segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A TRISTE HISTÓRIA DE HENRICO DEL FRARI III

CAPÍTULO TERCEIRO




O tratamento da tuberculose consistia em aumentar a imunidade do enfermo – o que se conseguia com repouso, clima frio, seco e uma alimentação apropriada. Apenas isso. Não havia um tratamento combativo. Esperava-se que o próprio organismo se curasse a si mesmo.
Algumas vezes, efetivamente, era o que ocorria. Algumas vezes. Quase todos acabavam morrendo depois de certo tempo, que se traduzia em anos ou apenas poucos meses. Tudo dependia do doente.
Agora vinha Marco, que dizia ser capaz de uma proeza impensável – curar um tuberculoso. E não era médico ou coisa parecida. Era mágico. Um mágico leitor de mentes.
Como ele faria, Enrico não sabia dizer, mas também não ousaria questionar de novo. Não queria irritá-lo. Afinal, se Marco tinha mesmo o poder que afirmava ter, talvez o pesadelo em que vivia finalmente terminasse. Essa possibilidade o enchia de esperança.
Foi assim que o levara pelas ruas e vielas da cidade, num atalho rumo ao sul do Centro Histórico. Da Piazza Vittoria até a casa onde morava, na via Cremona, era uma distância razoável, mas tamanha era a ansiedade de Enrico que fizeram o trajeto em pouco mais de dez minutos.
É aqui, signore Marco – disse o menino.
Era uma casa de paredes amarelas, descascadas pelo tempo. Percebia-se que outrora havia sido um lar, mas agora espelhava um mausoléu.
No jardim do frontispício, eram nítidas as marcas do abandono. Já quase não se podia distinguir os inços das folhagens cultivadas. Uma cerca rústica de arame separava o passeio do espaço da propriedade. Nela, um portãozinho de madeira, velho e empenado, dava acesso à área interna, abarrotada de insetos e sujeira.
Enrico foi na frente, abrindo caminho para Marco. Este, de sua vez, seguia o menino, estupefato com o avançado grau de decadência do lugar.
O mobiliário e o chão estavam cheios de poeira. Por toda parte, objetos espalhados e quebrados. Nos cantos das paredes, muitas teias de aranha, além de percevejos e baratas. Não soubesse que alguém vivia ali, pensaria estar abandonado.
Nada, porém, cheirava a azedo ou estragado. Embora houvesse vários cheiros que se misturavam – mofo e umidade, entre outros –, o de comida não estava entre eles. Marco não esteve na cozinha, mas, considerando o estado em que estava todo o resto, a conclusão era uma só: não se tinha mesmo o que comer ali.
Venha, signore, é por aqui – dizia Enrico, afoito, ao passo que subia apressado a escada de madeira que levava ao outro andar. Aquelas tábuas rangiam tanto que, por um momento, Marco achou que fossem desabar.
Implicância”, ele pensou. Mas não tardaria a descobrir que estava certo. Mal pisara na madeira da escada e já sabia a razão do tal barulho – estava infestada de cupins; e, pelo jeito, há bastante tempo.
Marco se agarrara ao corrimão, subindo com cuidado. De uma hora para outra, tudo aquilo podia vir abaixo.
Lá em cima, Enrico esperava ansioso às portas de um aposento entreaberto. De dentro desse quarto, uma luminosidade tênue escapava, revelando a silhueta moribunda de uma mulher. Um corpo lívido, descarnado, com olheiras fundas e arroxeadas, estirado sobre o leito.
Marco olhou para Enrico com clemência. Depois abriu o que faltava da porta e, muito devagar, caminhou até a cama.
Ela estava inconsciente.
Ele tirou a luva de uma das mãos e tocou-lhe a testa úmida. Ardia em febre. Tudo que Enrico havia dito era verdade. A mulher não duraria muito tempo mais.
Terrível sina! Pobre criança!”, Marco pensou.
A menos que fizesse o que tinha ido ali fazer, uma tragédia se avizinhava. Francesca estava mesmo condenada e Enrico, certamente, era o próximo. Afinal, depois de tanto tempo, a possibilidade dele não estar infectado era quase nula.
Marco, de repente, viu em si mesmo a única esperança. Voltou-se para a porta do aposento e, delicadamente, pôs as mãos nos ombros do menino.
É irônico que o remédio para um mal algumas vezes venha de outro, não acha?
Enrico respondeu com um olhar confuso. Não havia entendido nada.
Se eu fizer isto – Marco prosseguiu –, você também terá de fazer uma coisa por mim.
O quê? – Enrico perguntou.
No tempo certo – disse Marco. – mas você me dá a sua palavra?
Faço qualquer coisa!
Marco abriu um sorriso ― Foi o que pensei.
Ele tornou a entrar no quarto. Caminhou em direção ao leito, desta vez parando junto à cabeceira. Abriu o cinto e tirou o casaco, deixando-o de lado. Então, tirou a luva que faltava e dobrou a manga da camisa. Com a unha do indicador executou um gesto leve sobre o pulso. Imediatamente um ferimento se abriu, jorrando grande quantidade de um sangue espesso e escuro, quase viscoso.
Enrico, encostado no umbral da porta, assistia a tudo. Ao ver sangue que escorria do pulso de Marco, apavorou-se, levando as duas mãos à boca.
Marco parecia não se importar com a reação do jovem. Da maneira como agia, era como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.
Ele pousou o pulso ensanguentado sobre a boca de Francesca, tomando antes o cuidado de deixar que algumas gotas generosas lhe caíssem sobre os lábios.
Ela, numa forma de impulso instintivo, começara a sorver o que lhe era oferecido. De início, vagarosamente, mas a volúpia logo começava a mostrar suas formas. Em pouco tempo, ela já pressionava o pulso dele em sua boca e bebia aquele sangue amaldiçoado como se fosse o próprio néctar da vida.
Pare! – Enrico interveio. – O que você está fazendo?!
Acalme-se, bambino – disse Marco, quase sussurrando. – O corpo moribundo quase sempre reconhece o remédio.
Não fosse aquela uma situação tão pavorosa e Enrico poderia jurar que Marco estava gostando. A expressão no rosto dele era alguma coisa parecida com prazer, enquanto sua mãe se alimentava de sangue vivo como um sedento do deserto no oásis. Enrico estava mesmo assustado.
A certa altura, Marco começou a ofegar. Foi quando ele forçou o pulso para longe dos lábios de Francesca e, num gesto brusco, afastou-se da cabeceira da cama.
Parecia cansado depois. Sua pele aveludada tornara-se ainda mais branca, embora, na aparência, estivesse menos radiante. Os pequenos vasos, antes rosados e quase imperceptíveis, evidenciavam-se avermelhados por toda a parte visível de seu corpo. De seus olhos se esvaíra toda a cor.
Enquanto isso, sobre a cama, Francesca contorcia-se, gemendo e soluçando.
Completamente atordoado, Enrico, apenas uma criança, não sabia se aquilo era dor ou outra coisa.
O que há com ela? Você disse que ela ficaria bem!
Ela ficará bem, caríssimo – disse Marco, ainda arquejando. – Você vai ver.



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