Era uma vez um reino muito próspero e feliz, além das montanhas do
horizonte. A água corria fresca e límpida nos riachos, que umedeciam a terra
tornando-a propícia para todas as sementes. Os ventos eram bondosos, não
estragavam as plantações. As aves cantavam, alimentando-se dos frutos
silvestres em bosques exuberantes e o Sol brilhava quase sempre afável no céu.
Vez ou outra, nuvens trovejantes se cruzavam acima da cidadela de tijolos
e madeira de carvalho, espalhando-se e enturvecendo as cores da paisagem. Uma
chuva fina ou vigorosa se seguia, espalhando o perfume de terra molhada no ar,
enquanto coriscos reluzentes rasgavam o céu de leste a oeste. Embora muitos
pudessem se sentir amedrontados nessas ocasiões, elas faziam com que a terra
florescesse ainda mais em uma abundância que parecia não ter fim.
No centro da cidadela, havia um palácio rústico, porém confortável, onde
vivia Joel, o rei, amado e respeitado. Ele sabia tratar os súditos com respeito
e benevolência, paciente até mesmo com aqueles que nunca pareciam satisfeitos.
Empenhava-se obstinadamente em zelar pela prosperidade do reino, fazendo as
riquezas se multiplicarem. Então as aplicava em melhorias para as condições de
vida de todos os seus súditos.
A rainha, esposa de Joel, chamava-se Sofia. Era uma mulher esguia, dona
de beleza austera, semelhante a uma garça. Portadora de sabedoria e infindável
amabilidade, não havia quem pudesse esquivar-se de admirá-la e respeitá-la
quase tanto quanto ao próprio rei.
Sofia e Joel amavam-se, disso ninguém duvidava. Juntos viviam quase
completamente felizes. Apenas uma coisa os impedia de gozar completamente essa
felicidade ― embora já fossem casados havia muitos anos, Sofia não conseguia
dar filhos a Joel.
Tentaram de tudo. Tratamento medicinal, ervas desconhecidas, antigos
encantamentos... Nada parecia funcionar. Os anos se passavam, eles envelheciam
e o sonho de trazer herdeiros ao mundo parecia cada vez mais distante.
Joel jamais pensou em ter outra mulher, mas era uma sombra sobre a sua
fronte o fato de não ter para quem deixar tudo o que havia conquistado.
Então um dia, quando caçava num vale perto das fronteiras do reino, Joel
se deparou com uma velha senhora caída à beira de uma estradinha de terra
batida. Ao aproximar-se para ver o que se passara, constatou que a mulher
estava desfalecida, esquálida, quase morta de fome e de sede.
Imediatamente, ordenou que seus cavalariços levassem a velha senhora para
o palácio. Lá, sob os olhares atenciosos da rainha, ela recebeu cuidados e alimentação.
Dias depois, completamente recuperada, a velha senhora despertou e
revelou-se a própria deusa Vênus. Muito grata, informou-lhes que, entediada com
a eternidade, havia decidido caminhar disfarçada pela Terra, com o intuito de
testar a disposição e a capacidade de amar dos seres humanos. Acabou fraca,
faminta e sedenta, mas a bondade dos corações de Joel e Sofia haviam, mais que
qualquer cuidado ou refeição, restaurado as suas forças e o seu poder.
Dito isso, a velha senhora despojou-se de seus andrajos sujos e, num
clarão esmeraldino que invadiu todos os aposentos do palácio, assumiu as formas
delicadas e exuberantes de uma mulher não-humana, tão bela quanto deveria ser a
própria beleza.
― Como forma de gratidão ― ela disse ―, lhes concederei um filho, pois
posso ver que este é o maior desejo de seus corações. Será um menino. Que nome
lhe darão?
A rainha mal podia se conter de emoção. Lágrimas vertiam de seus olhos,
embotando-lhe a visão, quando ela declarou, praticamente sem pensar ― Teodoro!
Vai se chamar Teodoro, o “presente dos Deuses”.
― Que seja ― disse a Senhora Vênus. ― Serei a madrinha de Teodoro desde
este momento até o fim de sua vida. E como um presente especial, farei dele a
mais bela criatura mortal a haver caminhado sobre a Terra.
Ao terminar de dizer essas palavras, Vênus desapareceu, levando consigo
todo o esplendor de sua presença.
Nos braços de Joel, uma Sofia ainda consumida de emoção buscava abrigo.
Seus soluços transbordavam esperança. Suas mãos, delicadamente, percorriam o
próprio ventre, onde agora, pela dádiva de Vênus, haveria de germinar o fruto
de um amor incondicional.
*******
Cerca de duas semanas após a benfazeja aparição de Vênus, as curandeiras
do reino confirmaram o desígnio da Deusa – Sofia esperava um filho.
Tudo transcorreu em paz durante os nove meses que se seguiram. A rainha
estava radiante e feliz. Comia tudo o que via pela frente, sua saúde parecia
uma fortaleza inabalável. Nos olhos do rei, uma certeza e confiança nunca antes
vista refulgia radiosa. Ele finalmente podia se sentir completo enquanto homem
e soberano.
O parto deu-se numa sexta-feira enluarada, a primeira daquela primavera. Não
houve qualquer surpresa quanto ao sexo da criança – um menino –, tal como a
Senhora de roliças coxas e olhos cor de jade havia predestinado. A surpresa
deu-se mais pela beleza incomparável da criança, no primeiro momento mesmo em
que esteve fora do útero de sua mãe.
Não era enrugado e taciturno, como as crianças recém-nascidas costumam
ser. Pelo contrário. Tinha a pele lisa, rosada como o céu do alvorecer. Seus lábios,
finos e bem desenhados, eram da cor dos morangos maduros; mal se abriam para
ele chorar. Os pés e as mãozinhas delicadas, com seus dedos rechonchudos, davam
vontade de morder. Naquele rostinho angelical, tudo parecia rigorosamente
desenhado para agradar aos sentidos, numa verdadeira catarse de simetria e
perfeição.
A lua iluminava o céu e raios prateados penetravam a janela do aposento,
inundando todo o ambiente. No momento em que o milagre aconteceu e o chorinho
fez-se ouvir, as ajudantes da parteira vislumbraram uma pomba que entrou e, tal
qual um floco de neve, pousou aos pés do leito da rainha.
A promessa de Vênus se cumprira. Teodoro foi, desde o nascimento, a mais
bela criatura que um dia caminhou sobre esta terra.
E assim ele cresceu. Por onde passava, atraía olhares antropofágicos,
tanto por conta de sua beleza incomum quanto pela candura que caracterizava a
sua natureza.
Apesar disso, o rei quis iniciá-lo nas artes da guerra. E não se pode
dizer que tenha errado. Teodoro revelou-se hábil com a espada. Era um menino
inteligente, aprendia rápido, comunicava-se com eloquência, e agora estava se
tornando um ótimo esgrimista. Quer dizer, nenhuma dessas qualidades realmente
chegava perto de se comparar à sua beleza, mas o fato é que ele não desapontava
em termos de habilidade e prontidão.
Durante anos, as coisas foram assim. Um rio que fluía docemente por
leitos arenosos e suaves. Mas se há algo incerto na vida este algo é a sorte,
madrasta malvada de homens e deuses desde tempos imemoriais.
A prosperidade invejável do reino ganhava fama e se espalhava mais e mais
a cada ano. Também a beleza do jovem príncipe tornara-se famosa. Como era de se
esperar, não tardaram a aparecer volumosas – e voluptuosas – propostas de
casamento para o herdeiro do trono. Mas ainda maior que a curiosidade gerada
pela aparência sobrenatural de Teodoro, era a avidez que a fortuna de Joel podia
despertar.
Rumores sobre as maravilhas do reino não tardaram a chegar às terras do
ambicioso sultão Malik, dos Desertos Pantanosos no distante Oriente. Malik era
um soberano soberbo e belicoso, que havia se tornado conhecido por tornar o
pequenino povoado de seu pai em um auspicioso império. Orgulhava-se de ser o
homem mais rico e poderoso da Terra. Ele não poderia tolerar a existência de um
rei, cuja sorte e fortuna ousavam rivalizar com a sua.
Mas Malik não era como os reis do ocidente. Não. Ele não queria dar a
filha – que nem mesmo possuía – em casamento ao jovem Teodoro. Ele queria ter o
que era de Joel. Apenas isso. E sua linguagem para conquistar os seus desejos
era apenas uma – a guerra.
De todas as virtudes de Joel, ser o comandante de um exército poderoso
não era uma delas. É claro que havia guerreiros valorosos no reino, o próprio príncipe
era um deles. Mas seria o bastante para conter o avanço e a fúria das tropas de
Malik?
Os céus enturveceram naqueles dias tristes, mas não eram mais as chuvas
fertilizadoras. Em lugar de água, muito sangue regou as terras de Joel. O
outrora rico povoado de tijolos e madeira de carvalho ficou devastado. O povo
padecia de fome e doença, quando não sob as lanças dos soldados de Malik. Foi
uma derrota desastrosa.
Como é a tradição da guerra, o lado vencedor assassina os homens e escraviza
as mulheres daquele que perdeu. O espólio do guerreiro é o saque, o estupro e a
escravidão.
Joel foi o primeiro a padecer no campo de batalha, sob a lâmina
ensangüentada da espada de Malik. O príncipe, incumbido de guardar as damas, no
palácio, seria o último.
Vencido, Teodoro se prostrava, ajoelhado diante do algoz. Ele esperava o
golpe derradeiro. Mas alguma coisa em seu olhar paralisava a coragem do
carrasco.
Ora, é sabido que os homens, na guerra, devem morrer olhando para os
olhos de seu matador. Essa é a tradição. Mas o carrasco, por alguma razão, não
podia, simplesmente não era capaz de tirar a vida do jovem Teodoro. Não enquanto
aqueles olhos verdes estivessem pousados sobre sua face.
O episódio atraiu a atenção – e a cólera – do próprio Malik, que
assassinou o carrasco a sangue frio por sua covardia e decidiu, ele mesmo, exterminar
a vida do jovem príncipe. Insensível à beleza de qualquer coisa que não fosse o
brilho do ouro, ele sacara a cimitarra e se preparava para desfechar o golpe
final. Foi quando o filho, seu único filho, o interrompeu.
Seu nome era Hassan, mas era conhecido em sua terra como Príncipe Negro,
por causa do tom acobreado de sua pele. De fato, Hassan tinha quase a cor do
ferro, ligeiramente avermelhado de ferrugem.
― Pelos Deuses, meu pai, pare! ― disse Hassan.
Malik olhou para o filho, sem entender.
O Príncipe Negro aproximou-se devagar, olhando fixamente para Teodoro,
sujo e derrotado a sua frente.
― Ele é o último de sua linhagem, não devemos matá-lo.
― Está louco? ― Malik perguntou. ― Então quer deixar vivo o único
herdeiro do antigo rei, para que ele queira se vingar de nós depois?
Hassan olhou profundamente para Teodoro. Quase se perdeu no verde
esmeraldino de seus olhos.
― Ele tentará vingar-se se o deixarmos aqui, com os sobreviventes
revoltosos. Se o levarmos conosco, junto aos demais escravos, sob os nossos
olhos jamais será capaz de tamanha ousadia... Para não dizer tolice.
― Não sei...
― Pense, meu pai. Dizem, por aqui, que o príncipe é dádiva de uma deusa.
Se for verdade, ele também é um dos muitos tesouros destas terras... Além
disso, eu não acho que iríamos querer a ira de nenhuma deusa sobre nós,
iríamos?
Malik sobressaltou-se ante a última declaração de Hassan. Numa série de
gestos rápidos, cobriu os lábios, os olhos e os ouvidos com as palmas das duas
mãos, deixando sua cimitarra cair no chão.
― Está decidido ― disse, afinal ― o jovem príncipe irá conosco!
Coloquem-no junto aos demais escravos!
Perto dali, Sofia, dentro de uma carroça cercada por grades finas de
metal, suspirou aliviada.
*******
Nas terras pantanosas governadas por Malik, Sofia e Teodoro foram
dolorosamente separados. A primeira, designada para servir e acompanhar a
esposa do sultão, conseguia pensar apenas na segurança do filho, única parte de
seu mundo que ainda estava de pé. O segundo, cujo coração transbordava de ódio
e ressentimento, fora escolhido para cuidar dos suntuosos jardins do palácio de
Hassan.
Hassan, o Príncipe Negro, vivia sozinho em uma residência próxima ao
palácio de seu pai, centro do governo de toda a região. Ele mesmo havia
requisitado Teodoro para cuidar de seus jardins.
― Espero que saiba o que está fazendo, filho – disse Malik.
Mas não era verdade que Hassan sabia. Ele nem ao menos podia entender
aquela estranha necessidade de manter Teodoro sempre perto de si. Não era uma
atitude sensata, tampouco racional, mas algo absolutamente – e
inexplicavelmente – alheio ao seu próprio temperamento.
Hassan não era nenhum tolo com inclinações humanitárias. Pelo contrário,
era o melhor estrategista de seu pai, de maneira que boa parte do sucesso
daquela empreitada se devia tão somente a ele. Como todos os guerreiros e
generais de sua terra, Hassan sabia que a coisa mais prudente a se fazer ao
conquistar o reino de alguém era matar impiedosamente todos os homens,
especialmente os de linhagem real. Mas quando se tratava de Teodoro, aquele
rapazola que mal acabara de conhecer, por alguma razão ele não tinha forças.
Seria mesmo Teodoro um “presente dos deuses”, como seu nome sugeria?
Seria mesmo uma dádiva de Vênus?
Hassan lembrou-se de ouvir a mãe contar, certa vez, que também havia tido
problemas para dar herdeiros ao sultão. Então um dia, como as mulheres de sua
aldeia costumavam fazer e sua avó lhe aconselhara, ela foi até a praia onde os
mitos contavam que a senhora Astarte havia nascido. Ali, prostrada, ofereceu-lhe
sete lenços coloridos, atados às murtas que misteriosamente floresciam no
local. Naquela praia lendária, a esposa do sultão clamou à Deusa, enquanto
lagrimas vertiam abundantemente de seus olhos. Astarte era o nome de Vênus na
terra de Hassan.
Pouco tempo depois de ter ido àquela praia oferecer lenços e o seu amor à
Deusa, foi-lhe revelado que em seu ventre se engendrava uma criança. Desde este
dia até o fim de sua vida, a esposa do sultão, mãe de Hassan, usaria um
pingente de esmeralda em seu pescoço, como forma de gratidão.
Hassan, afinal, também era um presente de Vênus ou Astarte. E a esmeralda
no colar de sua mãe era verde e brilhante como os olhos de Teodoro, que agora
cuidava das flores em seu jardim.
Hassan saía, todos os dias, sorrateiro, para espiar Teodoro enquanto ele
cuidava das flores. Sentia o coração disparar, a testa suar, mas precisava, nem
ele sabia porquê, ver o sol bater naquela pele, ouvir o tom melodioso daquela voz.
Por fim, não lhe restava escapatória – Hassan precisaria admitir, nem que fosse
apenas para ele mesmo, a irremediável e incontrolável paixão que estava
sentindo por aquele rapaz.
*******
Durante um tempo relativamente longo, tudo em que Teodoro conseguia
pensar era vingança. Tal como o sultão havia previsto, ele pensava em vingar a
morte de seu pai, a escravidão de sua mãe e de si mesmo, a vergonhosa submissão
do reino em que nascera. Por vezes, quando não estava cansado o bastante, não
conseguia dormir, amargando dolorosas horas de agonia e tristeza. Era demais para
ele o peso da realidade de um reino poderoso como havia sido o de seu pai
padecendo de forma tão ultrajante, enquanto seu herdeiro legítimo cuidava das
flores no jardim do próprio algoz.
A amargura exasperada no coração de Teodoro deixava Sofia deveras
preocupada nas raras ocasiões em que podiam se encontrar. Ele falava alto. Ela
se preocupava com quem pudesse ouvir. Ele falava de vingança. Ela queria apenas
que o filho continuasse vivo. Ele falava do direito ao trono. Ela respondia que
nenhum poder era legítimo e que todo trono, um dia, havia sido conquistado pela
força. Até mesmo o trono de seu pai.
Cego como estava, no entanto, Teodoro não lhe dava ouvidos. Parecia imune
a toda forma de convencimento e a única coisa de que não podia se furtar era dissimular
sorrisos ao seu novo amo. Por alguma razão estranha, aliás, o Príncipe Negro
parecia gostar de lhe fazer sorrir.
Naqueles
tempos, Teodoro começou a percebê-lo por entre as moitas dos jardins, tentando
disfarçar sua presença, enquanto, silencioso, o observava em suas obrigações diárias.
Achou ainda mais estranho quando ramalhetes de flores frescas começaram a
aparecer em sua cama. Um dia, voltando de uma campanha comercial no Oriente
Extremo, Hassan atravessou o pátio do palácio a cavalo, desceu diante dele e lhe
entregou um belíssimo frasco repleto de nardo, essência tão maravilhosa quanto
rara, diante de todos os criados.
Um pouco depois disso, Teodoro foi chamado a trocar de função. O Príncipe
não o queria mais cuidando dos jardins e das flores. Suas novas atribuições
seriam nos aposentos reais. Hassan queria Teodoro como seu camareiro pessoal.
Passou a ser responsabilidade de Teodoro o chá que o Príncipe Negro
tomava todas as noites, antes de dormir. Pela manhã, tinha de ajudá-lo a se vestir,
depois servir-lhe o desjejum. Todas as tarefas que o deixavam indesejavelmente
próximo daquele a quem secretamente desejava matar.
Mas como desejar de fato a morte de Hassan? Não havia no mundo criatura
mais terna, ao menos não no trato com Teodoro. Ele era agradável, sorridente, gostava
de conversa antes de pegar no sono e perdia horas desfiando as mais encantadoras
fábulas orientais, com aquela voz grave e modulada. Ao despertar, logo nas
primeiras horas do dia, seu humor era surpreendentemente bom. Costumava contar
piadas antes de sentar-se para comer, depois tomava sua cítara e perdia algum
tempo repetindo canções, parecendo atento para descobrir as mais capazes de
fazer com que Teodoro se sentisse feliz.
Desgraçadamente, ele não fazia de sua presença um fardo. Desgraçadamente
porque isso ia completamente contra os interesses de Teodoro e servia apenas
para deixá-lo tremendamente confuso.
Mais ou menos nessa época, Teodoro começou a notar o Príncipe Negro com
mais atenção. Pela primeira vez, percebeu a suavidade dos traços de seu rosto,
a beleza exótica daquela cor ferruginosa em sua pele, o brilho penetrante de
seus olhos. Hassan era mais belo do que Teodoro poderia ter imaginado, mas,
mais que a beleza, era sua amabilidade irrepreensível que tornava tudo tão
difícil.
Um dia, com o pensamento ainda atormentado por desejos de vingança,
Teodoro, que àquela altura precisava se esforçar para não gostar de seu senhor,
foi surpreendido por uma velha feiticeira no mercado da cidade. Sem nenhuma
razão aparente, a velha que o abordara oferecera-lhe um frasco com extrato de
estricnina, um veneno poderoso e letal. Algumas gotas no chá noturno de Hassan
seriam suficientes para lhe dar a vingança que tanto almejava.
Teodoro levou o frasco de veneno consigo para o palácio. Sua intenção era
servi-lo em pequenas doses, para deixar Hassan doente e levá-lo à uma morte
lenta, sem levantar suspeitas. Assim, ficaria livre para pensar numa maneira de
terminar sua vingança. O próximo passo seria a morte do sultão.
No entanto, ao chegar a hora derradeira, Teodoro deixou-se trair pela
simpatia que Hassan havia conseguido despertar em seu coração. Ele hesitou. E,
como demorasse mais que o habitual para trazer o chá, o Príncipe Negro resolveu
verificar o que estava acontecendo.
Surpreendeu-o parado diante da bandeja de prata com o frasco de
estricnina nas mãos.
― O que é isso? ― disse Hassan, tomando o frasco das mãos de Teodoro.
Ele removeu o delicado tampo de vidro e levou o frasco até o nariz,
examinando o odor do conteúdo. Depois disso, uma expressão de profundo desencanto
apoderou-se de seu rosto. ― Um veneno? Então é isso... Você quer me matar?
― Não me olhe desse jeito! ― disse Teodoro, agora revelando
despudoradamente todo o ressentimento que havia se esforçado em ocultar. ― Não
tem esse direito! Você e seu pai mataram o meu pai! Sem nenhuma compaixão,
destruíram toda a vida que um dia conheci! Meu reino foi feito em pedaços e
fizeram de mim e minha mãe seus escravos! O que você achou que fosse acontecer?
Eu vivo apenas para me vingar!
― Então meu pai esteve certo o tempo todo... Eu devia ter deixado que lhe cortassem a cabeça.
― Sim, devia! Mas não foi o que você fez! Você me manteve vivo para me
humilhar ainda mais!
― É assim que você vê?
― Agora você não tem opção. Eu atentei contra você. Se me deixar vivo,
provavelmente atentarei de novo. Vamos, acabe com isso!
― Não posso...
― O quê?
― Não percebe que te amo?
Houve um silêncio aterrador. As palavras de Hassan haviam atravessado o
peito de Teodoro como flechas.
― Eu te amei desde o dia em que te vi ― Hassan continuou. ― Não me peça
para explicar porque eu mesmo não posso entender. Mas não pude deixar que
tirassem a sua vida naquele dia e não posso fazer isso agora. Prefiro a morte...
E, nesse caso, minha vida é tudo o que tenho para lhe oferecer.
Teodoro arregalou os olhos, sem acreditar no que ouvia.
― Tome ― disse Hassan, estendo a mão com o frasco de veneno. ― Acho que
isto é seu. Se é verdade que minha morte poderá compensar sua dor de alguma
forma, coloque o veneno no chá e leve para mim. Siga com seu plano. Eu tomarei
o que você me servir.
Teodoro pegou o frasco com as mãos trêmulas, os adoráveis lábios
entreabertos.
Hassan lhe deu as costas, preparando-se para voltar aos aposentos reais, quando
se deteve um instante na soleira da porta.
― Tudo o que lhe peço ― acrescentou ― é que tente ver meu sacrifício como
um gesto de amor. Quando eu não estiver mais aqui, faça o que quiser de sua
vida. Fuja. Vá atrás de meu pai, se quiser. Seja livre. Mas seja generoso
comigo em seu coração.
“Seja generoso comigo em seu coração.” Aquelas palavras faziam eco em sua
mente. Teodoro precisou de um tempo para se recuperar.
Quando chegou aos aposentos reais, encontrou Hassan em sua cama, com as
pernas cruzadas, na posição de sempre, esperando o chá. Mas Teodoro não trazia
nenhuma bandeja de prata, com bules e tigelas. Apenas o pequeno frasco de
estricnina numa das mãos.
Ele se sentou na cama, de frente para Hassan. Com as duas mãos,
entregou-lhe o frasco de veneno. O Príncipe Negro sorriu. Não com os lábios,
mas com os olhos.
Delicados raios de luar entravam pela janela escancarada do aposento. Uma
brisa fresca de verão soprava quente do lado de fora, agitando um pouco as
folhas das palmeiras no jardim. Apesar disso, a noite estava silenciosa. Assim
mesmo, eles não ouviram quando o frasco rolou para fora da cama, espatifando-se
ao encontrar o chão.
*******
Naquela noite, tendo a lua e o vento como testemunhas, Teodoro e Hassan
se encontraram na luz dos olhos um do outro. No pulsar acelerado de seus corações,
fluía o próprio ritmo da vida. Se o veneno que a bruxa lhe entregara no mercado
havia servido para matar alguma coisa àquela noite, esta era o ódio de Teodoro
e a barreira que havia entre os dois.
Como não pudessem compreender completamente a natureza irresistível do
sentimento que os unia, ambos os príncipes decidiram manter em segredo aquele
amor. Mas Hassan, sobretudo, não era hábil em guardar segredos como o era na
guerra.
Feliz como estava, ele passou a oferecer presentes a Teodoro com frequência
ainda maior. Não mais os trazia, como antes, mas fazia questão de levar o rapaz
consigo a toda parte.
De fato, os dois andavam sempre juntos. Hassan, falante e orgulhoso como
era, gostava de ensinar a Teodoro tudo o que sabia ou pensava saber. Aquela amizade
não tardou a despertar o interesse e a atenção de todos, principalmente do
sultão.
Malik, infinitamente mais experiente que o filho, preocupou-se com a cena
que se desenhava a sua frente. Ele também não podia ignorar a beleza incomum do
jovem que trouxeram do Ocidente e temia pelo tipo de armadilha que esperava por
Hassan. Mais que depressa, tratou de encontrar uma noiva para o filho ― a jovem
e bela princesa de um reino vizinho.
Hassan, de sua parte, não se furtou de conhecer a moça. Mas seu coração, pelo
que parecia, já estava ocupado.
Malik tentou outra vez. E outra. E outra. E outra. Cada uma mais linda e rica
que a outra. Todas sucessivamente rejeitadas por Hassan.
Não é que ele não se interessasse completamente pela beleza e fortuna das
pretendentes escolhidas por seu pai. É que não podia considerar sequer estar
com outra pessoa que não Teodoro, com sua pele macia e seus olhos de esmeralda.
Acostumara-se com aquele cheiro, aquela cor, aqueles cabelos enrolados. Era um
viciado inconfessável e já não podia viver sem embriagar-se todos os dias da
presença de seu amor.
Dolorosamente desconfiado, o sultão, um dia, ordenou a um espião para que
seguisse o filho, observando-o de longe. Queria ter conhecimento de cada passo
seu. Sem nada saber, Teodoro e Hassan continuaram vivendo como se nada se
passasse.
Quando o espião voltou, trazendo confirmação às suspeitas nefastas do
sultão, a fúria apossou-se dele. Bradou violentamente contra os servos e os
deuses, virou mesas, quebrou louças, esbofeteou o informante, por último mandou
matá-lo. Não apenas por ser o mensageiro de notícia indesejável, mas para que
ninguém, jamais, pudesse descobrir o segredo vergonhoso de seu filho.
Malik não podia aceitar aquilo. Malik não podia aceitar muitas coisas.
Mas ele tinha um plano.
Secretamente, convocou os assassinos mais habilidosos e furtivos do
reino. Eles não precisavam saber o motivo. Se o sultão queria alguém morto,
esse alguém morria. Os dias de Teodoro estavam contados.
*******
Naquela manhã, Teodoro havia ido ao mercado, como de costume, comprar
ervas para o chá noturno de Hassan. No caminho de volta, foi surpreendido pela
velha feiticeira que lhe havia oferecido o frasco de veneno tempos atrás. Ela
apareceu de repente, segurando-o pelo braço quando ele passava na frente de uma
tenda velha e esfarrapada.
― Você? ― disse Teodoro. ― O que você quer, velha? Não quero mais nenhum
veneno. Solte-me!
― A pergunta é: “o que você quer?”, jovem presente de Vênus ― a velha
respondeu.
― Como assim? Do que está falando?
― Você quer viver?
― Sim! É claro que sim!
― Então esta noite, quando estiver com o Príncipe Negro, peça a ele que
troque de roupas com você. Faça isso ou morrerá.
― O quê? Ele jamais faria uma coisa dessas! Você está louca!
― Ah, ele fará qualquer coisa que você pedir, criança! Você sabe bem
disso.
― E por que eu deveria dar-lhe ouvidos? Quem é você, afinal?
― Tudo em seu tempo ― disse a velha, soltando o braço de Teodoro e
voltando para dentro da tenda.
Inconformado, Teodoro irrompeu pela tenda caindo aos pedaços atrás da
velha, mas não havia mais ninguém ali. Ela havia desaparecido.
*******
Quando a noite caiu e Teodoro encontrou Hassan, ele fez como a bruxa lhe
havia aconselhado no mercado àquela manhã. Ainda sem compreender o porquê,
propôs um jogo ao Príncipe Negro. Eles deveriam trocar de papel. Teodoro se
vestiria com as roupas de Hassan e agiria como ele, contando histórias e
tocando a cítara. Hassan, por sua vez, faria a mesma coisa, usando as roupas e
imitando os gestos de Teodoro.
Como a velha bruxa havia previsto, o Príncipe Negro não apenas aceitou a
brincadeira como achou-a divertida, e assim eles fizeram. Trocaram de roupas e,
entre risos e soluços, puseram-se a imitar os gestos e os modos um do outro.
Do lado de fora, enquanto isso, os assassinos do sultão haviam chegado
junto com a lua. Posicionavam-se nos muros do palácio de Hassan, sem que
ninguém soubesse ou pudesse imaginar, prontos para executar sua terrível
missão. Mas havia outra coisa àquela noite. Além das roupas e do gestual
trocados, uma bruma espessa e incomum naquela época do ano baixou sobre o
palácio, tornando a visão difícil e confusa.
Assim, quando Hassan, usando as roupas de Teodoro, aproximou-se da janela
para olhar a névoa espessa do lado de fora, foi atingido bem no peito pela
flecha envenenada de um dos assassinos de seu pai.
Teodoro correu, desesperado, em socorro de Hassan. O sangue começava a
brotar voluptuoso do ferimento.
Tão misteriosamente quanto havia surgido, a névoa do lado de fora começou
a dissipar. Logo os assassinos, horrorizados, puderam ver o que tinham acabado
de fazer ― por engano, mataram o filho do sultão.
Temendo a morte certa, desapareceram e jamais puderam ser encontrados
novamente. Quanto a Malik, que estava em seu palácio perto dali, ele não tardou
a descobrir o que havia acontecido e quase enlouqueceu.
Num rompante de exasperação e agonia, foi direto para a casa de Hassan,
irrompendo feito um vento ensandecido, para encontrar o filho semimorto entre
as pernas de um desconsolado Teodoro.
― Deuses, o que fiz?! ― bradou Malik, tão logo encontrou-os largados no
chão. ― Eu matei meu próprio filho!... Hassan! Hassan! Não morra, pelos Deuses,
eu lhe imploro!
― Agora você clama pelos Deuses? ― ressoou de repente uma voz
desconhecida para Malik, porém conhecida para Teodoro.
Quando eles se voltaram para a porta do aposento, deram com a velha
feiticeira do mercado, amparada em seu cajado de madeira escura.
― Maldição! ― Malik retrucou― Quem é você, que invade a casa de meu filho
neste momento de dor, velha infeliz?
― Meça suas palavras, sultão ― disse a velha, com voz grave e
autoritária. ― Não me reconhece? Talvez em outra forma fique mais fácil.
A velha deu com o cajado no chão e um clarão opalescente espalhou-se pelo
quarto, tão poderoso que cegou a todos, enquanto resvalava por todos os cômodos
do palácio e escapava através de suas janelas. Quando a luz diminuiu e eles voltaram
a ser capazes de enxergar alguma forma, viram ― ou acreditaram ver ―, uma
mulher cuja beleza não se poderia descrever. Ela estava parada de pé exatamente
no mesmo lugar em que antes estava a velha e trajava apenas uma longa túnica
verde, feita de tecido tão suave e etéreo que mais parecia uma mistura e água e
cor.
― Minha Senhora! ― exclamou o sultão, prostrando-se diante dela. Com as
palmas das mãos, ele cobriu os lábios, os olhos e os ouvidos.
― Sua reverência não significa nada ― ela disse, a voz refluindo em ondas
como o próprio mar. ― Eu lhe dei tudo o que há de valioso em sua vida, Malik.
Primeiro o amor de uma mulher honrada e valorosa. Depois um filho, belo e
corajoso, para herdar suas conquistas e continuar sua linhagem. E o que você
fez? Não deu valor a nada disso. Você trocou o amor pela ganância. Ganância de
riquezas, ganância de poder, ganância de controle. Sobre a ganância dos homens
eu não tenho nenhum poder. Pois veja aonde ela lhe trouxe.
― Eu imploro o seu perdão! Leve a mim, se desejar, mas, por favor, poupe
a vida de meu filho!
A Senhora voltou-se piedosamente para Teodoro, sentado no chão com Hassan
caído em seu colo. Sorriu. Ele sorriu de volta. Ela se maravilhou reconhecendo
o brilho de sua própria graça no sorriso do rapaz.
― Eu não quero a sua vida, sultão ― ela disse, voltando-se outra vez para
Malik ― Mas a generosidade de seu gesto me enternece. Daria mesmo a sua vida
pela de Hassan?
Ele levantou os olhos para ela um instante.
― Sim! Eu daria minha vida miserável pela dele! Faço qualquer coisa, mas
me poupe da desgraça de perdê-lo!
― Pois bem... Eu abençôo o amor, sultão. Como quer que ele se manifeste.
Nunca mais coloque-se no meu caminho!
― Eu lhe dou a minha palavra!
Novamente, um clarão poderoso inundou o aposento, ofuscando a todos, para
depois mergulhar o palácio inteiro na calidez de sua luz. Quando a claridade
começou a dissipar, Malik e Teodoro conseguiram discernir um suave e adocicado
perfume de rosas no ar. No colo de Teodoro, Hassan, miraculosamente sem a
flecha ou ferimento em seu peito, abriu os olhos, tossindo como quem acabasse
de acordar.
― O que aconteceu? ― ele quis saber.
Mas Teodoro e Malik ainda não eram capazes de falar. Eles apenas se olhavam,
na misteriosa consciência de estar unidos, agora e para sempre, por aquele amor
tão improvável quanto incondicional. A verdadeira dádiva de Vênus.
No fim daquele verão, houve uma grande festa no reino. Não chegou a ser
um casamento de fato, pois ninguém sabia, ainda, como celebrar o casamento de
dois príncipes. Eles festejavam simplesmente ao amor, à suas aventuras e
desencontros e à graça e beleza indizíveis que apenas ele era capaz de dar à
vida.
Malik devolveu o reino de Joel a Teodoro, que voltou para lá na condição
de soberano, levando consigo Sofia e Hassan – suas causas de viver acima de
todas as outras.
Em pouco tempo, o reino voltou a prosperar. Agora, com a ajuda de Hassan,
ainda mais do que havia prosperado nos tempos de Joel. Teodoro e Hassan
governaram, assim, amados pelo povo e pelos Deuses, mas, principalmente, um
pelo outro. E assim eles viveram felizes para sempre. Algumas vezes sorrindo, outras
vezes chorando... Porque, afinal de contas, nenhuma história de amor conhece realmente
um final.
FIM