sexta-feira, 6 de maio de 2016

A VEZ DO JAVALI



A primeira brisa gélida soprou, descendo a montanha que se erguia sobre os banhos esmeraldinos, agitando suave e tristemente as folhas das árvores. Afrodite e Adônis, que descansavam do amor nos braços um do outro, entreolharam-se. Era o primeiro sinal. Zeus havia decidido – o tempo de Perséfone estava próximo.

Nos últimos meses, o Casal Divino havia se regozijado em dádivas abundantes. Aquecida pela luz vigorosa do sol, a terra fervilhava de cores na valsa das flores, cujas pétalas o doce Zéfiro fazia volitar, planando sobre os vales. Por toda parte, a raça dos homens e dos bichos festejou, presenteando a terra com a continuidade de sua prole. Sentindo-se acalentada pela felicidade de sua descendência, mãe Gaia explodiu de fertilidade, fazendo com que os frutos da terra germinassem e brotassem para matar a fome de seus filhos. Mas a roda, agora, voltaria a girar... Para que a vida pudesse se manter, renovada em seu ciclo de eternidade, o velho Crhonos batera o martelo muito tempo atrás – tudo o que vive deve morrer; o que conhece começo, também conhecerá fim. E na responsabilidade de manter a determinação divina, até mesmo os Deuses, em essência eternos, algumas vezes precisam se sacrificar.

O jovem deus nos braços da Cípria respirou profundamente, sentindo o ar atravessar seu corpo como um espasmo de vitalidade heroica. Ela, por sua vez, sabia o que vinha a seguir e estava entre a apreensão e a contrariedade.

Sorrindo, ele se levantou, tomou o arco, a aljava e a lança. Com um gesto que a Senhora dos Amores nunca conseguiu compreender, ele levou os dedos à boca, produzindo um silvo alto e estridente. Quase no mesmo instante, a matilha de perdigueiros surgiu do meio da mata, latindo e abanando as caudas freneticamente, com alegria irrepreensível, como se não soubessem o que estava por vir.

Irritada, Afrodite queixou-se dos cães, do cheiro, do barulho que faziam. “Tão diferente é a catinga ocre destas bestas do aroma agridoce da mirra que exala de ti”, ela disse, fazendo dengo. “Não me parece certo que prefiras a companhia deles, quando teu cheiro combina mais com o meu, que dá perfume às rosas”.

Todos os anos era a mesma coisa. Ela não se importava com as consequências que pudessem vir de suas paixões. Simplesmente não queria que ele fosse, não queria perdê-lo mais uma vez. Dançava, seduzia, pedia aos Amores que escondessem suas armas de caçador, por fim fazia cena. Ele apenas ria. Sempre terno, assistia suas explosões, suas investidas. Quando Ela se acalmava, como sempre se acalmam as ondas do mar, Ele acariciava suas faces alvas e coradas. Com um beijo carinhoso, despedia-se e irrompia pelas matas com os cães, em caçada selvagem. Tinha um encontro marcado com seu arqui-inimigo – o javali.

Há alguns meses, eles tinham se encontrado. Naquela ocasião, o javali, derrotado, foi arrastado pela relva na boca dos cães, cobrindo-se de temperos rústicos antes mesmo de sua carne chegar ao fogo. Agora, no entanto, era a vez do javali...

Adônis, tomado pelo furor da perseguição, tomou um caminho diferente de seus cães. Quando deu por si, estava sozinho, no meio da mata. Então parou para ouvir os perdigueiros, sempre tão barulhentos, e recuperar a trilha. Eram sempre eles, cujo cheiro nauseava Afrodite, que denunciavam o fedor da localização do Inimigo da Floresta, em geral surpreendido em seu incansável trabalho de revirar a terra, destruindo as raízes das plantas e enfraquecendo as propriedades do solo. Mas tudo o que o Senhor teve tempo de ouvir foi a respiração pesada seguida de um grunhido terrível.

Atingido nas ancas, o Jovem Deus tombou sobre a terra escura coberta de folhas. Seu sangue, que jorrava da ferida viva, tingindo tudo de carmim. Os cães logo o alcançaram e, deparando-se com o Senhor caído e o javali em fuga, puseram-se no encalço da fera. Inútil perseguição. O berro de dor do Jovem Deus, porém, atravessou as matas e, no limiar das ondas, a Senhora do Chipre soube que estava acabado. Seu amor, alegremente, havia partido mais uma vez para junto de Perséfone, onde reinaria ao lado da Deusa sobre todos os mortos.

Inconsolável, Afrodite irrompeu pela mata, chorando e gritando, perguntando-se porque! Suprema angústia estar longe de quem ama, os dois deuses separados pela tragédia! Ela se rasgava e se cortava nos espinhos das plantas, seu sangue pintando as rosas de vermelho. Chegou a tempo de ver seu amor dar o último suspiro e expirar com a cabeça deitada onde mais gostava de estar – em cima de suas coxas.

Afrodite, que a todos submete em desígnios caprichosos, há muito se feriu, acidentalmente, na ponta de uma das flechas do filho, o irreverente Eros, de cujo feitiço nem mesmo ela podia escapar. Foi apaixonar-se pelo trágico Adônis, cujos prazeres irresistíveis são superados apenas pela sua fugacidade. Prazeres que também fizeram cair de amores Perséfone, que governa o Outro Mundo. Agora, para que a Deusa da Outra Vida possa sorrir e a vida continuar em seu ciclo de fim e recomeço, o Jovem Deus fará novamente o sacrifício de si mesmo... E Afrodite sofrerá.

Os vales cobrir-se-ão de frio e gelo. As plantações não vão desabrochar e as sementes permanecerão ocultas no escuro ventre da Terra. Homens e bestas estarão entocados, permanecendo, se a natureza permitir, mais tempo dormindo que despertos. Muitos não verão o despontar de uma nova primavera...

Nós fazemos o funeral do Jovem Deus, enquanto vislumbramos nossa própria finitude na memória dos que vieram antes de nós. O mundo cumpre luto pela Deusa... Mas também por si mesmo.


Ao debruçar-se sobre o corpo agonizante do Amado, em meio a poças de seu divino sangue, Afrodite fez brotar a rubra anêmona – uma flor, a semelhança do próprio Adônis, efêmera, cujas pétalas o vento logo leva para longe... Mas que são uma das primeiras cores a surgir do frio chão cinzento após os rigores invernais. As anêmonas, um prenúncio de primavera, são uma promessa de reencontro, uma lufada de esperança. Os filhos da Terra haverão de ver o sol brilhar mais uma vez, a vida voltar a vicejar e nossa espécie experimentar algum sentido de eternidade em nossa própria descendência.   

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