Aqueles dias na corte da Libélula tinham reservado mais surpresas do que Akodo Sakurajima estava preparado para suportar. A última delas, naquele blasfemo santuário nas montanhas, havia dilacerado seu espírito. Na tentativa de encontrar alguma paz, ele pediu à Satomi-san que o ensinasse um pouco de suas artes com tintas e pincéis.
A Dama de Aço, como ele agora a chamava, não se negou. Talvez ela também precisasse de um tempo longe das espadas. Kakita Satomi levou Sakurajima aos seus aposentos e, pacientemente, mostrou-lhe as aplicações dos pigmentos vívidos sobre a seda. Curiosamente, o primeiro trabalho do leão fora sobre um leque. Ele mesmo se surpreendeu ao ver que tinha feito uma orquídea branca sobre um fundo violeta – como o kimono de Kachiko naquela tarde, na casa de chá, um ano atrás.
Voltando o pincél à delicada tecitura, ele completou as asas vermelhas de uma borboleta, atrás das quais se ocultavam brilhantes olhos de obsidiana. Depois da coisa feita, sorriu. O primeiro sorriso em dias.
Na semana seguinte, haveria uma competição de go organizada pela corte de Tonbo Toryu. Muitos cortesãos tomariam parte, mas a reputação de Lady Escorpião no go a precedia. Sakurajima sabia que dificilmente ela deixaria passar uma oportunidade como essa. A ideia mostrou-se quase pronta diante de si.
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A competição começou no dia marcado. Como era de se esperar, Bayushi Kachiko participava como a favorita. Ela havia derrotado seus primeiros quatro oponentes sem dificuldades e agora seguia rumo ao próximo desafio.
Sakurajima, ao contrário, se esforçara para estar ali. Perdera apenas uma de quatro partidas. Ao ver Lady Kachiko deslizar pelo grande salão da Libélula e parar diante de sua mesa, precisou conter um sorriso de vitória. As Fortunas lhe ajudaram. Seu plano tinha funcionado.
― Akodo-san, que surpresa agradável – ela disse. Um leve, mas irresistível aroma de jasmim permeando o ambiente.
― É um prazer imenso, minha senhora – ele respondeu, levantando-se para cumprimentá-la.
― Espero que não se importe de dividir a mesa comigo nesta partida.
Ela se sentou. Seu olhar, atrás da máscara, o fulminava.
― A presença ensolarada de Dama Escorpião não me causa nenhum incômodo. Pelo contrário.
O juiz da prova anunciou o início da partida. Os competidores precisavam decidir, na sorte, quem ficaria com as peças brancas e faria os primeiros movimentos. Sakurajima ganhou desta vez.
― Parece que eu serei a vilã – disse Kachiko.
― O negro lhe cai muito bem. Melhor do que o luto.
Ela sorriu maliciosamente com o canto dos lábios.
A medida que o jogo avançava, Kachiko parecia realmente encarnar o papel de vilã. Jogava com absoluta maestria, organizando uma frente de ataque para manter as defesas de Sakurajima ocupadas, enquanto uma de suas peças, discretamente, procurava infiltrar-se pelo canto do tabuleiro. Sakurajima percebeu o movimento. Entretanto, em lugar de reforçar as defesas nas laterais, como Kachiko esperava, ele movimentou as peças brancas de maneira um tanto descuidada, praticamente abrindo caminho para o infiltrador.
Esse movimento, inesperado, deixou Kachiko intrigada.
― Talvez eu não esteja jogando muito bem – ela disse – Não sei se Akodo-san percebeu, mas há um infiltrador tentando entrar em seu castelo pelo caminho de que acaba de tirar suas defesas.
Ele inclinou-se cenograficamente sobre o tabuleiro, depois ergueu o rosto para ela e retrucou ― Ops! Parece que a porta está aberta...
Kachiko apertou os olhos sob a máscara.
― Mas, Akodo-san, se eu encontrar suas defesas, assim, as suas portas abertas para mim, não teme o que eu possa fazer? O que encontrarei lá dentro?
― Como saber se continuar do lado de fora?
Era um convite explícito demais, mas ele sabia que ela não resistiria. A Dama Escorpião gostava de vencer.
Foi a segunda e última derrota para Sakurajima. Ele levantou-se e curvou-se diante dela.
― Sua habilidade é ainda maior que a fama, minha senhora. Foi uma vitória muito merecida.
― Curiosamente, Akodo-san... Mais fácil do que eu esperava – ela disse, abrindo o seu leque.
― Minha habilidade apenas não é pareo para a sua. A propósito, muito bonito o seu leque.
― Ah, obrigada. Eu tenho a sorte de ter artesãos competentes.
― Então, por favor, queira aceitar este humilde espólio de guerra – ele disse, tirando o leque que havia pintado de dentro do obi e oferecendo para ela.
Os olhos de Dama Escorpião arregalaram-se. Ela contraiu os lábios de surpresa e, provavelmente sem perceber, levou as mãos ao peito.
― Que inesperado, Akodo-san!... É muita gentileza sua, mas a beleza de tal presente faz-me sentir indigna de recebê-lo.
― Eu pedi à Kakita-san que me ensinasse um pouco de suas aptidões artísticas. Este leque, que talvez não esteja a altura de seus hábeis artesãos, foi pintado com minhas próprias mãos. Por favor, aceite.
― Com suas mãos? – ela perguntou, ainda mais surpresa ― Seu gesto deixa-me profundamente lisonjeada e reveste o presente de um significado ainda maior, Akodo-san. Jamais farei jus ao porte do fruto de tão grande dedicação.
― Seria uma honra incalculável para mim se Lady Kachiko tivesse consigo algo deste humilde samurai – ele curvou-se novamente, as mãos com o leque em oferta ― Eu lhe imploro que aceite.
A terceira oferta, como reza a boa etiqueta, não poderia mais ser recusada. Ela se levantou e tomou o presente das mãos de Sakurajima muito delicadamente, quase lhe dando a sensação do toque de sua pele. Os poucos pelos no braço dele arrepiaram-se e ele podia ter certeza de que o perfume dela havia ficado em suas mãos.
― Uma escolha interessante de motivos – ela disse. ― Faz lembrar um de meus kimonos preferidos. Um traje especial para ocasiões especiais.
Ah, ele havia acertado! Uma mulher como aquela escolhe cuidadosamente a roupa que deseja usar para impressionar um homem. E nada poderia impressioná-la mais do que a certeza de, um ano depois, ver que ele se lembrava.
― Pobre homem pequeno – disse Sakurajima, olhando fixamente para ela –, obrigado a contentar-se com as estrelas, no céu da noite, quando seu coração anseia pelo brilho do sol.
― Cuidado, Akodo-san. O sol foi feito para brilhar à distância. É seguro para o homem pequeno admirá-lo da Terra. Mas aproximar-se demais significaria, certamente, a sua ruína.
― Ora, mas por que a preocupação? O homem pequeno sabe que não tem o que temer. Afinal, o sol sempre brilhará no céu, em sua distância inalcansável... Ou será que não?
Desta vez não houve resposta. Os olhos dela poderiam incendiá-lo.
Sakurajima virou-se para deixar o salão. Antes de ir, todavia, voltou-se outra vez para ela.
― Bayushi-sama poderia, por gentileza, responder apenas uma pergunta minha?
― Depois da gentileza que Akodo-san demonstrou, é o mínimo que posso fazer.
― Ainda me acha parecido com Imazu-sama?
Ele se referia à uma provocação de Kachiko, logo no início daquela corte de inverno, quando a Dama Escorpião indagou-lhe se um dia veria menos do pai e mais de si próprio em sua personalidade.
― Não – ela disse ― Não mais. Não ele.
Sakurajima sorriu, satisfeito. Tinha conseguido o que queria. Mesmo tendo sido vencido, havia ganhado. Bayushi Kachiko, quem diria, caíra na armadilha que ele preparou. Assim como ele havia caído na sua, quando ela simulou um afogamento na casa de banho daquelas paragens. De quem seria o próximo movimento?
Ele deixou o salão, saboreando sua pequena vitória. Absolutamente ignorante da verdadeira comparação que agora, mais do que nunca, obscurecia os pensamentos de Kachiko.
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