CAPÍTULO TERCEIRO
O
tratamento da tuberculose consistia em aumentar a imunidade do
enfermo – o que se conseguia com repouso, clima frio, seco e uma
alimentação apropriada. Apenas isso. Não havia um tratamento
combativo. Esperava-se que o próprio organismo se curasse a si
mesmo.
Algumas
vezes, efetivamente, era o que ocorria. Algumas vezes. Quase todos
acabavam morrendo depois de certo tempo, que se traduzia em anos ou
apenas poucos meses. Tudo dependia do doente.
Agora
vinha Marco, que dizia ser capaz de uma proeza impensável – curar
um tuberculoso. E não era médico ou coisa parecida. Era mágico. Um
mágico leitor de mentes.
Como
ele faria, Enrico não sabia dizer, mas também não ousaria
questionar de novo. Não queria irritá-lo. Afinal, se Marco tinha
mesmo o poder que afirmava ter, talvez o pesadelo em que vivia
finalmente terminasse. Essa possibilidade o enchia de esperança.
Foi
assim que o levara pelas ruas e vielas da cidade, num atalho rumo ao
sul do Centro Histórico. Da Piazza
Vittoria
até a casa onde morava, na via
Cremona,
era uma distância razoável, mas tamanha era a ansiedade de Enrico
que fizeram o trajeto em pouco mais de dez minutos.
― É
aqui, signore
Marco – disse o
menino.
Era
uma casa de paredes amarelas, descascadas pelo tempo. Percebia-se que
outrora havia sido um lar, mas agora espelhava um mausoléu.
No
jardim do frontispício, eram nítidas as marcas do abandono. Já
quase não se podia
distinguir
os
inços das folhagens cultivadas. Uma cerca rústica de arame separava
o passeio do espaço da propriedade. Nela, um portãozinho de
madeira, velho e empenado, dava acesso à área interna, abarrotada
de insetos e sujeira.
Enrico
foi na frente, abrindo caminho para Marco. Este, de sua vez, seguia o
menino, estupefato com o avançado grau de decadência do lugar.
O
mobiliário e o chão estavam cheios de poeira. Por toda parte,
objetos espalhados e quebrados. Nos cantos das paredes, muitas teias
de aranha, além de percevejos e baratas. Não soubesse que alguém
vivia ali, pensaria estar abandonado.
Nada,
porém, cheirava a azedo ou estragado. Embora houvesse vários
cheiros que se misturavam – mofo e umidade, entre outros –, o de
comida não estava entre eles. Marco não esteve na cozinha, mas,
considerando o estado em que estava todo o resto, a conclusão era
uma só: não se tinha mesmo o que comer ali.
― Venha,
signore, é por aqui – dizia Enrico, afoito, ao passo que subia
apressado a escada de madeira que levava ao outro andar. Aquelas
tábuas rangiam tanto que, por um momento, Marco achou que fossem
desabar.
“Implicância”,
ele pensou. Mas não tardaria a descobrir que estava certo. Mal
pisara na madeira da escada e já sabia a razão do tal barulho –
estava infestada de cupins; e, pelo jeito, há bastante
tempo.
Marco
se agarrara ao corrimão, subindo com cuidado. De uma hora para
outra, tudo aquilo podia vir abaixo.
Lá
em cima, Enrico esperava ansioso às portas de um aposento
entreaberto. De dentro desse quarto, uma luminosidade tênue
escapava, revelando a silhueta moribunda de uma mulher. Um corpo
lívido, descarnado, com olheiras fundas e arroxeadas, estirado sobre
o leito.
Marco
olhou para Enrico com clemência. Depois abriu o que faltava da porta
e, muito devagar, caminhou até a cama.
Ela
estava inconsciente.
Ele
tirou a luva de uma das mãos e tocou-lhe a testa úmida. Ardia em
febre. Tudo que Enrico havia dito era verdade. A mulher não duraria
muito tempo mais.
“Terrível
sina! Pobre criança!”, Marco pensou.
A
menos que fizesse o que tinha ido ali fazer, uma tragédia se
avizinhava. Francesca estava mesmo condenada e Enrico, certamente,
era o próximo. Afinal, depois de tanto tempo, a possibilidade dele
não estar infectado era quase nula.
Marco,
de repente, viu em si mesmo a única esperança. Voltou-se para a
porta do aposento e, delicadamente, pôs as mãos nos ombros do
menino.
― É
irônico que o remédio para um mal algumas vezes venha
de outro, não acha?
Enrico
respondeu com um olhar confuso. Não havia entendido nada.
― Se
eu fizer isto
– Marco
prosseguiu –, você também terá de
fazer uma coisa por mim.
― O
quê? – Enrico perguntou.
― No
tempo certo – disse Marco. – mas
você
me
dá a sua palavra?
― Faço
qualquer coisa!
Marco
abriu um sorriso ―
Foi o que pensei.
Ele
tornou a entrar no quarto. Caminhou em direção ao leito, desta vez
parando junto à cabeceira. Abriu o cinto e tirou o casaco,
deixando-o de lado. Então, tirou a luva que faltava e dobrou a manga
da camisa. Com a unha do indicador executou um gesto leve sobre o
pulso. Imediatamente um ferimento se abriu, jorrando grande
quantidade de um sangue espesso e escuro, quase viscoso.
Enrico,
encostado no umbral da porta, assistia a tudo. Ao ver sangue que
escorria do pulso de Marco, apavorou-se, levando as duas mãos à
boca.
Marco
parecia não se importar com a reação do jovem. Da maneira como
agia, era como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.
Ele
pousou o pulso ensanguentado sobre a boca de Francesca, tomando antes
o cuidado de deixar que algumas gotas generosas lhe caíssem sobre os
lábios.
Ela,
numa forma de impulso instintivo, começara a sorver o que lhe era
oferecido. De início, vagarosamente, mas a volúpia logo começava a
mostrar suas formas. Em pouco tempo, ela já pressionava o pulso dele
em sua boca e bebia aquele sangue amaldiçoado como se fosse o
próprio néctar da vida.
― Pare!
– Enrico interveio. – O que você está fazendo?!
― Acalme-se,
bambino
– disse Marco, quase sussurrando. – O corpo moribundo quase
sempre
reconhece o remédio.
Não
fosse aquela uma situação tão pavorosa e Enrico poderia jurar que
Marco estava gostando. A expressão no rosto dele era alguma coisa
parecida com prazer, enquanto sua mãe se alimentava de sangue vivo
como um sedento do deserto no oásis. Enrico estava mesmo assustado.
A
certa altura, Marco começou a ofegar. Foi quando ele forçou o pulso
para longe dos lábios de Francesca e, num gesto brusco, afastou-se
da cabeceira da cama.
Parecia
cansado depois. Sua pele aveludada tornara-se ainda mais branca,
embora, na aparência, estivesse menos radiante. Os pequenos vasos,
antes rosados e quase imperceptíveis, evidenciavam-se avermelhados
por toda a parte visível de seu corpo. De seus olhos se esvaíra
toda a cor.
Enquanto
isso, sobre a cama, Francesca contorcia-se, gemendo e soluçando.
Completamente
atordoado, Enrico, apenas uma criança, não sabia se aquilo era dor
ou outra coisa.
― O
que há com ela? Você disse que ela ficaria bem!
― Ela
ficará bem, caríssimo
– disse Marco, ainda arquejando. – Você vai ver.
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