Conhecida genericamente como a
“padroeira do povo cigano” ou “a santa dos ciganos”, é quase impossível falar
dos rhomá hoje em dia sem mencionar Santa Sara Kali.
Completamente desconhecida no
Brasil até meados dos anos 90 (exceto pelos poucos que haviam lido Tradições
Ocultas dos Ciganos, de Pierre Derlon, cuja primeira edição brasileira foi
publicada em 1977, pela Livraria Bertrand), a santa foi popularizada pela
novela Explode Coração (Rede Globo, 1995-1996). A partir daí, tornou-se um
ícone, uma espécie de fetiche cultural, onipresente nas festas temáticas,
autoproclamadas ciganas, e nos altares domésticos daqueles que se devotam às
entidades espirituais ciganas.
Mas o que há de verdade nisso?
Quem é, ou foi, Santa Sara? Ela é realmente a padroeira dos rhomá?
Vamos começar pela última
pergunta, que tem a resposta mais imediata – quem visitar a pequena cidade
francesa de Saintes-Maries-de-la-Mer,
na Camargue, poderá ler, na última frase da plaquinha do lado de fora da igreja
das Santas Maria Salomé e Maria Jacobé, a seguinte inscrição: dans la crypte: statue de Sainte Sara
patronne des gitans, “dentro da cripta: estátua de Santa Sara, padroeira
dos ciganos”. No entanto, melhor seria dizer que Sara é UMA padroeira dos
rhomá; daqueles que se alinham, de alguma maneira, com as crenças católicas, é
claro.
Por que dizemos UMA padroeira,
com tanta ênfase no UMA? Porque Santa Sara é aquilo que chamamos aqui no Brasil
de “santa de culto local”. É como a Nhá Chica ou Santa Anastácia, que contam
com grande número de devotos em determinada região, mas não foram canonizadas,
ou seja, não foram oficialmente reconhecidas pela Igreja Católica, e não são
muito conhecidas fora daquela região.
É claro que o reconhecimento do
Vaticano não é algo imprescindível para os devotos de qualquer santo, muito
menos para os devotos rhomá, que, como já dissemos, não têm muita consideração
pelas autoridades religiosas dos gadjé. O fato, entretanto, é que Sara não é
muito conhecida fora da Camargue, assim como a Nhá Chica não é muito conhecida
fora do estado de Minas Gerais. É uma santa de devoção, principalmente, dos
manush e dos calé que vivem no sul da França. Sua devoção atinge até o
município espanhol de Girona, próximo aos Pirineus. Para além disso, os calé
que vivem em outras regiões da Espanha têm outras padroeiras, Como a Virgen de La Macarena e a Virgen del Rocío. No Brasil,
considera-se Nossa Senhora Aparecida a padroeira dos ciganos, e a imagem dela é
muito mais frequentemente encontrada nos lares rhomá do que a de Santa Sara.
Por que, então, todo o frisson
acerca de Santa Sara? Tudo começou com a já mencionada novela, e foi levado
adiante por um sem-número de pessoas que literalmente pegaram carona no sucesso
midiático. De repente, Santa Sara, ela mesma uma santa desconhecida e exótica,
estava na TV, no rádio e nos livros; tornou-se portadora de toda a carga
simbólica de um povo exótico, com uma espiritualidade exótica.
É bem verdade que algumas vezes a
devoção fervorosa – e um tanto forçada – a esta santa chega a parecer uma
condição imperativa para a afirmação da identidade romani aqui no Brasil. Você
dificilmente encontrará um evento temático em que não haja um simulacro de
altar para Santa Sara. Todos os anos, quando chega o dia 24 de maio, inúmeros
lugares, desejosos de ostentar uma autenticidade étnica que não possuem,
promovem “slavas” ao custo de um ingresso, ainda que os responsáveis por isso
jamais tenham estado em uma slava de verdade e não façam a mínima ideia do que
estão fazendo.
Nada será considerado “cigano” o
bastante se não tiver uma imagem enfeitada de Santa Sara no meio.
Lamentavelmente, ela se tornou a referência dos que não têm referência; um
símbolo esvaziado de conteúdo, um recurso evocativo e estético.
Isso significa que não há pessoas
e famílias rhomá sinceramente devotas de Sara? É claro que não. Eu mesmo sou
muito devoto de Sara e minha família se reúne todos os anos para um bródio, que
é uma das formas como os calé se referem às suas festas, em homenagem à
Negrinha, que é como nós a chamamos, carinhosamente. Nada disto significa,
também, que pessoas não-ciganas estão de alguma forma impedidas de nutrir
sincera e honesta devoção por Sara. O fato de uma parte do nosso povo tê-la
escolhido (ou ter sido escolhida por ela) não faz dela nossa propriedade.
Aliás, a esta altura já deveria estar claro que os rhomá não acreditam que o
espiritual, o divino e sagrado, como a própria Terra, sejam propriedade de
ninguém.
Mas quem é, afinal, Santa Sara?
Para responder a esta pergunta, precisamos falar de um fenômeno religioso que existe
no mundo todo, mas é muito recorrente na Europa – as Virgens Negras. As Virgens
Negras são estátuas femininas, invariavelmente de pele escura, que
aparentemente representam a Virgem Maria, e cuja origem é envolta em mistério.
Um exemplo bastante familiar ao povo brasileiro é o de Nossa Senhora Aparecida,
cuja imagem surgiu, inicialmente sem a cabeça, na rede de um pescador. Outro
exemplo é La Moreneta, a Virgem de Montserrat, que, segundo consta, surgiu de
dentro de uma rocha atingida por um relâmpago no Montserrat, na Espanha. Santa
Sara é também uma das virgens negras.
Ninguém sabe ao certo como sua
imagem foi parar naquela igreja, é como se sempre tivesse estado lá. A imagem
original era um busto simples, que hoje está guardado no museu da cidade. A
respeito dela, um número considerável de lendas foi criado. Alguns contam que
era uma escrava egípcia, outros que foi uma sacerdotisa Lídia; há quem jure que
era uma cigana ou até mesmo filha de Maria Madalena e Jesus.
A história da barquinha é a mais
famosa e a festa anual de Saintes-Maries-de-la-Mer gira em torno dela. Em uma
versão, Sara vinha na barquinha, com José de Arimatéia e as três Marias,
Madalena, Salomé e Jacobé. Em outra, mais difundida na Camargue, ela já estava
lá, quando teve uma visão sobre a chegada das Santas Marias e foi para a praia
esperá-las. É por causa disso que a procissão de Sara acontece um dia antes da
das Santas Marias, no dia 25.
Historicamente, porém, as datas
não coincidem. Sabemos que não é possível falar de ciganos, ao menos não de rhomá,
antes do século XI, o que anula efetivamente a possibilidade dessa Sara da
lenda ter sido uma cigana. O mais antigo registro que existe de uma Sara
naquela região é do século XVI e diz respeito a uma mulher que teria
atravessado Camargue a pé, mendigando para ajudar uma pequena comunidade cristã
que enfrentava grandes dificuldades.
Como começou o culto à Santa Sara
em Saintes-Maries-de-la-Mer, ninguém sabe dizer. Tampouco existe alguma
explicação verificada e irrefutável para o fato de os rhomá daquela região a
terem adotado como sua santa padroeira. Conjecturas há, aos montes. Para
alguns, o busto que havia na igreja pode ter sido não de uma santa, mas uma
homenagem a esta Sara andarilha, capaz de atravessar quilômetros a pé para
ajudar sua comunidade religiosa. O fato dela ser uma caminhante, que
atravessava cidades mendigando, teria levado à sua associação com os rhomá.
Pessoalmente, acredito que a
explicação, embora absolutamente desnecessária, seja mais simples. Sara
figurava em uma cripta, que está no subsolo da igreja, à margem de seu espaço
principal, exatamente como os rhomá estão quase sempre a margem do espaço
principal das cidades. Ela não está apenas à margem, também está abaixo, no
subsolo, de onde algumas de nossas lendas dizem que vieram os nossos mais
antigos ancestrais. Não obstante, ela tem a pele escura, daí chamá-la kali, em
romani, que significa “negra”. Hoje é bastante comum encontrarmos rhomá de pele
bem clara, alguns até louros, de olhos verdes ou azuis, mas nosso fenótipo
original – que certamente tinham os nossos antepassados ao chegarem à Europa –
é a pele, os cabelos e os olhos bem escuros. Então é provável que os manush e
os calé do sul da França apenas tenham visto em Sara alguém que era como eles,
que os entendia e que poderia, desta forma, melhor interceder por eles junto a
Duvvel, o criador.
Não é demais lembrar que não
existe uma religião romani. O culto a Santa Sara é católico, mesmo que possua
muitos aspectos sincréticos, o que não é de modo algum estranho ao catolicismo.
Da mesma forma, são católicos todos os cultos aos santos padroeiros que os
rhomá adotam em outros lugares do mundo. Há rhomá de outras denominações
religiosas, e até mesmo rhomá que não têm religião alguma para quem falar em
santos padroeiros, seja Sara ou qualquer outro, não faz qualquer sentido. Eles
não são menos rhomá por causa disso.