A primeira brisa gélida soprou,
descendo a montanha que se erguia sobre os banhos esmeraldinos, agitando suave
e tristemente as folhas das árvores. Afrodite e Adônis, que descansavam do amor
nos braços um do outro, entreolharam-se. Era o primeiro sinal. Zeus havia
decidido – o tempo de Perséfone estava próximo.
Nos últimos meses, o Casal Divino
havia se regozijado em dádivas abundantes. Aquecida pela luz vigorosa do sol, a
terra fervilhava de cores na valsa das flores, cujas pétalas o doce Zéfiro
fazia volitar, planando sobre os vales. Por toda parte, a raça dos homens e dos
bichos festejou, presenteando a terra com a continuidade de sua prole.
Sentindo-se acalentada pela felicidade de sua descendência, mãe Gaia explodiu
de fertilidade, fazendo com que os frutos da terra germinassem e brotassem para
matar a fome de seus filhos. Mas a roda, agora, voltaria a girar... Para que a
vida pudesse se manter, renovada em seu ciclo de eternidade, o velho Crhonos
batera o martelo muito tempo atrás – tudo o que vive deve morrer; o que conhece
começo, também conhecerá fim. E na responsabilidade de manter a determinação
divina, até mesmo os Deuses, em essência eternos, algumas vezes precisam se
sacrificar.
O jovem deus nos braços da Cípria
respirou profundamente, sentindo o ar atravessar seu corpo como um espasmo de
vitalidade heroica. Ela, por sua vez, sabia o que vinha a seguir e estava entre
a apreensão e a contrariedade.
Sorrindo, ele se levantou, tomou
o arco, a aljava e a lança. Com um gesto que a Senhora dos Amores nunca
conseguiu compreender, ele levou os dedos à boca, produzindo um silvo alto e
estridente. Quase no mesmo instante, a matilha de perdigueiros surgiu do meio
da mata, latindo e abanando as caudas freneticamente, com alegria
irrepreensível, como se não soubessem o que estava por vir.
Irritada, Afrodite queixou-se dos
cães, do cheiro, do barulho que faziam. “Tão diferente é a catinga ocre destas
bestas do aroma agridoce da mirra que exala de ti”, ela disse, fazendo dengo. “Não
me parece certo que prefiras a companhia deles, quando teu cheiro combina mais
com o meu, que dá perfume às rosas”.
Todos os anos era a mesma coisa.
Ela não se importava com as consequências que pudessem vir de suas paixões.
Simplesmente não queria que ele fosse, não queria perdê-lo mais uma vez.
Dançava, seduzia, pedia aos Amores que escondessem suas armas de caçador, por
fim fazia cena. Ele apenas ria. Sempre terno, assistia suas explosões, suas
investidas. Quando Ela se acalmava, como sempre se acalmam as ondas do mar, Ele
acariciava suas faces alvas e coradas. Com um beijo carinhoso, despedia-se e
irrompia pelas matas com os cães, em caçada selvagem. Tinha um encontro marcado
com seu arqui-inimigo – o javali.
Há alguns meses, eles tinham se
encontrado. Naquela ocasião, o javali, derrotado, foi arrastado pela relva na
boca dos cães, cobrindo-se de temperos rústicos antes mesmo de sua carne chegar
ao fogo. Agora, no entanto, era a vez do javali...
Adônis, tomado pelo furor da
perseguição, tomou um caminho diferente de seus cães. Quando deu por si, estava
sozinho, no meio da mata. Então parou para ouvir os perdigueiros, sempre tão
barulhentos, e recuperar a trilha. Eram sempre eles, cujo cheiro nauseava Afrodite,
que denunciavam o fedor da localização do Inimigo da Floresta, em geral surpreendido
em seu incansável trabalho de revirar a terra, destruindo as raízes das plantas
e enfraquecendo as propriedades do solo. Mas tudo o que o Senhor teve tempo de
ouvir foi a respiração pesada seguida de um grunhido terrível.
Atingido nas ancas, o Jovem Deus
tombou sobre a terra escura coberta de folhas. Seu sangue, que jorrava da
ferida viva, tingindo tudo de carmim. Os cães logo o alcançaram e, deparando-se
com o Senhor caído e o javali em fuga, puseram-se no encalço da fera. Inútil
perseguição. O berro de dor do Jovem Deus, porém, atravessou as matas e, no
limiar das ondas, a Senhora do Chipre soube que estava acabado. Seu amor,
alegremente, havia partido mais uma vez para junto de Perséfone, onde reinaria
ao lado da Deusa sobre todos os mortos.
Inconsolável, Afrodite irrompeu
pela mata, chorando e gritando, perguntando-se porque! Suprema angústia estar
longe de quem ama, os dois deuses separados pela tragédia! Ela se rasgava e se
cortava nos espinhos das plantas, seu sangue pintando as rosas de vermelho. Chegou
a tempo de ver seu amor dar o último suspiro e expirar com a cabeça deitada onde
mais gostava de estar – em cima de suas coxas.
Afrodite, que a todos submete em desígnios
caprichosos, há muito se feriu, acidentalmente, na ponta de uma das flechas do
filho, o irreverente Eros, de cujo feitiço nem mesmo ela podia escapar. Foi
apaixonar-se pelo trágico Adônis, cujos prazeres irresistíveis são superados
apenas pela sua fugacidade. Prazeres que também fizeram cair de amores
Perséfone, que governa o Outro Mundo. Agora, para que a Deusa da Outra Vida
possa sorrir e a vida continuar em seu ciclo de fim e recomeço, o Jovem Deus
fará novamente o sacrifício de si mesmo... E Afrodite sofrerá.
Os vales cobrir-se-ão de frio e
gelo. As plantações não vão desabrochar e as sementes permanecerão ocultas no
escuro ventre da Terra. Homens e bestas estarão entocados, permanecendo, se a
natureza permitir, mais tempo dormindo que despertos. Muitos não verão o
despontar de uma nova primavera...
Nós fazemos o funeral do Jovem
Deus, enquanto vislumbramos nossa própria finitude na memória dos que vieram antes
de nós. O mundo cumpre luto pela Deusa... Mas também por si mesmo.
Ao debruçar-se sobre o corpo agonizante
do Amado, em meio a poças de seu divino sangue, Afrodite fez brotar a rubra
anêmona – uma flor, a semelhança do próprio Adônis, efêmera, cujas pétalas o
vento logo leva para longe... Mas que são uma das primeiras cores a surgir do
frio chão cinzento após os rigores invernais. As anêmonas, um prenúncio de
primavera, são uma promessa de reencontro, uma lufada de esperança. Os filhos
da Terra haverão de ver o sol brilhar mais uma vez, a vida voltar a vicejar e nossa
espécie experimentar algum sentido de eternidade em nossa própria descendência.
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