Do
Castelo Ichime até Renga Murai, onde Akodo Sakurajima vivia desde o
dia em que nasceu, não era tão distante. Pouco mais de um dia de
viagem. Na volta para casa, ele havia rejeitado o palanquin. Iria a
cavalo. E iria devagar. Isso lhe daria tempo para pensar.
Aquele
estava sendo um ano movimentado. Ao menos para ele, acostumado à
rotina repetitiva
dos tempos da Escola Akodo. Agora compreendia algo melhor a coisa em
que seu professor lhe havia enfiado, embora estivesse longe de
entender o que viu naquela noite que insiste em querer escapar-lhe da
memória – apertou o pequeno maço
de folhas de arroz escondido
sob seu obi.
Depois
veio o Campeonato de Topázio, na Escola Kakita, há cerca de um ano.
O assassinato de Ichiro Akitomo, senhor de um clã menor, de quem
ele jamais ouvira falar. É de se espantar que uma enxurrada tão
avassaladora de emoções e acontecimentos tenha se seguido a este
fato simples: o assassinato covarde e desonroso de um daimyo dentro
da mais célebre escolas da Garça, na presença das figuras mais
ilustres da corte e do próprio imperador.
A
pequena samurai do Unicórnio, Otaku Shiko, estava no lugar errado e
na hora errada. Acusou publicamente dois bushis do Escorpião, depois
de ter visto um deles limpar o fio da katana ensanguentada. A
tradição de decidir a verdade no corte da lâmina foi evocada. A
honrada Shiko-san desafiada para um duelo, que, é claro, não tinha
condições de vencer.
E
foi precisamente neste ponto que tudo começou a mudar, não foi? Ele
olhou para a pequena – mas enorme – samurai do Unicórnio. Ali,
diante de todos, ingenuamente falando a verdade. E ela morreria por
isso. Seu assassino, possivelmente o assassino de outros homens
inocentes, veria a própria honra fortalecida diante de todos no
final. E Shiko, de justo coração e alma nobre, uma desonrada e
mentirosa.
A
morte de Bayushi Sugai não lhe pesava nem um pouco a consciência.
Não havia derramado sangue antes, mas estava feliz que sua primeira
morte tivesse sido a dele. Com apenas
um movimento, havia conseguido preservar a honra de alguém que
realmente tinha honra
e livrar a face do mundo de um entre tantos vermes. Mas esse
movimento acabou por tornar-se um entre seus muitos segredos. Deu-lhe
a valorosa amizade de Shinjo Temudjin, é verdade, mas custou a vida
do imprudente Mirumoto Oroshi e da desafortunada Asahina Suzuku –
cujo irmão acabara de conhecer, mas para quem nada podia revelar.
Neste
momento, lembrou-se dos olhos dela. Não os de Suzuku. Aqueles lindos
olhos negros, brilhantes de veneno, atrás da máscara de borboleta –
um suspiro. Foi inevitável. Seria tão infame quanto ele achava que
era desejar assim, ardentemente, a provável responsável pelo
assassinato de Oroshi-san? Como era possível sentir, ao mesmo tempo,
atração e repulsa pela mesma pessoa?
Estava,
desta forma, perdido em pensamentos, em seus intermináveis dilemas,
de maneira que, quando deu por si, já estava diante de Shiro no
Shinin, o castelo de sua família. Um criado dos estábulos já se
aproximava para recolher a montaria e alimentar o animal.
Ele
desceu do cavalo, acenou com a cabeça para o rapaz, que curvou-se
reverentemente. Depois disso, sem dizer palavra alguma, seguiu para
seus próprios aposentos. Uma serva, um pouco histérica,
interpelou-o no meio do caminho:
—
Sakurajima-sama! O senhor está de volta! Vou mandar avisar
Akodo-sama! Quer que mande lhe preparar um banho?
—
Não!
Uma
vez em seu quarto, fechou a porta, tirou o haori, sacou o pequeno
volume
de folhas de arroz de
baixo do obi e procurou pelo
vasilhame
de sumi
com o
pincel.
Precisava escrever a experiência no castelo Ichime antes que ela
desaparecesse da
lembrança.
Seu
pai, que estava ocupado em uma das muitas campanhas militares, havia
lhe enviado ao castelo naquele verão quando chegou a notícia da
morte de seu velho amigo e companheiro de batalhas, Akodo Maouri, em
circunstâncias misteriosas. A ordem do pai acabou por resultar em
uma investigação curiosa e instigante, rica em detalhes
inescapáveis, como símbolos há muito esquecidos, maldições,
amores proibidos e venenos desconhecidos. Mas a memória humana –
ele havia aprendido com sua mãe – era frágil e efêmera como a
própria vida. Tudo o que dá sentido à vida são as histórias que
ela conta e é preciso escrevê-las, porque a vida de alguém dura
tanto tempo quanto dura
a
sua história.
Ele
estava iniciando o registro dos últimos dias, com seu mirabolante
desfecho, quando o som da porta de seu quarto deslizando para a
frente e para trás anunciou a presença de alguém. Ele se virou
para olhar. Era um dos yojimbos de sua mãe.
—
Sakurajima-sama, Makoto-sama foi avisada de seu regresso e exige que
você vá imediatamente ao quarto dela.
Ele
pousou o
pincel
de volta no sumi,
mas tomou o cuidado de enrolar
os papéis
e guardá-los
novamente
sob o obi. Porque ali havia informações perigosas demais para que
fosse seguro distanciar-se delas, até mesmo em
sua própria casa.
O
yojimbo, com cara de poucos amigos, escoltou-o até os aposentos de
sua mãe. Sakurajima fitava a expressão do samurai com o canto dos
olhos, e precisou conter uma risada ao imaginar a mente do homem
conjecturando Makoto-sama ordenando ao próprio filho que cometesse
seppuku.
Ele
abriu a porta e, com o rosto quase colado no chão, anunciou o jovem
senhor, que aguardava do lado de fora. Uma voz suave, quase cantada,
ininteligível, ressoou. E o yojimbo, colocando-se ao lado da porta,
abriu caminho para Sakurajima passar.
—
É só, Kazuo – ela disse, agora perfeitamente compreensível. Pode
ir agora.
—
Hai!
Sakurajima
ficou ali parado, do lado de dentro do aposento. Ele apenas ouviu o
som da porta se fechando atrás de si.
De
pé diante da grande sacada que dava para os jardins de cerejeiras
do
lado de fora, ela trançava os cabelos, negros e lisos como um véu
de seda. Vestia um kimono amarelo muito claro, estampado com
imaculadas orquídeas brancas. Sua silhueta, assim, contra a luz do
dia, parecia uma pintura. O quarto todo cheirava a jasmin.
Ela
se virou. Olhava para ele altiva, o rosto sério. Ele devolvia o
olhar, de baixo, o pescoço ligeiramente inclinado. Foi quando notou
um brilho prateado junto às têmporas de sua mãe. Seus cabelos não
eram mais tão negros, afinal. Estavam embranquecendo. Mas ela, de
maneira nenhuma, aparentava outros sinais da idade.
Ficaram
se olhando assim por algum tempo. Os pássaros piavam lá fora, mas,
ali dentro, tudo estava silencioso. Uma ligeira tensão no ar. Então,
praticamente ao mesmo tempo, seus lábios desenharam um sorriso. Um
sorriso que foi se abrindo até não ter nenhum pudor.
—
Saku-kun – ela disse –, seu moleque levado! Como você pode
simplesmente chegar e não vir na mesma hora abraçar e beijar sua
pobre mãe?! Quer que ela morra de saudade, filho
ingrato?
Eles
se abraçaram e ela o encheu de beijos em todas as partes do rosto.
—
É claro que eu viria, mãe. Assim que terminasse de fazer as últimas
anotações sobre o estranho caso de Maouri-sama.
Ele
sabia a
maneira certa de
agradá-la.
—
Ah, sim! Quero que você me conte tudo sobre isso! Imagine que
conheci Maouri-sama pessoalmente. Cá entre nós, o achava mais
bonito que seu pai na juventude – uma risadinha faceira. Coisa
terrível o que aconteceu com ele! Os rumores sobre a tal maldição
estavam certos?
—
Não. Mas tudo foi feito para parecer que sim. Imagine que a estranha
marca encontrada no peito de Bakusho-sama, pai de Maouri-sama, era
apenas o símbolo da irmandade a que ele pertenceu quando treinou na
escola Akodo. Gerou todo aquele burburinho porque ninguém conhecia o
seu significado, nem mesmo Maouri-sama. O assassino aproveitou o mito
que se formou em torno da marca para fazer parecer que Maouri-sama
havia sido vítima da mesma maldição que vitimara
seu
pai.
Ela
fez uma expressão de espanto que mais parecia encenação de kabuki.
—
Agora, a melhor parte – ele prosseguiu – o assassino não matou
Lord Maouri com suas próprias mãos. Maouri-sama amava uma gueixa,
de
nome
Amai. Com ela teve um filho bastardo e permitiu que eles vivessem
no
castelo. O assassino chantageou Amai. Não sei de que modo, mas ele
se infiltrou no castelo disfarçado como o karo
de Maouri-sama, Matsu Nari. E ameaçou matar o filho de Amai se ela
não fizesse o que ele mandava. Então, todas as noites, a gueixa
usava a intimidade que tinha com Lord Maouri para pintar aquele mesmo
símbolo em seu peito. O que ela não sabia, porque não tinha como
saber, era que a tinta havia sido preparada com um veneno que a pele
absorve. Hakenka-sama, filho de Lord Maouri, seria a próxima vítima.
Ele
não falou sobre o ataque das criaturas invisíveis, que sumiram tão
rapidamente quanto surgiram. Também não mencionou o homem vestido
de branco, escalando a parede de pedra atrás dos aposentos de
Maouri-sama. Isso apenas ele viu.
—
Que história, Saku-kun – disse Makoto-sama, acariciando o rosto do
filho. Um dia, a história de suas aventuras inspirará as crianças,
como as histórias de nossos ancestrais inspiraram você!
“É
uma pena que boa parte delas nunca poderão ser ditas a ninguém...”,
ele
respondeu em pensamento.
Pouco
tempo depois, ela estava sentada na quina de sua cama. Segurava um
cacho de uvas numa mão. Com
a outra, acariciava os
cabelos
negros
de Sakurajima, deitado sobre
suas coxas.
—
Eu já lhe contei como escolhi o seu nome? – Makoto-sama perguntou.
—
Não.
Mentira.
Ela riu.
—
Você é um mentiroso. Deve ter puxado ao seu pai.
Agora
foi a vez dele rir.
—
Eu gosto de ouvir você contar – ele disse.
Agora
era verdade. Ela respirou fundo.
—
Quando eu tinha a sua idade, meu pai foi convocado por nosso daimyo
para acompanhar uma missão diplomática nas montanhas da Fênix. Eu
insisti que queria conhecer as terras da Fênix e consegui
convencê-lo a me levar junto. Foi quando conheci seu pai – uma
risadinha. E naquelas montanhas, você sabe, existe um vulcão. É um
vulcão terrível, que, segundo ouvi de um shuguenja
chamado Shiba Hayato, está em atividade desde a queda dos kamis.
Em uma ocasião, seus rios de lava quente se espalharam por toda a
região, alcançando uma vila que ficava relativamente distante. A
vila foi inteiramente destruída e muitas pessoas morreram.
Sakurajima
franziu a testa.
—
Essa parte você nunca havia
me contado.
Por que me deu o nome de um vulcão que já causou tanta desgraça?
Ela
sorriu levemente com o canto dos lábios.
—
Foi por causa do seu pai. Quando você nasceu e eu pude olhar em seus
olhos, era como se estivesse olhando os olhos dele. E eu soube,
naquele momento, que você seria como ele é. Forte, impetuoso,
devastador. Sempre procurando a guerra. Mas Sakurajima é um vulcão
diferente. A lava que ele jorra é especial, como quase todas as
coisas naquelas montanhas. Ela destrói quando quente, mas abençoa
quando fria. E é por causa disso que em sua encosta há um lago de
beleza estonteante, ao redor do qual frutifica uma floresta de
cerejeiras,
como estas
em
nosso jardim.
—
Monte da flor de cerejeira
– ele murmurou com os olhos arregalados, como se estivesse tentando
assimilar o que acabara de ouvir.
Som
de passos pesados no corredor, do lado de fora.
Sakurajima,
instintivamente, levantou do colo da mãe e prostrou-se no chão,
ajoelhado diante da porta, que abriu-se segundos depois sem nenhuma
cerimônia.
—
Aqui está você – disse o homem alto, forte, de expressão dura e
voz anasalada do outro lado.
—
Imazu-sama! – disse Sakurajima.
—
Como foi no castelo Ichime? Bem, eu imagino...
—
Sim. O senhor quer ouvir meu
relato agora?
—
Não. Não temos tempo para isso, Akodo-san. Enquanto você estava
fora, os exércitos da Garça invadiram e sitiaram Toshi Ranbo. A
guerra começou. Arrume suas coisas. Estamos indo para Shiro Akodo.
E
sem dizer mais nada, Imazu virou-se e saiu.
Sakurajima
voltou-se para a mãe. O olhar confuso.
—
Tem acontecido muita coisa por aqui, Saku-kun. Nosso clã não vive
seus melhores dias – ela disse. Akodo Daio caiu doente e
Toturi-sama voltou do mosteiro para cuidar do pai. Ninguém pode
dizer quanto tempo o daimyo
ainda viverá
e você pode imaginar a situação entre Toturi e Arasou-sama.
Akodo
Toturi, três anos mais velho que o irmão, Arasou, seria, pela
tradição, o sucessor por direito de Matsu Daio, o daimyo
do Leão. Mas Toturi havia desapontado o pai desde a infância por
mostrar, sem pudores, sua preferência pelos livros em lugar da
espada. Arasou-sama, no entanto, ao contrário do irmão, parecia ter
saído ao sangue ensandecido das Matsu. Era um guerreiro destemido e
sanguinário. Há algum tempo, ele liderara uma campanha vitoriosa
contra o Unicórnio e foi aclamado sucessor do daimyo
por causa disso. Toturi-sama, como sempre, estava fora das terras do
Leão, estudando numa das muitas escolas do Império.
Sakurajima
havia crescido admirando Toturi por sua inteligência e sagacidade.
Em grande parte, é verdade, por influência de Makoto-sama, já que
o viu pessoalmente pouquíssimas vezes. Mas um Leão honrado não tem
outra opção a não ser já nascer segurando uma espada. Em grande
parte, é verdade, graças à eterna rivalidade
com
os Matsu.
Akodo-kami
era, certamente, um guerreiro temível, mas um homem inteligente. Ele
criou o próprio conceito de samurai e reuniu consigo pessoas tão
diferentes que chegavam a ser inconciliáveis, mas que eram, em si
mesmas, verdadeiras expressões de virtudes especiais. Matsu, a
guerreira que não conhecia o medo. E Ikoma, o ancião falastrão que
lhe ensinara que o caminho para a vitória nem sempre era a força.
Hantei-kami sabia disso, não sabia?
Mas
Matsu, desde o início, mostrara mais que simples atração pelo
calor da batalha. Ou você acha que foi para salvar a vida do filho
de Ikoma que ela tomou o seu lugar no Dia do Trovão?
A
descendência dela não tem feito diferente desde então. Miram o
poder, mas querem tomá-lo pela força. Sua impetuosidade, ao longo
dos tempos, acabou por dar aos samurais do Leão um sentido diferente
daquele imaginado por Akodo Caolho. Tanto que até mesmo Imazu-sama
apoiava Arasou na sucessão do clã.
Toturi
é bom. Ele tem Kage-sama. Mas está muito sozinho.
Sakurajima,
assim, obedeceu à ordem de seu pai. Deu um beijo em Makoto-sama,
rearrumou a sacola de viagem e seguiu caminho para Shiro Akodo.
Tsuko-sama,
a herdeira na linhagem de sucessão dos Matsu também estava lá. Ele
olhava para ela, o porte imponente, a expressão num misto de desdém
e fúria. Uma leoa honrada. Orgulhosa de sua própria força. O
desprezo por Toturi visivelmente escapando por sua pele.
Sakurajima
não pôde furtar-se de lembrar as palavras do velho Ikoma a Akodo
Caolho, que Makoto-sama lhe havia repetido muitos anos atrás: “honra
é uma palavra bonita, mas não vai salvar a sua vida.”
E, no fim, o espelho de Hantei derrotou o braço forte de Akodo.
Ele
apenas perguntava a si mesmo – quem segurará o espelho diante do
Leão agora?