A guerra finalmente acabara. Toshi Ranbo estava
novamente sob o domínio do Leão e uma promissora aliança com os unicórnios
desenhava-se no horizonte. A presença da cavalaria Otaku no campo de batalha
era a prova disso. Os planos de Sakurajima, apesar de todos os dissabores,
tinham sido bem sucedidos, afinal.
Agora ele estava exausto. Não apenas em corpo, mas
também em alma e, principalmente, em espírito. Ali, diante daquela pira que
incinerava os restos do yoriki de
Shuto, sumariamente executado por sua adaga de cristal, ele se questionava
silenciosamente sobre os motivos de tudo aquilo. Os acontecimentos em Kyuden
Tonbo tinham mesmo mexido com alguma coisa dentro dele.
Sempre considerou que seu clã era governado por
estúpidos de alma vazia, severamente inclinados a confundir sangrenta ambição
com glória e deliberada impiedade com honra, mas jamais preocupara-se realmente
com seus destinos políticos. Talvez fosse o potencial que viu em Toturi,
naquela ocasião em Oiko, quando tomou a cidade da Garça usando apenas
diplomacia, de tornar-se um líder verdadeiramente sábio e digno, aliado a
péssima fama do Leão perante os outros clãs, que pode constatar nas terras de
Tonbo Toryu. Ele sabia que o Leão se considerava a mão direita do Imperador,
mas estava errado. Garça e Escorpião equilibravam a balança de poder, enquanto
os leões, eternamente obcecados com a guerra, tornaram-se apenas um incômodo
eventual, politicamente irrelevante.
Mas também podia ser que estivesse procurando algo
em que se concentrar para esquecer os horrores que conheceu naquela caverna nas
montanhas, em uma noite sem estrelas e sem luar... Um horror que nos momentos
finais da guerra havia voltado para lhe assombrar, na figura daquele corpo que
queimava a sua frente.
— Desobediência é uma falta grave – sussurrou-lhe de
repente Toturi, que não havia percebido se aproximar. — Mas o que pode
compensar a desobediência?
— Eu não sei, meu senhor – ele disse.
— Pensei que você diria lealdade... Mas eu estava
pensando em algo que preciso ter ao meu lado – inteligência.
Nesse ponto, Sakurajima havia servido Toturi como o
velho Ikoma servira a Akodo-kami. Mas ao invés de ganhar o direito de fundar
uma família com seu nome, ganhou a vergonha de perder um posto conferido em um
momento de crise às vésperas da guerra, diante de um exército que não foi
informado de motivo nenhum.
Bem, Toturi certamente não era Akodo-caolho. E
quando os homens não sabem os motivos, eles criam motivos para si. Talvez agora
estivessem pensando em sua antiga fama de depravado, frequentador de casas de
chá. Fosse como fosse, os camponeses que Shuto pretendia usar como escudo
humano estavam agora salvos e a guerra terminou com poucas baixas nas fileiras
do Leão. Isso era suficiente para valer o preço que custou.
Sakurajima dirigiu-se aos seus amigos, aqueles
nobres samurai sem os quais nada
teria sido possível. A admirável dama da batalha, Shinjo Azumi, habilidosa na
guerra das espadas e também na das palavras. Kitsuke Amanuma, com sua
perspicácia infalível. O enigmático Asako Kamui, e sua intrigante conjunção de
frieza e sensibilidade. Principalmente, Matsu Miyako, de alma pura e lealdade
férrea, e o nobre Mirumoto Heihachi, sempre tão ponderado embora um guerreiro
verdadeiramente temível. “Eu sou profundamente grato pela oportunidade de lutar
ao lado de vocês. Saibam que a qualquer hora, em qualquer dia, sob qualquer
circunstância, se precisarem de mim, eu vou estar lá.”
Em breve, todos se veriam novamente nas terras de
Miyako-san, onde um mal relativo à Sombra espreitava e eles se comprometeram a
ajudar. Naquele momento, tudo de que Sakurajima precisava era do castelo de sua
família, em Renga Murai. Ao amanhecer do dia seguinte, reuniu os homens que seu
pai lhe enviara e seguiu caminho de volta para casa.
***
Devia ser bem
tarde quando ele acordou ouvindo um som incômodo, um estranho pulsar. Sem
pensar, pegou a adaga de cristal, que repousava em baixo do seu travesseiro, e
apontou para o ar. Num dos cantos do aposento, entre a parede de pedra e um
velho baú de madeira, uma luz intermitente piscava dentro de sua sacola de
viagem. A Lágrima do Oni.
Ele se levantou, pegou um monte de roupas sujas que
havia trazido do cerco em Toshi Ranbo e jogou em cima da sacola. “Em algum
momento... Mas não agora.”
Voltou para a cama. Guardou a adaga outra vez
debaixo do travesseiro e deitou. Viu o maço de pergaminhos enrolados ao seu
lado. Levaria algum tempo para terminar de registrar toda aquela história.
Dormiu pensando no momento em que entregou seu diário nas mãos de Miyako-san,
pedindo a ela que o queimasse caso não o visse outra vez. Queimasse sem ler.
Nunca antes estivera tão perto de revelar todos os seus segredos a alguém. E as
Fortunas sabem que, no caso dele, “todos os segredos” significava realmente
muita coisa.
***
A luz de Amaterasu resplandecia nos céus, quando
Makoto-sama postou-se à sua porta. “Sa-kun, está vestido?”
— Faria diferença? – ele disse, enquanto escondia o
maço de pergaminhos atrás da cama.
Ela entrou com um sorriso terno nos lábios e uma
tijela de arroz nas mãos.
— É bom estarmos em casa outra vez. Trouxe seu asagohan.
Makoto
deixou a tigela na beirada da cama e se sentou. Sakurajima tomou a tigela nas
mãos e agradeceu. “Arigatou”. Mas
ficou ali, sobre a cama, com a tigela nas mãos, sem comer.
— Você está bem, Sa-kun?
— Não de verdade.
— Não importa o que aconteceu entre você e Toturi.
Eu estou orgulhosa. Não achei que se importasse com os assuntos políticos do clã,
você nunca pareceu propenso a se envolver com nada que seu pai não lhe obrigasse
a fazer. E, no entanto, voltou de Kyuden Tonbo preocupado com a guerra,
apoiando Toturi abertamente, mesmo a contragosto de seu pai. Não sei o que
mudou, mas sei que você teve grande responsabilidade nessa vitória. Como sua
mãe, eu me sinto honrada.
— Eu nunca me importei com Toshi Ranbo. Isto nunca
foi sobre aquela cidade.
— Então me conte, Sa-kun, quais eram suas
verdadeiras intenções?
— Não é segredo para você o motivo de nunca ter me
importado com a política de nosso clã. Temos sido liderados por homens que só
se realizam na guerra, como se este fosse o único propósito de nossas
existências. Como o Caranguejo segura os monstros das Terras Sombrias na Muralha,
nós mesmos nos tornamos o nosso pior inimigo. Se é verdade que somos o braço
direito do Imperador, este braço enlouqueceu e passou a atacar
indiscriminadamente o resto do corpo. Nós nos tornamos politicamente uma piada.
A Garça e o Escorpião comandam o verdadeiro jogo de poder, isso ficou claro
para mim em Kyuden Tonbo. Toshi Ranbo, então, era apenas um símbolo da nossa
volta ao jogo. De que podemos fazer melhor. E depositei em Toturi minhas esperanças
para que isso possa se tornar realidade.
— Mesmo que ele próprio duvide tanto de si mesmo?
— Eu o entendo. Ele passou a vida inteira ouvindo
que não era bom o bastante. Eu sei o que isso faz com a alma de um homem. Mas
vi o que ele fez em Oiko, antes do último inverno. Não há melhores mãos para
guardar o nosso destino.
— Vejo tanta admiração em suas palavras... O que
houve entre vocês?
Sakurajima levantou e foi até a janela, de onde
podia ver os pessegueiros no jardim lá embaixo.
— Eu toquei meu próprio limite quando Shuto ameaçou
as vidas daqueles heimins. Esta é
minha fraqueza. Acho estúpida a noção de dever aplicada a quem a vida mal deu a
oportunidade de tentar compreendê-la. Não suportaria me sentir responsável pela
morte de tantos inocentes, sacrificados num jogo sujo de interesses entre clãs.
— Então aquilo com os camponeses... Foi iniciativa
sua?
— Hai...
Contra as ordens de Toturi-sama.
— Meu filho, muitos homens têm motivos para se
envergonhar de suas fraquezas. Poucos têm motivos para se orgulhar delas.
Satisfeita por finalmente haver compreendido o
mistério, Makoto levantou-se e já se preparava para deixar o aposento, quando
voltou-se outra vez para o filho, ainda apoiado na janela.
— Ah! Eu já ia me esquecendo... Imazo-sama gostaria
de falar com você. Ele me pediu para avisá-lo assim que estivesse de pé.
Sakurajima sentiu um calafrio percorrer sua espinha
ao ouvir as últimas palavras de sua mãe. Durante toda aquela temporada, havia
evitado seu pai. Viu-o pela última vez no conselho de guerra, em Oiko, quando
Toturi nomeara-o karo, mas não trocaram nenhuma palavra então. A recepção de
Makoto fora, como sempre, acolhedora. O que poderia esperar de Akodo Imazu?
— Sakurajima-san está aqui para vê-lo, meu senhor –
anunciou o karo de seu pai.
— Faça-o entrar – disse Imazu lá de dentro. A voz
rouca e grave, austera como sempre.
— Akodo-sama pediu para me ver? – disse Sakurajima,
prostando-se de joelhos diante do pai, com tanta reverência – senão mais –
quanto prostava-se diante de Toturi.
— Sim. As histórias de suas façanhas já chegaram até
aqui. Não tomei parte na guerra, mas soube que você foi o primeiro a entrar na
fortaleza de Shuto. Ainda assim, trouxe de volta todos os meus homens vivos...
Como conseguiu isso?
— Eu ainda não lhe agradeci por ter enviado uma
legião sob o meu comando, Akodo-sama. Domo arigatou gozaimasu.
— Agradecer? Acha que eu deixaria aquele fracote
humilhar nossa família, colocando meu filho junto a uma tropa de soldados
rasos? Depois de tudo o que você fez por ele?
Sakurajima ergueu um pouco a cabeça, surpreso com a
atitude de Imazu. Seu pai estava mesmo lhe defendendo? Não. É claro que não.
Estava preocupado com a honra da família, ele concluiu segundos depois. Mas
quando ergueu a cabeça para seu pai, percebeu que ao lado dele estava sentado
um rapaz. Seria Daisuke? Como havia crescido! Há muito tempo não via seu irmão
caçula.
— Espero que isso tenha lhe ensinado algo sobre a
natureza de Toturi – Imazu completou.
— Akodo Toturi-sama deve ter tido seus motivos,
Akodo-sama.
— Não ouse defendê-lo. Essa atitude me ofende. Você
não o conhece como eu. Sei que me acha estúpido, musuko-san. Toturi deve ser um erudito para você. Mas seria
estúpido da sua parte, depois de tudo o que viveu, ignorar que a arte da guerra
tem sua própria sabedoria. E se Toturi é hoje um erudito, é porque sempre foi inapto
para a espada. Não é como se tivesse sido escolhido pelas Fortunas para o
caminho das letras, isso foi tudo o que lhe restou. Eu sei. Estive ao lado de
Matsu Daio desde o início. Eu os vi crescer, ele e Arasou. É lamentável que
Arasou tenha permitido que seus sentimentos por Tsuko obscurecessem seu
raciocínio. Eu acreditava que daria um bom daimyo,
mas um samurai não deve permitir, jamais, que coisa alguma se coloque entre ele
e o cumprimento do seu dever.
— Acha que foi isso o que aconteceu? Arasou
distraiu-se por paixão?
— Sabe quantas vezes eu lutei ao lado dele? Arasou
era um homem inteligente, como todo Akodo. Acha que eu me importo com o
sobrenome que usa quem governa este clã? Ele poderia se casar com Tsuko e
tornar-se Matsu, se isso servisse para manter a união de nosso clã. Aquelas
mulheres são cegas de orgulho. Ótimas guerreiras, mas não enxergam nada além da
própria glória. Arasou permaneceria sendo Akodo em sua alma. Ninguém pode fugir
de sua formação. Mas ele se deixou cegar pela paixão, caso contrário não teria
atacado a cidade de maneira tão impulsiva e irresponsável.
Imazo obviamente não conhecia todos os detalhes
daquela situação. Arasou havia sido traído. Bayushi Sozui infiltrara-se no acampamento
Leão, levando todas as informações do ataque para Shuto. Mas, Sakurajima não
podia negar, seu pai tinha certa razão.
— Fico surpreso com sua opinião a respeito das Matsu
– disse Sakurajima. — Achei que julgaria Tsuko mais adequada que Toturi para o
comando do clã.
— Se fosse menos arrogante e desse ouvidos ao seu
pai, saberia que não. Eu jamais apoiaria Tsuko ou sua mãe. Toturi,
infelizmente, é nossa única opção. Pelo menos por enquanto. Mas me preocupa que
rumos dará ao clã, agora que você não está com ele...
A última declaração de Imazo quase fez Sakurajima
perder o equilíbrio.
— Acha que sou tão capaz assim?
— Você me surpreendeu, musuko-san. Estou orgulhoso do que fez em Toshi Ranbo. Vejo que
finalmente está seguindo pelos caminhos que eu sempre quis que você seguisse.
Toturi pode ter lhe destituído da posição de karo, mas os homens comentam entre si que todos sabem quem foi o
verdadeiro responsável pela nossa vitória. Diga, trazer os unicórnios foi mesmo
ideia sua?
— Fo-Foi – ele gaguejou. — Desenvolvi um grande
apreço pelos unicórnios durante o Torneio de Topázio. Além disso, o Imperador havia
incumbido nosso clã de ensinar ao Unicórnio as tradições de Rokugan... E, bem,
a guerra é uma de nossas tradições mais importantes.
—
Daisuke-san, veja bem seu irmão. Isso é ser Akodo.
— Sakurajima-senpai – disse Daisuke, fazendo uma
profunda reverência ao irmão.
— Está dispensado, musuko-san.
Sakurajima fez uma profunda reverência ao pai e já
se preparava para sair, quando se deteve a meio caminho entre Imazu e o lado de
fora do aposento.
— Eu poderia lhe fazer um pedido, Akodo-sama?
— Sim.
— Poderia me treinar nas técnicas da escola Akodo?
— Achei que voltaria para Shiro sano Ken Hayai o
mais rápido possível. Você nunca passa muito tempo nesta casa.
— Acho que já tive o suficiente das lições de
Kage-sensei... Agora eu gostaria de aprender com você.
Imazu encarava-o do tatame, a expressão, como
sempre, indecifrável.
— Esteja aqui amanhã, na hora de Amaterasu.
No aposento ao lado, separado daquele por finíssima
parede de papel de arroz, com um chawan
de chá nas mãos, Makoto sorriu.
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