“Honra.
Que palavra maldita.”, ele dizia para si mesmo na escuridão
solitária de sua tenda. A wakizashi de Heika nas mãos.
Haviam
parado para pernoitar em algum ponto da estrada que os levaria de
volta a Toshi Ranbo. Dentro em breve, atravessariam os muros da
cidade, sem saber que armadilhas a mente diabólica de Chuto haveria
preparado. Enquanto isso, envolvido pela tranquilidade silenciosa da
noite, Sakurajima repensava os trágicos acontecimentos de Chikuzen.
“Não
foi isso que Akodo-kami pensou quando escreveu sobre honra”, ele
pensava. “Ele criou a honra para dar à raça dos homens algum
senso de nobreza. O grande Akodo viu a natureza frágil dos homens,
em sua guerra incessante contra a própria corrupção, e temeu que a
herança divina dos kamis se perdesse na escuridão de nossas almas.
Ao contrários dos deuses, nós apodrecemos e morremos. Nossa
natureza tende a corrupção.
“O
Bushido, no fim das contas, é apenas isto: uma tentativa de fazer a
alma cruzar o abismo de sua existência sem se perder. Mas será que
Akodo-kami contava com a terrível possibilidade de seu código ser
devorado pela corrupção que tentava evitar?
“Foi
isso o que aconteceu. É nisto que nos transformamos. Hipócritas,
com um sentido distorcido e conveniente das virtudes que dizemos
cultivar.
Quando
Hantei assumiu o trono do Império Esmeralda, seus irmãos se uniram
para ajudá-lo a cuidar do mundo que, afinal, havia se tornado
responsabilidade de todos. Quando partiram de volta para a
eternidade, eles deixaram uma ordem estabelecida para ser seguida por
seus descendentes. E o que seus descendentes fizeram foi subverter a
ordem dos kamis aos próprios desejos, escravizar os inocentes,
dispor de vidas como se fossem garrafas de saquê, e agora tentavam
sobrepujar-se e destruir-se mutuamente, como se estivessem num duelo
que acabará apenas quando não restar mais ninguém.”
Ele
respirou fundo. Lembrou-se das palavras de Mukuro na recepção de
Lord Retsu. Agora admirava-o ainda mais. Era reconfortante ver mais
alguém caminhando por aquelas terras e enxergando o que ele
enxergava. Sentia-se um pouco menos solitário.
“Foi
esta fome que levou Retsu a tomar Chikuzen. A mesma fome que vem
guiando os homens desde que a História começou a ser contada. A
fome que o fez assassinar a família de Reika e, assim, selar o
próprio destino...
Heika
não era de todo culpada. Na verdade, ela não era culpada de nada,
senão de egoísmo e estupidez. Um egoísmo e uma estupidez que a
levaram a tornar-se traidora do próprio clã e a perder-se na
própria corrupção.
“Em
um momento como este, ela não podia ter feito o que fez”, ele
pensou. “Ela sabia, estava a par das tramas da Garça e dos nossos
esforços para contornar o enorme problema diplomático que se tornou
Toshi Ranbo. Ela esperou todos aqueles anos, podia muito bem ter
esperado até Ujiaki-sama deixar a cidade. Em outras circunstâncias,
eu mesmo a teria ajudado a cravar uma faca no peito daquele
desgraçado.
“O
que Reika fez a tornou indigna de perdão. Custou a vida de dez
homens inocentes e uma desonra cujo gosto amargo seremos obrigados a
dividir com nossos inimigos. Ela teve o que mereceu.”
Mas,
no fundo, e agora de cabeça fria, ele não conseguia deixar de vê-la
um pouco como vítima. Uma vítima que se tornou algoz. Uma vítima,
como, afinal, eles todos eram. Uma vítima da fome e da corrupção
devoradora de almas.
Um
vento frio, de repente, abateu-se sobre o acampamento e uma lufada
cortou a lona que cobria sua tenda. Um calafrio percorreu-lhe a
espinha. Apertou a espada da honra em suas mãos. Sorriu levemente,
ainda que sem vontade. Não podia deixar de notar a ironia que fez
aquela espada, que representava a honra dos ancestrais de Reika,
protegê-lo dos golpes furiosos – e desesperados – dela. Haveria
uma mensagem por trás disso?
“Ela
era alguém com boas e certas razões”, por mais que ele fosse um
dos poucos capazes de ver – e de reconhecer – isto. “Mas de
que valem boas e certas razões em más e erradas escolhas?”
Apertou
outra vez a lâmina da espada, agora com mais força. Uma dor aguda,
sufocada pela dor mais aguda de seus próprios sentimentos. Um fio
vermelho escuro, quase negro na escuridão da tenda, escorreu pela
lâmina.
“Retsu
teve o que merecia... Agora, Takashi, será a sua vez. Você pagará
por não ter sabido ser melhor que seu pai.”
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