa de fazer a alma cruzar o abismo de sua existência sem se perder. Mas será que Akodo-kami contava com a terrível possibilidade de seu código ser devorado pela corrupção que tentava evitar?

“Foi isso o que aconteceu. É nisto que nos transformamos. Hipócritas, com um sentido distorcido e conveniente das virtudes que dizemos cultivar.

Quando Hantei assumiu o trono do Império Esmeralda, seus irmãos se uniram para ajudá-lo a cuidar do mundo que, afinal, havia se tornado responsabilidade de todos. Quando partiram de volta para a eternidade, eles deixaram uma ordem estabelecida para ser seguida por seus descendentes. E o que seus descendentes fizeram foi subverter a ordem dos kamis aos próprios desejos, escravizar os inocentes, dispor de vidas como se fossem garrafas de saquê, e agora tentavam sobrepujar-se e destruir-se mutuamente, como se estivessem num duelo que acabará apenas quando não restar mais ninguém.”

Ele respirou fundo. Lembrou-se das palavras de Mukuro na recepção de Lord Retsu. Agora admirava-o ainda mais. Era reconfortante ver mais alguém caminhando por aquelas terras e enxergando o que ele enxergava. Sentia-se um pouco menos solitário.

“Foi esta fome que levou Retsu a tomar Chikuzen. A mesma fome que vem guiando os homens desde que a História começou a ser contada. A fome que o fez assassinar a família de Reika e, assim, selar o próprio destino...

Heika não era de todo culpada. Na verdade, ela não era culpada de nada, senão de egoísmo e estupidez. Um egoísmo e uma estupidez que a levaram a tornar-se traidora do próprio clã e a perder-se na própria corrupção.

“Em um momento como este, ela não podia ter feito o que fez”, ele pensou. “Ela sabia, estava a par das tramas da Garça e dos nossos esforços para contornar o enorme problema diplomático que se tornou Toshi Ranbo. Ela esperou todos aqueles anos, podia muito bem ter esperado até Ujiaki-sama deixar a cidade. Em outras circunstâncias, eu mesmo a teria ajudado a cravar uma faca no peito daquele desgraçado.

“O que Reika fez a tornou indigna de perdão. Custou a vida de dez homens inocentes e uma desonra cujo gosto amargo seremos obrigados a dividir com nossos inimigos. Ela teve o que mereceu.”

Mas, no fundo, e agora de cabeça fria, ele não conseguia deixar de vê-la um pouco como vítima. Uma vítima que se tornou algoz. Uma vítima, como, afinal, eles todos eram. Uma vítima da fome e da corrupção devoradora de almas.

Um vento frio, de repente, abateu-se sobre o acampamento e uma lufada cortou a lona que cobria sua tenda. Um calafrio percorreu-lhe a espinha. Apertou a espada da honra em suas mãos. Sorriu levemente, ainda que sem vontade. Não podia deixar de notar a ironia que fez aquela espada, que representava a honra dos ancestrais de Reika, protegê-lo dos golpes furiosos – e desesperados – dela. Haveria uma mensagem por trás disso?

“Ela era alguém com boas e certas razões”, por mais que ele fosse um dos poucos capazes de ver – e de reconhecer – isto. “Mas de que valem boas e certas razões em más e erradas escolhas?”

Apertou outra vez a lâmina da espada, agora com mais força. Uma dor aguda, sufocada pela dor mais aguda de seus próprios sentimentos. Um fio vermelho escuro, quase negro na escuridão da tenda, escorreu pela lâmina.

“Retsu teve o que merecia... Agora, Takashi, será a sua vez. Você pagará por não ter sabido ser melhor que seu pai.”


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