quinta-feira, 27 de março de 2014

ENTREVISTA COM O CIGANO



O querido João Bosco Araújo, lá de Sousa, que já é um ativista da causa cigana há muitos anos, está fazendo seu TCC da graduação em Serviço Social sobre os ciganos e as políticas públicas no Brasil. Com o objetivo de colher dados para o projeto e aprender um pouco mais sobre a maneira como pensam romá de diferentes procedências e cantos do Brasil, ele resolveu entrevistar alguns de nós. Este que vos escreve, como não poderia deixar de ser, foi um dos ilustres escolhidos. (risos) 

Brincadeiras a parte, a iniciativa do Bosquinho está de parabéns! A entrevista ficou tão legal que resolvi - com a autorização dele, é claro - postar aqui no blog. O resultado vocês podem conferir aí embaixo! ;-)

Você é cigano?

Sim.

Pertence a qual grupo étnico (Rom, Sinti ou Calon)?

Meu pai é calon, da Paraíba, minha mãe é sinti, descendente de imigrantes italianos. Pela tradição, eu seria calon. Mas como fui criado na família de minha mãe e tive pouco contato com a família de meu pai, me considero sinti.

A qual subgrupo étnico pertence (kalderash, lovari, matchuayia, carrapicheiro, etc.)?

Brasiliako, descendente de italiaias.

Ainda pratica o nomadismo ou o semi-nomadismo?

Não.

Sua família ou amigos ainda praticam o nomadismo ou o semi-nomadismo?

Não.

Conhece ou tem contatos com grupos nômades ou semi-nômades?

Conheço alguns grupos nômades e algumas famílias que praticam o semi-nomadismo, mas não tenho muito contato com eles.

Possui documentos civis (certidão de nascimento, identidade, CPF, título de eleitor)? Quais?

Sim. Tenho todos os documentos. Certidão de nascimento, carteira de identidade, CPF, título de eleitor...

Costuma votar nas eleições periódicas?

Sim, em todas elas.

Prestou alistamento militar?

Sim, também tenho o certificado de reservista.

Você se considera um cidadão brasileiro?

Com certeza.

Frequentou escola regular? Se sim, cursou até que série?

Sim, frequentei. Cursei todo o ensino fundamental e médio. Atualmente estou cursando História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Acha a escola importante para os ciganos?

Com certeza. Sem educação o nosso povo jamais conseguirá conquistar o seu lugar de direito no mundo.

Já precisou ou fez uso de hospitais ou médicos da saúde pública? Se sim, como foi o atendimento?

Sim, algumas vezes. Como tenho todos os documentos civis, o atendimento foi normal, apenas ruim como a saúde pública no Brasil é.

Já sofreu preconceito ou discriminação por ser cigano?

Minha família, há muito tempo, optou por viver na condição de cripto-ciganos, então não temos o hábito de falar de nossas origens, o que sem dúvida evita muito preconceito. Mesmo assim, já sofri preconceito por parte de pessoas que, desinformadas, acham que ser cigano é pertencer a alguma religião. 

Para você, o que é ser cigano, como se constrói essa identidade?

Ser cigano é ter uma descendência que remete a um povo de origem oriental que por alguma razão misteriosa ganhou o mundo, tornando-se nômade, em algum momento do século XI. Mais que isso, ser cigano é ser o herdeiro das tradições desse povo, tradições essas pelas quais devemos zelar e que somos responsáveis por perpetuar, para que nosso povo e nossa linhagem não desapareçam da face da terra.

Como você vê a situação dos ciganos hoje no Brasil?

Em relação à Europa, onde as perseguições vêm crescido de maneira assustadora, nossa situação aqui é muito boa. Também é muito mais fácil para um cigano se integrar à sociedade não-cigana morando num país miscigenado como o Brasil. No entanto, a invisibilidade do povo cigano, de maneira geral, ainda é um fato. Muitos não sabem que somos um povo, com cultura e história própria, nos confundem com religiões e uma grande parte de nós ainda vive às margens da sociedade, no analfabetismo, em situação precária e privada dos direitos civis e sociais mais básicos. Ainda há muito pelo que lutar.

Como você acha que deveriam ser as políticas públicas voltadas para o povo cigano hoje no Brasil?

A primeira coisa é dar o reconhecimento aos ciganos de minoria étnica. Somos uma minoria étnica presente nessas terras desde o período colonial e tivemos participação ativa na construção da cultura e da identidade brasileira, como muitos estudos recentes comprovam. Merecemos ser reconhecidos e valorizados enquanto ciganos dentro da sociedade. Uma vez que se reconheça isso, o próximo passo seria tratar das necessidades especiais dos ciganos em função de seu modo de vida. Ainda há muitos, como eu disse anteriormente, vivendo à margem da sociedade, privados de direitos básicos, sem acesso á saúde e à educação, como verdadeiros párias em pleno século XXI.

Do seu ponto de vista, quais as maiores necessidades dos ciganos hoje, no Brasil?

Eu acho que a maior necessidade dos ciganos, hoje, no Brasil é reconhecimento. Precisamos ser reconhecidos como pessoas, membros de uma comunidade tradicional, precisamos que vejam que estamos aqui, porque a maior parte de nós simplesmente não é vista, é vista apenas em períodos eleitorais ou é pensada como entidade de algum culto religioso. Somos pessoas, temos necessidades, o Brasil precisa descobrir essa realidade.

Em segundo lugar, vem a questão da educação, que para mim é muito séria. Tenho a impressão de que a maior parte dos ciganos brasileiros ainda não percebeu a importância que a educação tem na construção do nosso futuro. É preciso pensar na questão da educação, para modificar verdadeiramente nossa realidade no longo prazo, e vejo isso como um desafio tanto para as políticas públicas quanto para os próprios ciganos.

Como é, do seu ponto de vista, a relação dos ciganos com os não-ciganos?

Bem, isso depende. Os ciganos não são uma comunidade única e homogênea. Há diversas maneiras de se construir essa relação inter-sociedades, mas, de maneira geral, os ciganos têm relações comerciais com os não-ciganos. O que quero dizer com isso? Sabe a diplomacia que há entre os países, aquela coisa de ministro do comércio exterior? Então, é quase a mesma coisa. A maior parte das famílias estabelece laços comerciais/profissionais com os não-ciganos para garantir o sustento. No entanto, construir relações de amizade muito profundas, embora possa acontecer, não é algo comum ou mesmo procurado.

Com as novas gerações, todavia, essa realidade vem se modificando, o que é visto com preocupação e reservas pelos mais velhos.  

Você acha que uma integração maior entre as duas sociedades, cigana e não-cigana, poderia ser proveitosa para os ciganos?

Com certeza. O isolamento, historicamente, foi uma estratégia de sobrevivência, num mundo hostil, em que você estava seguro se seus inimigos soubessem o mínimo possível a seu respeito – e quase todos podiam ser vistos como inimigos em potencial. Hoje a realidade se inverteu. Há muito tempo eu percebi que a nova ordem do mundo é informação. Quem não é visto não é lembrado e da forma como as coisas estão instituídas, ninguém mais consegue sobreviver isolado, ninguém está seguro sozinho. Então, nessa nova delineação de necessidades, nós precisamos fazer as pessoas se interessarem por nós, precisamos fazê-las saber o máximo possível ao nosso respeito, preservando, é claro, a nossa individualidade. O comportamento dos judeus após a Segunda Guerra Mundial me ensinou isso.

É sabido que os ciganos, em geral, são uma das comunidades mais tradicionais e fechadas que existem. Você acha que existe a necessidade de mudar internamente alguns aspectos culturais, no sentido de tornar mais fácil a integração com o mundo não-cigano?

Sim, acho que esse é o ponto. É preciso, mais do que nunca, fazer um trabalho com os próprios ciganos, dentro das comunidades, porque isso que eu disse aí em cima, infelizmente, está muito longe de ser um pensamento comum ou aceito por todos. A maior parte ainda tem um desprezo, uma espécie de ressentimento pelas coisas do mundo não-cigano. A educação não-cigana, quer dizer, as escolas não são valorizadas. Os próprios ciganos, muitas vezes, se colocam à margem, como párias. É preciso mudar essa situação.

Também existe a questão da identidade. A identidade, para um povo nômade, espalhado pelo mundo todo, é uma questão de difícil consenso, e para muitos líderes ciganos, a mudança, mesmo que de apenas aspectos culturais, implica na dissolução, no esvaziamento da identidade cigana. Repensar essa questão é um grande desafio.

Historicamente, sabemos que muito do que hoje se considera “cultura cigana” pelos próprios ciganos é, na verdade, influência ou empréstimo cultural não-cigano, tomado de suas viagens pelo mundo. A cultura não-cigana, que, em geral, não precisa se preocupar com a definição de uma identidade étnica, muda muito rapidamente, ao passo que os ciganos, até por conta do valor que tem a oralidade para nós, tendem a se apegar muito intensamente aos valores antigos.

Assim, ainda é comum a exclusão de homossexuais, a mulher relegada a um papel social de submissão, homens que estudam apenas até aprenderem as operações matemáticas básicas por conta de suas necessidades comerciais, etc.

Pessoalmente, acho que a cultura cigana é muito mais do que isso e que nossa identidade não se define dessa forma. Outra vez recorro ao exemplo dos judeus, como um povo também de origem nômade, que soube se integrar à sociedade não-judaica sem, contudo, perder a identidade. Por que não poderíamos, nós, fazer a mesma coisa?

A partir das perspectivas de hoje, como você vê o futuro dos ciganos no Brasil?

Eu não diria o futuro, propriamente, mas vejo a tentativa de construir um futuro como uma luta contra o tempo, quiçá contra o destino. Os ciganos foram, desde sempre, mestres na arte de sobreviver. Passaram por perseguições, escravidão e genocídio. No curso da História, nossos antepassados souberam sobreviver melhor que qualquer outro povo. Mas hoje, não sei, as últimas gerações parecem ter perdido essa capacidade. O mundo mudou, eles perceberam, mas não estão sabendo se adaptar, coisa que sempre fizeram muito bem, e isso é ruim no longo prazo, ou seja, para o futuro.

Nunca fui niilista, pessimista ou coisa que o valha, mas, por tudo o que já disse aí em cima, se mudanças significativas não começarem a acontecer – e quando falo de mudanças não me refiro apenas às políticas públicas do Estado, mas às próprias relações dos ciganos com os não-ciganos e, principalmente, uns com os outros – rezo para que tenhamos um futuro. Pode parecer paradoxal que a sobrevivência de nossa identidade esteja mais ligada à maneira como interagimos e nos integramos com outras identidades do que à tentativa obstinada de manter essa identidade pura, protegida o máximo possível do contato com o outro, com a alteridade. A História e a Antropologia, no entanto, já provaram que é exatamente assim que as coisas são.

Obrigado. 

segunda-feira, 10 de março de 2014

OLIVEIRA, A HISTÓRIA ASSUSTADORA DOS IRMÃOS NECRÓFILOS DE NOVA FRIBURGO

Henrique Oliveira após sua prisão, em 1996.

Na trilha do lançamento de Isolados, novo filme de Tomas Portella (Qualquer Gato Vira-Lata), inspirado na história real de Ibrahim e Henrique de Oliveira, os “irmãos necrófilos”, acho pertinente relembrar a trajetória dessas personagens assustadoras da nossa história recente. Digo isso porque, embora a coisa toda tenha acontecido entre os anos de 1995 e 1996, eu, que tenho excelente memória, não me lembrava do caso. Daí a pergunta: com quantos mais estaria acontecendo a mesma coisa?

Em janeiro de 1995, o vigia João Carlos Maria da Rocha namorava com Elizabeth Ferreira Lima na beira de um riacho, em Nova Friburgo. Foi quando foram surpreendidos pelos irmãos Oliveira, que mataram João Carlos e estupraram Elizabeth. Elizabeth, na verdade, fingiu-se de morta e só por isso conseguiu escapar com vida. Os irmão, que se tornaram conhecidos na imprensa de todo o país como “Irmãos Necrófilos”, costumavam matar as vítimas e depois abusar sexualmente dos cadáveres, algumas vezes esquartejando-as ou desfigurando seus órgãos genitais em seguida. Elizabeth teve muita sorte. Ela se tornou a principal testemunha no caso contra os irmãos.

Estima-se que cerca de 22 pessoas tenham sido mortas em condições semelhantes, no espaço de tempo entre fevereiro de 1991 e novembro de 1995. No entanto, a polícia conseguiu relacionar os irmãos a apenas oito desses crimes, entre as vítimas 6 mulheres, o vigia João Carlos e uma criança.

Isolados não é o primeiro filme que busca inspiração na história macabra de Ibrahim e Henrique. Já em 1996, o diretor Petter Baiestorf, bem conhecido por seus filmes gore, baseou-se nos relatos assustadores sobre os crimes dos irmãos necrófilos para filmar “Eles Comem Sua Carne”. No entanto, Isolados parece trabalhar a trama sob uma perspectiva mais realista e, talvez por isso mesmo, mais visceral e perturbadora. Além disso, ousa lançar no cinema nacional, conhecido por suas comédias, romances regionais e pornochanchadas, uma obra no gênero suspense e horror psicológico, protagonizada (e antagonizada) completamente por atores brasileiros.

Na época, uma grande operação policial foi armada para a perseguição e captura dos irmãos, que, graças à cobertura da imprensa, tinham se tornado as figuras mais procuradas do país. Cerca de 250 policiais, entre agentes locais e membros do BOPE, foram mobilizados pela cidade e pelas florestas da região. Além de encontrar e capturar os irmãos necrófilos, a polícia tinha ainda outra difícil missão – tentar chegar primeiro que o resto da população.


A prefeitura de Nova Friburgo havia anunciado, segundo informações difusas, o pagamento de 5000 R$ para quem encontrasse os irmãos. Isso motivou a ação de um incontável número de caçadores de recompensas. Além disso, também havia a noção de uma “justiça local”, que, segundo alguns, não competia à polícia. “Aqui é com a gente. A polícia não vai se meter. O que eles fizeram é selvageria e selvageria se paga com selvageria.”, disse o agricultor João das Neves, de 49 anos, a um repórter. Pelo que parece, os moradores já haviam até mesmo escolhido a árvore em que pendurariam os cadáveres dos irmãos.

Em dezembro de 1995, um dos irmãos foi visto por pessoas que estavam no sítio do comerciante Hélio da Fonseca, nos arredores da Montanha dos Pinéis, em Riograndina, distrito de Nova Friburgo. Alertados, os homens do BOPE subiram a montanha, enquanto moradores da região, armados de carabinas e facões, fechavam as trilhas de descida da montanha para evitar a fuga. Na operação, Ibrahim acabou morto pela polícia, mas Henrique, ainda não se sabe como, conseguiu fugir.

Numa das declarações dadas à imprensa, o delegado responsável pelo caso, Henrique Pessoa, disse que seria difícil que o fugitivo escapasse da fúria popular por muito tempo. “Não tenho dúvidas de que haverá um justiçamento”, ele afirmou à reportagem da Folha de São Paulo. Não foi preciso nada disso, no entanto. Em 18 de junho de 1996, o próprio Henrique entregou-se ao fórum de Friburgo.

Ele ainda tentou colocar a culpa pelos assassinatos no irmão, que havia sido morto, assumindo apenas o papel de expectador nos crimes, mas foi julgado e, em 1 de setembro de 2000, acabou condenado pelo tribunal do júri, em decisão unânime, a 34 anos de prisão. Apesar disso, há quem diga que ele está novamente em liberdade, e que encontrou um novo parceiro para prosseguir em sua trilha de assassinatos e estupros pela Região Serrana do Rio de Janeiro... Será? Contando com a eficácia e efetividade extrema de nossos sistemas judiciário e prisional, eu não acho impossível.

Isolados ainda não tem data de estréia confirmada, mas, segundo os produtores, é provável que seja ainda no primeiro semestre de 2014. Vamos aguardar, mas, até lá, não deixe de conferir o vídeo/publicidade da produção aí embaixo. Um forte abraço em todos! ;-)


quinta-feira, 6 de março de 2014

A JUSTIÇA DOS JUSTICEIROS

O Remorso de Orestes. William-Adolphe Bouguereau

Recentemente, o Brasil vem sendo palco da atuação de grupos civis vulgarmente denominados “justiceiros”. Trata-se, amiúde, da boa e velha justiça com as próprias mãos, a Lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”. Já tornou-se uma brincadeira em meu círculo de amigos dizermos que o país está sofrendo de Transtorno Bipolar e, como não poderia deixar de ser, as opiniões quanto a isso se dividem nas redes sociais e botequins brasis afora entre os que são radicalmente contra e os que são radicalmente a favor.

Quem é radicalmente contra costuma adotar o discurso de culpabilização da sociedade. A sociedade, esse ente abstrato e carente de definição, seria a culpada por produzir a criminalidade – ela mesma produz o meliante por meio das injustiças sociais. Para este grupo, a criminalidade é um sintoma de nossas estruturas sociais desiguais e extremamente decadentes. Ela não pode ser vista como um problema sanitário e, portanto, a ação dos justiceiros é apenas mais uma forma de discriminação sócio-econômica-racial.

Eles certamente deixam de considerar que, se por um lado a criminalidade exacerbada é fruto de um quadro social doente, por outro a ação dos justiceiros é igualmente sintomática de um sistema judicial e carcerário falidos, da impunidade aviltante e da sensação de insegurança crescente. Alguns chegam mesmo a negar o óbvio, reduzindo o fenômeno a uma questão cultural, racismo/elitismo secular. Não é preciso ser Einstein, no entanto, para calcular a fórmula simples, quase matemática: sem impunidade a ação de “justiceiros” não faz o menor sentido. Pela própria lógica da coisa, uma existe em função da outra.

Os que são radicalmente a favor, por outro lado, costumam adotar o discurso do “bandido bom é bandido morto”. Para eles, a desigualdade social existe, mas não é desculpa para o crime. Eles afirmam que o cidadão trabalhador, que paga seus impostos, sente-se acuado, com medo, em meio a tanta violência. E a culpa da criminalidade acentuada em nossas cidades seria do sucateamento e da corrupção das forças policiais, bem como da sensação de impunidade de que goza o indivíduo ao cometer um crime. É como se cada um pudesse fazer o que quisesse.

Estes, por ingenuidade ou incompetência política, preocupam-se com o momento, desconsiderando os efeitos dessa “solução” um pouco mais a frente. Quando escolhemos viver em sociedade, institui-se algo que  Thomas Hobbes, John Locke  e Jean-Jacques Rousseau denominaram Pacto Social. Confiamos a uma entidade denominada Estado a responsabilidade por manter a segurança no meio social. Se o Pacto é rompido, seja pela ação do próprio Estado ou pela nossa, enquanto cidadãos, o resultado disso é o caos em longo prazo. Justiça não é algo como o azul, o quente ou o claro, com um significado absoluto e fixo para todos. Existem tantas concepções de justiça quanto existem de coisas como bom e ruim, certo e errado... Imaginemos o que aconteceria caso vários grupos diferentes começassem a se organizar, cada um deles defendendo a sua própria concepção de justiça.

Para exemplificar, recorro à mitologia grega. O mito de Orestes e a Maldição da Casa de Atreu é uma das passagens mais sangrentas da mitologia de todos os povos. Narrada detalhadamente na obra de Ésquilo (525 a.E.C. - 456 a.E.C.), a saga apresenta uma sucessão terrível de assassinatos motivados por vingança. Tudo começa quando os irmãos Atreu e Tiestes, após a morte do pai, o rei Euristeu, em batalha, passam a disputar o trono de Argos. Uma antiga profecia indicava que Atreu seria o sucessor de Euristeu. Isso fez Tiestes trapacear. Ele decidiu atrair as atenções da esposa do irmão, seduzindo-a e convencendo-a a trair o marido para favorecê-lo. A dupla traição, no entanto, não tardou a ser descoberta e Tiestes acabou exilado em outra cidade, onde se casou com outra mulher e com ela teve três filhos.

Atreu, de contrapartida, conseguiu o trono de Argos, mas amargava um ódio incurável pela traição sofrida. Decidido a vingar-se, tramou um plano terrível – atirou a esposa ao mar e convidou o irmão para um banquete, fingindo motivado pelo desejo de reconciliação. Nesse banquete, Atreu serviu a Tiestes a carne de seus próprios filhos num ensopado. Tiestes não desconfiou de nada até o final da refeição, quando lhe foram mostradas as cabeças decepadas dos meninos. Desesperado, ele amaldiçoou Atreu por toda a sua descendência. Esse é apenas o começo da história.

Anos mais tarde, Atreu acabou morto por Egisto, também filho de Tiestes, que então se apoderou do trono de Argos, passando a governar ao lado do pai. O tempo passou e Agamêmnon, filho de Atreu, agora rei de Micenas, partiu de Argos para a Guerra de Tróia. Com o objetivo de aplacar a fúria da deusa Ártemis por um malfeito passado e conseguir bons ventos para a viagem, ele sacrificou a própria filha, Ifigênia, provocando a fúria e o rancor de sua esposa, Clitemnestra.

No curso dos dez anos que, segundo a Ilíada, teria durado a Guerra de Tróia, Clitemnestra e Egisto tornaram-se amantes, tramando em segredo o brutal assassinato de Agamêmnon tão logo ele pusesse os pés casa. O plano foi levado a cabo e Clitemnestra pode, enfim, vingar a morte da filha. No entanto, passados mais alguns anos, o assassinato de Agamêmnon foi vingado pelo filho, Orestes, que acabou, por sua vez, matando a própria mãe. O matricídio era um crime imperdoável segundo as leis mais antigas. Deste modo, o fantasma de Clitemnestra, das profundezas do Hades, clamou às Erínias, deusas da vingança. O resultado foi que Orestes passou a sofrer perseguições terríveis.

O mito culmina com a intervenção de Atená, deusa da sabedoria, que, para o propósito de julgar o crime de Orestes, convoca o primeiro tribunal do júri, composto por doze cidadãos atenienses (o número dos ministros de Zeus). Na ocasião, segundo o mito, o julgamento terminou em empate. Os cidadãos, divididos, não foram capazes de chegar a um consenso, cabendo à própria deusa a solução para o impasse (o Voto de Minerva). Atená optou pelo fim daquele ciclo interminável de ódio e vingança, absolvendo Orestes. Mas esse ato acabou despertando a ira das Erínias, que se sentiram humilhadas e privadas da função que assumiram desde a noite dos tempos.

Novamente, usando de toda a sabedoria que caracterizava a sua natureza, Atená conseguiu apaziguá-las, auferindo-lhes o título de Eumênides (as boas deusas) e ordenando que lhes fosse consagrado um templo ao lado do novo tribunal. Assim, todos os homens deveriam lembrar-se do que acontece quando a justiça não é tratada com sabedoria e efetividade.

Esse mito ilustra bem o momento que estamos vivendo e acho lamentável que tenhamos perdido a capacidade de extrair sabedoria dessas passagens milenares. Não se pode dizer que não haja justiça na ação dos justiceiros. Há. Mas a questão é – que justiça é essa?

É a justiça das Erínias, a justiça ancestral, que já encontrou respaldo jurídico entre os homens e, de certa forma, ainda encontra respaldo moral. A verdade é que os justiceiros têm lá a sua razão. Os dois lados, tanto dos que são radicalmente contra quanto dos que são radicalmente a favor, aliás, têm sua parcela de razão. Falta-lhes, todavia, perceber que essa razão não é absoluta. Quiçá tentar olhar para a razão do outro.

No fundo, ainda somos como os cidadãos atenienses, divididos entre a condenação ou absolvição de Orestes. O problema da justiça das Erínias é que ela é avassaladora, insaciável, reproduz-se em um ciclo interminável de tormento. Já a justiça de Atená é a justiça do Pacto Social, a justiça preocupada com o equilíbrio da balança.

O sociólogo Émile Durkheim afirmava que o crime é uma condição normal em toda e qualquer sociedade. A condição patológica não está no crime, mas na impunidade. Infelizmente, hoje já não temos o Templo das Eumênides ao lado dos tribunais, para nos lembrar do que acontece quando a justiça de Atená sai de cena e entra a das Erínias. Deixo, então, a seguinte questão em aberto: teremos sabedoria para dar o Voto de Minerva? Porque, seja como for, nosso futuro depende dessa resposta.   

segunda-feira, 3 de março de 2014

A DÁDIVA DA VÊNUS


Era uma vez um reino muito próspero e feliz, além das montanhas do horizonte. A água corria fresca e límpida nos riachos, que umedeciam a terra tornando-a propícia para todas as sementes. Os ventos eram bondosos, não estragavam as plantações. As aves cantavam, alimentando-se dos frutos silvestres em bosques exuberantes e o Sol brilhava quase sempre afável no céu.
Vez ou outra, nuvens trovejantes se cruzavam acima da cidadela de tijolos e madeira de carvalho, espalhando-se e enturvecendo as cores da paisagem. Uma chuva fina ou vigorosa se seguia, espalhando o perfume de terra molhada no ar, enquanto coriscos reluzentes rasgavam o céu de leste a oeste. Embora muitos pudessem se sentir amedrontados nessas ocasiões, elas faziam com que a terra florescesse ainda mais em uma abundância que parecia não ter fim.
No centro da cidadela, havia um palácio rústico, porém confortável, onde vivia Joel, o rei, amado e respeitado. Ele sabia tratar os súditos com respeito e benevolência, paciente até mesmo com aqueles que nunca pareciam satisfeitos. Empenhava-se obstinadamente em zelar pela prosperidade do reino, fazendo as riquezas se multiplicarem. Então as aplicava em melhorias para as condições de vida de todos os seus súditos.
A rainha, esposa de Joel, chamava-se Sofia. Era uma mulher esguia, dona de beleza austera, semelhante a uma garça. Portadora de sabedoria e infindável amabilidade, não havia quem pudesse esquivar-se de admirá-la e respeitá-la quase tanto quanto ao próprio rei.
Sofia e Joel amavam-se, disso ninguém duvidava. Juntos viviam quase completamente felizes. Apenas uma coisa os impedia de gozar completamente essa felicidade ― embora já fossem casados havia muitos anos, Sofia não conseguia dar filhos a Joel.
Tentaram de tudo. Tratamento medicinal, ervas desconhecidas, antigos encantamentos... Nada parecia funcionar. Os anos se passavam, eles envelheciam e o sonho de trazer herdeiros ao mundo parecia cada vez mais distante.
Joel jamais pensou em ter outra mulher, mas era uma sombra sobre a sua fronte o fato de não ter para quem deixar tudo o que havia conquistado.
Então um dia, quando caçava num vale perto das fronteiras do reino, Joel se deparou com uma velha senhora caída à beira de uma estradinha de terra batida. Ao aproximar-se para ver o que se passara, constatou que a mulher estava desfalecida, esquálida, quase morta de fome e de sede.
Imediatamente, ordenou que seus cavalariços levassem a velha senhora para o palácio. Lá, sob os olhares atenciosos da rainha, ela recebeu cuidados e alimentação.
Dias depois, completamente recuperada, a velha senhora despertou e revelou-se a própria deusa Vênus. Muito grata, informou-lhes que, entediada com a eternidade, havia decidido caminhar disfarçada pela Terra, com o intuito de testar a disposição e a capacidade de amar dos seres humanos. Acabou fraca, faminta e sedenta, mas a bondade dos corações de Joel e Sofia haviam, mais que qualquer cuidado ou refeição, restaurado as suas forças e o seu poder.
Dito isso, a velha senhora despojou-se de seus andrajos sujos e, num clarão esmeraldino que invadiu todos os aposentos do palácio, assumiu as formas delicadas e exuberantes de uma mulher não-humana, tão bela quanto deveria ser a própria beleza.

― Como forma de gratidão ― ela disse ―, lhes concederei um filho, pois posso ver que este é o maior desejo de seus corações. Será um menino. Que nome lhe darão?

A rainha mal podia se conter de emoção. Lágrimas vertiam de seus olhos, embotando-lhe a visão, quando ela declarou, praticamente sem pensar ― Teodoro! Vai se chamar Teodoro, o “presente dos Deuses”.

― Que seja ― disse a Senhora Vênus. ― Serei a madrinha de Teodoro desde este momento até o fim de sua vida. E como um presente especial, farei dele a mais bela criatura mortal a haver caminhado sobre a Terra.

Ao terminar de dizer essas palavras, Vênus desapareceu, levando consigo todo o esplendor de sua presença.
Nos braços de Joel, uma Sofia ainda consumida de emoção buscava abrigo. Seus soluços transbordavam esperança. Suas mãos, delicadamente, percorriam o próprio ventre, onde agora, pela dádiva de Vênus, haveria de germinar o fruto de um amor incondicional.

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Cerca de duas semanas após a benfazeja aparição de Vênus, as curandeiras do reino confirmaram o desígnio da Deusa – Sofia esperava um filho.
Tudo transcorreu em paz durante os nove meses que se seguiram. A rainha estava radiante e feliz. Comia tudo o que via pela frente, sua saúde parecia uma fortaleza inabalável. Nos olhos do rei, uma certeza e confiança nunca antes vista refulgia radiosa. Ele finalmente podia se sentir completo enquanto homem e soberano.
O parto deu-se numa sexta-feira enluarada, a primeira daquela primavera. Não houve qualquer surpresa quanto ao sexo da criança – um menino –, tal como a Senhora de roliças coxas e olhos cor de jade havia predestinado. A surpresa deu-se mais pela beleza incomparável da criança, no primeiro momento mesmo em que esteve fora do útero de sua mãe.
Não era enrugado e taciturno, como as crianças recém-nascidas costumam ser. Pelo contrário. Tinha a pele lisa, rosada como o céu do alvorecer. Seus lábios, finos e bem desenhados, eram da cor dos morangos maduros; mal se abriam para ele chorar. Os pés e as mãozinhas delicadas, com seus dedos rechonchudos, davam vontade de morder. Naquele rostinho angelical, tudo parecia rigorosamente desenhado para agradar aos sentidos, numa verdadeira catarse de simetria e perfeição.
A lua iluminava o céu e raios prateados penetravam a janela do aposento, inundando todo o ambiente. No momento em que o milagre aconteceu e o chorinho fez-se ouvir, as ajudantes da parteira vislumbraram uma pomba que entrou e, tal qual um floco de neve, pousou aos pés do leito da rainha.
A promessa de Vênus se cumprira. Teodoro foi, desde o nascimento, a mais bela criatura que um dia caminhou sobre esta terra.
E assim ele cresceu. Por onde passava, atraía olhares antropofágicos, tanto por conta de sua beleza incomum quanto pela candura que caracterizava a sua natureza.
Apesar disso, o rei quis iniciá-lo nas artes da guerra. E não se pode dizer que tenha errado. Teodoro revelou-se hábil com a espada. Era um menino inteligente, aprendia rápido, comunicava-se com eloquência, e agora estava se tornando um ótimo esgrimista. Quer dizer, nenhuma dessas qualidades realmente chegava perto de se comparar à sua beleza, mas o fato é que ele não desapontava em termos de habilidade e prontidão.
Durante anos, as coisas foram assim. Um rio que fluía docemente por leitos arenosos e suaves. Mas se há algo incerto na vida este algo é a sorte, madrasta malvada de homens e deuses desde tempos imemoriais.
A prosperidade invejável do reino ganhava fama e se espalhava mais e mais a cada ano. Também a beleza do jovem príncipe tornara-se famosa. Como era de se esperar, não tardaram a aparecer volumosas – e voluptuosas – propostas de casamento para o herdeiro do trono. Mas ainda maior que a curiosidade gerada pela aparência sobrenatural de Teodoro, era a avidez que a fortuna de Joel podia despertar.
Rumores sobre as maravilhas do reino não tardaram a chegar às terras do ambicioso sultão Malik, dos Desertos Pantanosos no distante Oriente. Malik era um soberano soberbo e belicoso, que havia se tornado conhecido por tornar o pequenino povoado de seu pai em um auspicioso império. Orgulhava-se de ser o homem mais rico e poderoso da Terra. Ele não poderia tolerar a existência de um rei, cuja sorte e fortuna ousavam rivalizar com a sua.
Mas Malik não era como os reis do ocidente. Não. Ele não queria dar a filha – que nem mesmo possuía – em casamento ao jovem Teodoro. Ele queria ter o que era de Joel. Apenas isso. E sua linguagem para conquistar os seus desejos era apenas uma – a guerra.
De todas as virtudes de Joel, ser o comandante de um exército poderoso não era uma delas. É claro que havia guerreiros valorosos no reino, o próprio príncipe era um deles. Mas seria o bastante para conter o avanço e a fúria das tropas de Malik?
Os céus enturveceram naqueles dias tristes, mas não eram mais as chuvas fertilizadoras. Em lugar de água, muito sangue regou as terras de Joel. O outrora rico povoado de tijolos e madeira de carvalho ficou devastado. O povo padecia de fome e doença, quando não sob as lanças dos soldados de Malik. Foi uma derrota desastrosa.
Como é a tradição da guerra, o lado vencedor assassina os homens e escraviza as mulheres daquele que perdeu. O espólio do guerreiro é o saque, o estupro e a escravidão.
Joel foi o primeiro a padecer no campo de batalha, sob a lâmina ensangüentada da espada de Malik. O príncipe, incumbido de guardar as damas, no palácio, seria o último.
Vencido, Teodoro se prostrava, ajoelhado diante do algoz. Ele esperava o golpe derradeiro. Mas alguma coisa em seu olhar paralisava a coragem do carrasco.
Ora, é sabido que os homens, na guerra, devem morrer olhando para os olhos de seu matador. Essa é a tradição. Mas o carrasco, por alguma razão, não podia, simplesmente não era capaz de tirar a vida do jovem Teodoro. Não enquanto aqueles olhos verdes estivessem pousados sobre sua face.
O episódio atraiu a atenção – e a cólera – do próprio Malik, que assassinou o carrasco a sangue frio por sua covardia e decidiu, ele mesmo, exterminar a vida do jovem príncipe. Insensível à beleza de qualquer coisa que não fosse o brilho do ouro, ele sacara a cimitarra e se preparava para desfechar o golpe final. Foi quando o filho, seu único filho, o interrompeu.
Seu nome era Hassan, mas era conhecido em sua terra como Príncipe Negro, por causa do tom acobreado de sua pele. De fato, Hassan tinha quase a cor do ferro, ligeiramente avermelhado de ferrugem.

― Pelos Deuses, meu pai, pare! ― disse Hassan.

Malik olhou para o filho, sem entender.
O Príncipe Negro aproximou-se devagar, olhando fixamente para Teodoro, sujo e derrotado a sua frente.

― Ele é o último de sua linhagem, não devemos matá-lo.
― Está louco? ― Malik perguntou. ― Então quer deixar vivo o único herdeiro do antigo rei, para que ele queira se vingar de nós depois?

Hassan olhou profundamente para Teodoro. Quase se perdeu no verde esmeraldino de seus olhos.

― Ele tentará vingar-se se o deixarmos aqui, com os sobreviventes revoltosos. Se o levarmos conosco, junto aos demais escravos, sob os nossos olhos jamais será capaz de tamanha ousadia... Para não dizer tolice.
― Não sei...
― Pense, meu pai. Dizem, por aqui, que o príncipe é dádiva de uma deusa. Se for verdade, ele também é um dos muitos tesouros destas terras... Além disso, eu não acho que iríamos querer a ira de nenhuma deusa sobre nós, iríamos?

Malik sobressaltou-se ante a última declaração de Hassan. Numa série de gestos rápidos, cobriu os lábios, os olhos e os ouvidos com as palmas das duas mãos, deixando sua cimitarra cair no chão.

― Está decidido ― disse, afinal ― o jovem príncipe irá conosco! Coloquem-no junto aos demais escravos!

Perto dali, Sofia, dentro de uma carroça cercada por grades finas de metal, suspirou aliviada.

*******

Nas terras pantanosas governadas por Malik, Sofia e Teodoro foram dolorosamente separados. A primeira, designada para servir e acompanhar a esposa do sultão, conseguia pensar apenas na segurança do filho, única parte de seu mundo que ainda estava de pé. O segundo, cujo coração transbordava de ódio e ressentimento, fora escolhido para cuidar dos suntuosos jardins do palácio de Hassan.
Hassan, o Príncipe Negro, vivia sozinho em uma residência próxima ao palácio de seu pai, centro do governo de toda a região. Ele mesmo havia requisitado Teodoro para cuidar de seus jardins.

― Espero que saiba o que está fazendo, filho – disse Malik.

Mas não era verdade que Hassan sabia. Ele nem ao menos podia entender aquela estranha necessidade de manter Teodoro sempre perto de si. Não era uma atitude sensata, tampouco racional, mas algo absolutamente – e inexplicavelmente – alheio ao seu próprio temperamento.
Hassan não era nenhum tolo com inclinações humanitárias. Pelo contrário, era o melhor estrategista de seu pai, de maneira que boa parte do sucesso daquela empreitada se devia tão somente a ele. Como todos os guerreiros e generais de sua terra, Hassan sabia que a coisa mais prudente a se fazer ao conquistar o reino de alguém era matar impiedosamente todos os homens, especialmente os de linhagem real. Mas quando se tratava de Teodoro, aquele rapazola que mal acabara de conhecer, por alguma razão ele não tinha forças.
Seria mesmo Teodoro um “presente dos deuses”, como seu nome sugeria? Seria mesmo uma dádiva de Vênus?
Hassan lembrou-se de ouvir a mãe contar, certa vez, que também havia tido problemas para dar herdeiros ao sultão. Então um dia, como as mulheres de sua aldeia costumavam fazer e sua avó lhe aconselhara, ela foi até a praia onde os mitos contavam que a senhora Astarte havia nascido. Ali, prostrada, ofereceu-lhe sete lenços coloridos, atados às murtas que misteriosamente floresciam no local. Naquela praia lendária, a esposa do sultão clamou à Deusa, enquanto lagrimas vertiam abundantemente de seus olhos. Astarte era o nome de Vênus na terra de Hassan.
Pouco tempo depois de ter ido àquela praia oferecer lenços e o seu amor à Deusa, foi-lhe revelado que em seu ventre se engendrava uma criança. Desde este dia até o fim de sua vida, a esposa do sultão, mãe de Hassan, usaria um pingente de esmeralda em seu pescoço, como forma de gratidão.
Hassan, afinal, também era um presente de Vênus ou Astarte. E a esmeralda no colar de sua mãe era verde e brilhante como os olhos de Teodoro, que agora cuidava das flores em seu jardim.
Hassan saía, todos os dias, sorrateiro, para espiar Teodoro enquanto ele cuidava das flores. Sentia o coração disparar, a testa suar, mas precisava, nem ele sabia porquê, ver o sol bater naquela pele, ouvir o tom melodioso daquela voz. Por fim, não lhe restava escapatória – Hassan precisaria admitir, nem que fosse apenas para ele mesmo, a irremediável e incontrolável paixão que estava sentindo por aquele rapaz.

*******

Durante um tempo relativamente longo, tudo em que Teodoro conseguia pensar era vingança. Tal como o sultão havia previsto, ele pensava em vingar a morte de seu pai, a escravidão de sua mãe e de si mesmo, a vergonhosa submissão do reino em que nascera. Por vezes, quando não estava cansado o bastante, não conseguia dormir, amargando dolorosas horas de agonia e tristeza. Era demais para ele o peso da realidade de um reino poderoso como havia sido o de seu pai padecendo de forma tão ultrajante, enquanto seu herdeiro legítimo cuidava das flores no jardim do próprio algoz.
A amargura exasperada no coração de Teodoro deixava Sofia deveras preocupada nas raras ocasiões em que podiam se encontrar. Ele falava alto. Ela se preocupava com quem pudesse ouvir. Ele falava de vingança. Ela queria apenas que o filho continuasse vivo. Ele falava do direito ao trono. Ela respondia que nenhum poder era legítimo e que todo trono, um dia, havia sido conquistado pela força. Até mesmo o trono de seu pai.
Cego como estava, no entanto, Teodoro não lhe dava ouvidos. Parecia imune a toda forma de convencimento e a única coisa de que não podia se furtar era dissimular sorrisos ao seu novo amo. Por alguma razão estranha, aliás, o Príncipe Negro parecia gostar de lhe fazer sorrir.   
     Naqueles tempos, Teodoro começou a percebê-lo por entre as moitas dos jardins, tentando disfarçar sua presença, enquanto, silencioso, o observava em suas obrigações diárias. Achou ainda mais estranho quando ramalhetes de flores frescas começaram a aparecer em sua cama. Um dia, voltando de uma campanha comercial no Oriente Extremo, Hassan atravessou o pátio do palácio a cavalo, desceu diante dele e lhe entregou um belíssimo frasco repleto de nardo, essência tão maravilhosa quanto rara, diante de todos os criados.
Um pouco depois disso, Teodoro foi chamado a trocar de função. O Príncipe não o queria mais cuidando dos jardins e das flores. Suas novas atribuições seriam nos aposentos reais. Hassan queria Teodoro como seu camareiro pessoal.
Passou a ser responsabilidade de Teodoro o chá que o Príncipe Negro tomava todas as noites, antes de dormir. Pela manhã, tinha de ajudá-lo a se vestir, depois servir-lhe o desjejum. Todas as tarefas que o deixavam indesejavelmente próximo daquele a quem secretamente desejava matar.
Mas como desejar de fato a morte de Hassan? Não havia no mundo criatura mais terna, ao menos não no trato com Teodoro. Ele era agradável, sorridente, gostava de conversa antes de pegar no sono e perdia horas desfiando as mais encantadoras fábulas orientais, com aquela voz grave e modulada. Ao despertar, logo nas primeiras horas do dia, seu humor era surpreendentemente bom. Costumava contar piadas antes de sentar-se para comer, depois tomava sua cítara e perdia algum tempo repetindo canções, parecendo atento para descobrir as mais capazes de fazer com que Teodoro se sentisse feliz.
Desgraçadamente, ele não fazia de sua presença um fardo. Desgraçadamente porque isso ia completamente contra os interesses de Teodoro e servia apenas para deixá-lo tremendamente confuso.
Mais ou menos nessa época, Teodoro começou a notar o Príncipe Negro com mais atenção. Pela primeira vez, percebeu a suavidade dos traços de seu rosto, a beleza exótica daquela cor ferruginosa em sua pele, o brilho penetrante de seus olhos. Hassan era mais belo do que Teodoro poderia ter imaginado, mas, mais que a beleza, era sua amabilidade irrepreensível que tornava tudo tão difícil.   
Um dia, com o pensamento ainda atormentado por desejos de vingança, Teodoro, que àquela altura precisava se esforçar para não gostar de seu senhor, foi surpreendido por uma velha feiticeira no mercado da cidade. Sem nenhuma razão aparente, a velha que o abordara oferecera-lhe um frasco com extrato de estricnina, um veneno poderoso e letal. Algumas gotas no chá noturno de Hassan seriam suficientes para lhe dar a vingança que tanto almejava.
Teodoro levou o frasco de veneno consigo para o palácio. Sua intenção era servi-lo em pequenas doses, para deixar Hassan doente e levá-lo à uma morte lenta, sem levantar suspeitas. Assim, ficaria livre para pensar numa maneira de terminar sua vingança. O próximo passo seria a morte do sultão.
No entanto, ao chegar a hora derradeira, Teodoro deixou-se trair pela simpatia que Hassan havia conseguido despertar em seu coração. Ele hesitou. E, como demorasse mais que o habitual para trazer o chá, o Príncipe Negro resolveu verificar o que estava acontecendo.
Surpreendeu-o parado diante da bandeja de prata com o frasco de estricnina nas mãos.

― O que é isso? ― disse Hassan, tomando o frasco das mãos de Teodoro.

Ele removeu o delicado tampo de vidro e levou o frasco até o nariz, examinando o odor do conteúdo. Depois disso, uma expressão de profundo desencanto apoderou-se de seu rosto. ― Um veneno? Então é isso... Você quer me matar?
― Não me olhe desse jeito! ― disse Teodoro, agora revelando despudoradamente todo o ressentimento que havia se esforçado em ocultar. ― Não tem esse direito! Você e seu pai mataram o meu pai! Sem nenhuma compaixão, destruíram toda a vida que um dia conheci! Meu reino foi feito em pedaços e fizeram de mim e minha mãe seus escravos! O que você achou que fosse acontecer? Eu vivo apenas para me vingar!
― Então meu pai esteve certo o tempo todo... Eu devia ter deixado que  lhe cortassem a cabeça.
― Sim, devia! Mas não foi o que você fez! Você me manteve vivo para me humilhar ainda mais!
― É assim que você vê?
― Agora você não tem opção. Eu atentei contra você. Se me deixar vivo, provavelmente atentarei de novo. Vamos, acabe com isso!
― Não posso...
― O quê?
― Não percebe que te amo?

Houve um silêncio aterrador. As palavras de Hassan haviam atravessado o peito de Teodoro como flechas.

― Eu te amei desde o dia em que te vi ― Hassan continuou. ― Não me peça para explicar porque eu mesmo não posso entender. Mas não pude deixar que tirassem a sua vida naquele dia e não posso fazer isso agora. Prefiro a morte... E, nesse caso, minha vida é tudo o que tenho para lhe oferecer.

Teodoro arregalou os olhos, sem acreditar no que ouvia.

― Tome ― disse Hassan, estendo a mão com o frasco de veneno. ― Acho que isto é seu. Se é verdade que minha morte poderá compensar sua dor de alguma forma, coloque o veneno no chá e leve para mim. Siga com seu plano. Eu tomarei o que você me servir.

Teodoro pegou o frasco com as mãos trêmulas, os adoráveis lábios entreabertos.
Hassan lhe deu as costas, preparando-se para voltar aos aposentos reais, quando se deteve um instante na soleira da porta.

― Tudo o que lhe peço ― acrescentou ― é que tente ver meu sacrifício como um gesto de amor. Quando eu não estiver mais aqui, faça o que quiser de sua vida. Fuja. Vá atrás de meu pai, se quiser. Seja livre. Mas seja generoso comigo em seu coração.

“Seja generoso comigo em seu coração.” Aquelas palavras faziam eco em sua mente. Teodoro precisou de um tempo para se recuperar.
Quando chegou aos aposentos reais, encontrou Hassan em sua cama, com as pernas cruzadas, na posição de sempre, esperando o chá. Mas Teodoro não trazia nenhuma bandeja de prata, com bules e tigelas. Apenas o pequeno frasco de estricnina numa das mãos.
Ele se sentou na cama, de frente para Hassan. Com as duas mãos, entregou-lhe o frasco de veneno. O Príncipe Negro sorriu. Não com os lábios, mas com os olhos.
Delicados raios de luar entravam pela janela escancarada do aposento. Uma brisa fresca de verão soprava quente do lado de fora, agitando um pouco as folhas das palmeiras no jardim. Apesar disso, a noite estava silenciosa. Assim mesmo, eles não ouviram quando o frasco rolou para fora da cama, espatifando-se ao encontrar o chão.

*******

Naquela noite, tendo a lua e o vento como testemunhas, Teodoro e Hassan se encontraram na luz dos olhos um do outro. No pulsar acelerado de seus corações, fluía o próprio ritmo da vida. Se o veneno que a bruxa lhe entregara no mercado havia servido para matar alguma coisa àquela noite, esta era o ódio de Teodoro e a barreira que havia entre os dois.
Como não pudessem compreender completamente a natureza irresistível do sentimento que os unia, ambos os príncipes decidiram manter em segredo aquele amor. Mas Hassan, sobretudo, não era hábil em guardar segredos como o era na guerra.
Feliz como estava, ele passou a oferecer presentes a Teodoro com frequência ainda maior. Não mais os trazia, como antes, mas fazia questão de levar o rapaz consigo a toda parte.
De fato, os dois andavam sempre juntos. Hassan, falante e orgulhoso como era, gostava de ensinar a Teodoro tudo o que sabia ou pensava saber. Aquela amizade não tardou a despertar o interesse e a atenção de todos, principalmente do sultão.
Malik, infinitamente mais experiente que o filho, preocupou-se com a cena que se desenhava a sua frente. Ele também não podia ignorar a beleza incomum do jovem que trouxeram do Ocidente e temia pelo tipo de armadilha que esperava por Hassan. Mais que depressa, tratou de encontrar uma noiva para o filho ― a jovem e bela princesa de um reino vizinho.
Hassan, de sua parte, não se furtou de conhecer a moça. Mas seu coração, pelo que parecia, já estava ocupado.
Malik tentou outra vez. E outra. E outra. E outra. Cada uma mais linda e rica que a outra. Todas sucessivamente rejeitadas por Hassan.
Não é que ele não se interessasse completamente pela beleza e fortuna das pretendentes escolhidas por seu pai. É que não podia considerar sequer estar com outra pessoa que não Teodoro, com sua pele macia e seus olhos de esmeralda. Acostumara-se com aquele cheiro, aquela cor, aqueles cabelos enrolados. Era um viciado inconfessável e já não podia viver sem embriagar-se todos os dias da presença de seu amor.
Dolorosamente desconfiado, o sultão, um dia, ordenou a um espião para que seguisse o filho, observando-o de longe. Queria ter conhecimento de cada passo seu. Sem nada saber, Teodoro e Hassan continuaram vivendo como se nada se passasse.
Quando o espião voltou, trazendo confirmação às suspeitas nefastas do sultão, a fúria apossou-se dele. Bradou violentamente contra os servos e os deuses, virou mesas, quebrou louças, esbofeteou o informante, por último mandou matá-lo. Não apenas por ser o mensageiro de notícia indesejável, mas para que ninguém, jamais, pudesse descobrir o segredo vergonhoso de seu filho.
Malik não podia aceitar aquilo. Malik não podia aceitar muitas coisas. Mas ele tinha um plano.
Secretamente, convocou os assassinos mais habilidosos e furtivos do reino. Eles não precisavam saber o motivo. Se o sultão queria alguém morto, esse alguém morria. Os dias de Teodoro estavam contados.

*******


Naquela manhã, Teodoro havia ido ao mercado, como de costume, comprar ervas para o chá noturno de Hassan. No caminho de volta, foi surpreendido pela velha feiticeira que lhe havia oferecido o frasco de veneno tempos atrás. Ela apareceu de repente, segurando-o pelo braço quando ele passava na frente de uma tenda velha e esfarrapada.

― Você? ― disse Teodoro. ― O que você quer, velha? Não quero mais nenhum veneno. Solte-me!
― A pergunta é: “o que você quer?”, jovem presente de Vênus ― a velha respondeu.
― Como assim? Do que está falando?
― Você quer viver?
― Sim! É claro que sim!
― Então esta noite, quando estiver com o Príncipe Negro, peça a ele que troque de roupas com você. Faça isso ou morrerá.
― O quê? Ele jamais faria uma coisa dessas! Você está louca!
― Ah, ele fará qualquer coisa que você pedir, criança! Você sabe bem disso.
― E por que eu deveria dar-lhe ouvidos? Quem é você, afinal?
― Tudo em seu tempo ― disse a velha, soltando o braço de Teodoro e voltando para dentro da tenda.

Inconformado, Teodoro irrompeu pela tenda caindo aos pedaços atrás da velha, mas não havia mais ninguém ali. Ela havia desaparecido.

*******

Quando a noite caiu e Teodoro encontrou Hassan, ele fez como a bruxa lhe havia aconselhado no mercado àquela manhã. Ainda sem compreender o porquê, propôs um jogo ao Príncipe Negro. Eles deveriam trocar de papel. Teodoro se vestiria com as roupas de Hassan e agiria como ele, contando histórias e tocando a cítara. Hassan, por sua vez, faria a mesma coisa, usando as roupas e imitando os gestos de Teodoro.
Como a velha bruxa havia previsto, o Príncipe Negro não apenas aceitou a brincadeira como achou-a divertida, e assim eles fizeram. Trocaram de roupas e, entre risos e soluços, puseram-se a imitar os gestos e os modos um do outro.
Do lado de fora, enquanto isso, os assassinos do sultão haviam chegado junto com a lua. Posicionavam-se nos muros do palácio de Hassan, sem que ninguém soubesse ou pudesse imaginar, prontos para executar sua terrível missão. Mas havia outra coisa àquela noite. Além das roupas e do gestual trocados, uma bruma espessa e incomum naquela época do ano baixou sobre o palácio, tornando a visão difícil e confusa.
Assim, quando Hassan, usando as roupas de Teodoro, aproximou-se da janela para olhar a névoa espessa do lado de fora, foi atingido bem no peito pela flecha envenenada de um dos assassinos de seu pai.
Teodoro correu, desesperado, em socorro de Hassan. O sangue começava a brotar voluptuoso do ferimento.
Tão misteriosamente quanto havia surgido, a névoa do lado de fora começou a dissipar. Logo os assassinos, horrorizados, puderam ver o que tinham acabado de fazer ― por engano, mataram o filho do sultão.
Temendo a morte certa, desapareceram e jamais puderam ser encontrados novamente. Quanto a Malik, que estava em seu palácio perto dali, ele não tardou a descobrir o que havia acontecido e quase enlouqueceu.
Num rompante de exasperação e agonia, foi direto para a casa de Hassan, irrompendo feito um vento ensandecido, para encontrar o filho semimorto entre as pernas de um desconsolado Teodoro.

― Deuses, o que fiz?! ― bradou Malik, tão logo encontrou-os largados no chão. ― Eu matei meu próprio filho!... Hassan! Hassan! Não morra, pelos Deuses, eu lhe imploro!
― Agora você clama pelos Deuses? ― ressoou de repente uma voz desconhecida para Malik, porém conhecida para Teodoro.

Quando eles se voltaram para a porta do aposento, deram com a velha feiticeira do mercado, amparada em seu cajado de madeira escura.

― Maldição! ― Malik retrucou― Quem é você, que invade a casa de meu filho neste momento de dor, velha infeliz?
― Meça suas palavras, sultão ― disse a velha, com voz grave e autoritária. ― Não me reconhece? Talvez em outra forma fique mais fácil.

A velha deu com o cajado no chão e um clarão opalescente espalhou-se pelo quarto, tão poderoso que cegou a todos, enquanto resvalava por todos os cômodos do palácio e escapava através de suas janelas. Quando a luz diminuiu e eles voltaram a ser capazes de enxergar alguma forma, viram ― ou acreditaram ver ―, uma mulher cuja beleza não se poderia descrever. Ela estava parada de pé exatamente no mesmo lugar em que antes estava a velha e trajava apenas uma longa túnica verde, feita de tecido tão suave e etéreo que mais parecia uma mistura e água e cor.

― Minha Senhora! ― exclamou o sultão, prostrando-se diante dela. Com as palmas das mãos, ele cobriu os lábios, os olhos e os ouvidos.
― Sua reverência não significa nada ― ela disse, a voz refluindo em ondas como o próprio mar. ― Eu lhe dei tudo o que há de valioso em sua vida, Malik. Primeiro o amor de uma mulher honrada e valorosa. Depois um filho, belo e corajoso, para herdar suas conquistas e continuar sua linhagem. E o que você fez? Não deu valor a nada disso. Você trocou o amor pela ganância. Ganância de riquezas, ganância de poder, ganância de controle. Sobre a ganância dos homens eu não tenho nenhum poder. Pois veja aonde ela lhe trouxe.
― Eu imploro o seu perdão! Leve a mim, se desejar, mas, por favor, poupe a vida de meu filho!

A Senhora voltou-se piedosamente para Teodoro, sentado no chão com Hassan caído em seu colo. Sorriu. Ele sorriu de volta. Ela se maravilhou reconhecendo o brilho de sua própria graça no sorriso do rapaz.

― Eu não quero a sua vida, sultão ― ela disse, voltando-se outra vez para Malik ― Mas a generosidade de seu gesto me enternece. Daria mesmo a sua vida pela de Hassan?

Ele levantou os olhos para ela um instante.

― Sim! Eu daria minha vida miserável pela dele! Faço qualquer coisa, mas me poupe da desgraça de perdê-lo!
― Pois bem... Eu abençôo o amor, sultão. Como quer que ele se manifeste. Nunca mais coloque-se no meu caminho!
― Eu lhe dou a minha palavra!

Novamente, um clarão poderoso inundou o aposento, ofuscando a todos, para depois mergulhar o palácio inteiro na calidez de sua luz. Quando a claridade começou a dissipar, Malik e Teodoro conseguiram discernir um suave e adocicado perfume de rosas no ar. No colo de Teodoro, Hassan, miraculosamente sem a flecha ou ferimento em seu peito, abriu os olhos, tossindo como quem acabasse de acordar.

― O que aconteceu? ― ele quis saber.

Mas Teodoro e Malik ainda não eram capazes de falar. Eles apenas se olhavam, na misteriosa consciência de estar unidos, agora e para sempre, por aquele amor tão improvável quanto incondicional. A verdadeira dádiva de Vênus.
No fim daquele verão, houve uma grande festa no reino. Não chegou a ser um casamento de fato, pois ninguém sabia, ainda, como celebrar o casamento de dois príncipes. Eles festejavam simplesmente ao amor, à suas aventuras e desencontros e à graça e beleza indizíveis que apenas ele era capaz de dar à vida.
Malik devolveu o reino de Joel a Teodoro, que voltou para lá na condição de soberano, levando consigo Sofia e Hassan – suas causas de viver acima de todas as outras.
Em pouco tempo, o reino voltou a prosperar. Agora, com a ajuda de Hassan, ainda mais do que havia prosperado nos tempos de Joel. Teodoro e Hassan governaram, assim, amados pelo povo e pelos Deuses, mas, principalmente, um pelo outro. E assim eles viveram felizes para sempre. Algumas vezes sorrindo, outras vezes chorando... Porque, afinal de contas, nenhuma história de amor conhece realmente um final.

FIM



sábado, 1 de março de 2014

PORAJMOS - O HOLOCAUSTO CIGANO


Muito se tem falado sobre o genocídio judeu praticado pelo regime nazista da Alemanha de Hitler. Sobre o Holocausto, ou Shoá (do hebraico “catástrofe”), há uma infinidade de livros, fotografias, depoimentos, filmes... Mas nada, ou quase nada se conhece ou reproduz a respeito do genocídio generalizado que aconteceu nos campos de horror, também chamados “de concentração”.

Não eram apenas judeus nas fotos de cadáveres empilhados aos montes em valas de terra escura. Negros, deficientes físicos e mentais, homossexuais, latinos, ciganos e muitos outros também foram vítimas das Leis de Nuremberg. Talvez pela maioria desses grupos não contar com grandes representatividades político-econômicas, no entanto, eles têm ficado de fora da maior parte dos relatos acerca deste triste episódio da história humana.

Em 15 de setembro de 1935, por ocasião do sétimo congresso anual do Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores, as chamadas Leis de Nuremberg são adotadas, em sessão extraordinária, por iniciativa de Hitler. Elas consistiam de três textos, a saber Reichsflaggengesetz, a lei da bandeira do Reich, Reichsbürgergesetz, a lei da cidadania do Reich, e a Gesetz zum Schutze des deutschen Blutes und der deutschen Ehre, lei da proteção do sangue e honra alemães. Especialmente a segunda e a terceira dessas leis foram o que permitiu a disseminação de toda a desastrosa e infame política racial do Terceiro Reich.


Com base nessas leis, judeus e ciganos foram definidos como “inimigos do Estado” e tratados de maneira muito semelhante. Tal semelhança, em perseguições e fugas, acabou resultando numa espécie de aliança entre os dois povos, que, de certa forma, perdura até os dias de hoje. Basta dizer que para a maioria dos rhomá todos os não-ciganos são gadjé, exceto os judeus.     


Estima-se que o número de mortos rhomá esteja entre 220 mil e meio milhão, de um total de cerca de 700.000 vivendo na Europa àquele tempo. No entanto, segundo o doutor Sybil Milton, um historiador do Holocaust Memorial Research Institute, EUA, esse número pode chegar a um 1.500.000. 

A POLÊMICA DO TERMO PORAJMOS


Porajmos é uma palavra do romani que significa, ao pé da letra, “devoração”. Não é um termo comum e unânime, como se pode pensar num primeiro momento, mas foi cunhado pelo professor doutor Ian Hancock, da Universidade do Texas, que, como já dissemos, é rhom e um linguista renomado.

Hancock adotou o termo, que teria sido sugerido por um amigo kalderash numa conversa informal em 1993, para o genocídio romani da Segunda Guerra Mundial, já que o termo “Holocausto” parece estar ligado aos judeus de maneira indissociável. No entanto, ele permanece desconhecido para muitos rhomá, incluindo parentes das vítimas e sobreviventes.

Na verdade, alguns ativistas rhomá, sobretudo na Rússia e nos Bálcãs, protestam veementemente contra o uso da palavra. Ocorre que porajmos, em muitos dialetos do romani, é sinônimo de poravipe (violação, estupro), uma palavra considerada inadequada e até mesmo ofensiva.

Marcel Courthiade, um francês e outro catedrático e linguista especializado em romani, propõe o uso do termo samudaripen, que significa “assassinato em massa”. Dessa vez, os ativistas rhomá da Rússia e dos Bálcãs concordam, mas Hancock argumenta que a morfologia da palavra é inadequada. Em face disso, os ativistas propõem outro termo – Kali Trás (Medo Negro), que muitos consideram um tanto exagerado.

Bersa Bibaxtale (Anos Desafortunados) tem aparecido em alguns textos aqui e ali como alternativa. Finalmente, empréstimos linguísticos como Holokosto ou Holokausto também vem sendo ocasionalmente usados em romani.