quarta-feira, 12 de outubro de 2016

DOGMA X FUNDAMENTO


Ultimamente venho observando como algumas palavras que caem no vernáculo popular acabam se distanciando de seu sentido original para assumir outro, no mais das vezes muito diferentes. Um exemplo no qual bato bastante diz respeito à palavra “opinião”, que não é e nunca foi essa conclusão rasa, no mais das vezes sem base alguma, que a maior parte das pessoas assume como certa. Outro exemplo é a palavra “preconceito”, que de uma ideia pré-concebida, um conhecimento especulativo que todos nós possuímos sobre um ou outro assunto (afinal ninguém sabe tudo sobre tudo), muitas vezes assume o sentido de discriminação e até ofensa.

Outra palavra parece estar sofrendo ressignificação parecida, especialmente em determinados nichos virtuais identificados com religiosidades pagãs, cristo-pagãs e, sobretudo, com a prática da bruxaria: “dogma”. Quem acompanha, mesmo que a certa distância, como eu, esses nichos, já deve ter percebido que ele é regido por ondas, modas que vão e vêm. De uns tempos para cá, parece que uma dessas ondas se traduz na expressão “a bruxaria não possui dogmas”, que sintetiza crenças em torno de uma prática mágica/religiosa absolutamente livre de regras de qualquer tipo... Este, aliás, parece ser, para além do assunto em pauta, o grande lema do zeitgeist destes tempos – a ausência de regras. Seria ótimo se a vida realmente pudesse ser assim, não seria?


Divagações a parte, a finalidade deste artigo é discutir o uso específico da palavra dogma dentro do contexto apresentado, que revela um desconhecimento não apenas semântico, mas também teológico. Teologia esta que, como já observado em outras ocasiões, parece ser uma das principais carências das espiritualidades pagãs, neopagãs e cristo-pagãs que se apresentam na internet (vide Olhar Pagao - Uma Outra Leitura do Mundo).


Comecemos pelo sentido semântico de dogma. A palavra tem origem grega (δόγμα) e significa, literalmente, “o que se pensa é verdade”. Grosso modo, poderíamos considerar “dogma” um equivalente semântico para outra palavra de origem grega, “axioma” (ἀξίωμα), que significa “considerar válido”. O axioma é uma designação filosófica para algo que pode ser considerado verdadeiro sem a necessidade de ser provado. Dogmas são axiomas ideológicos, pontos fundamentais de uma doutrina, religiosa ou não, impassíveis de contestação ou discordância. Para a Igreja Católica, o dogma é uma revelação divina. Um exemplo de dogma católico é a crença da Santíssima Trindade, por exemplo, “um só Deus em três pessoas”, que, a própria religião admite, é um mistério que não pode ser racionalmente explicado.


Então eu seria a primeira pessoa a concordar com a expressão – “a bruxaria não tem dogmas”. Aliás, vou mais longe – os paganismos não têm dogmas. As religiões pagãs são extremamente práticas e voltadas para as realidades cotidianas, quase nunca têm espaço para divagações cósmico-transcendentais, distantes demais para serem compreendidas. Será que isso, no entanto, é a mesma coisa que dizer – “a bruxaria não tem regras” ou “os paganismos não têm regras”? Será que vale tudo, absolutamente qualquer coisa que a mente humana for capaz de conceber? Afinal, estamos falando de formas espirituais de conceber o mundo e a realidade ou das divagações e anseios da nossa própria mente?


Nem toda regra é um dogma. Quando nós somos jovens demais para compreender os perigos do mundo, geralmente ouvimos de algum adulto – “ei, não ponha as mãos no fogo!” Certamente há um motivo lógico e perfeitamente compreensível para isso. Se puser as mãos no fogo, a gente se queima. Da mesma forma, ninguém que não esteja a fim de morrer pula de um prédio de dez andares... Você pode ser a melhor pessoa do mundo e se achar muito querido pelos seus Deuses; você pode até se considerar o bruxo super-foda-pica-das-galáxias, mas, se fizer isso, vai se esborrachar no chão, porque existe uma coisa chamada gravidade que age sobre tudo, inclusive eu e você.


Será que o calor do fogo é um dogma? Será que a gravidade é um dogma? O que nos impede de voar, como os pássaros?


Não, nem toda regra é um dogma. Bruxaria pode não ter dogma, mas com certeza tem regras. E uma palavra muito boa para essas regras é “fundamentos”. A bruxaria, como qualquer arte e ciência, tem técnicas e fundamentos. As coisas não são feitas do jeito que são porque alguém, um dia, acordou e decidiu que seriam assim. Da mesma forma, quando se diz que algo é perigoso ou que não deve ser feito de determinada maneira, isso também não é sem motivo ou “por revelação divina”. Como diriam os mais velhos: tudo tem um quê e um por quê. E é uma atitude no mínimo saudável procurar estar ciente dos quês e dos por quês do caminho que você decidiu trilhar.


“Ah, mas existem diferentes tradições e formas de trabalho”, dirão alguns. Não é sobre isso que estamos falando. É claro que existem muitas e diversas tradições. A questão é: qual é a sua tradição e forma de trabalho? Quais são os fundamentos dessa tradição? Essa é uma pergunta para a qual muitos não têm resposta.


“Sou independente”, dizem uns. “Não gosto de rótulos”, dizem outros. Ninguém é independente, na verdade. Ninguém cultua Deuses tirados da própria cabeça (bom, alguns sim, mas sem comentários...), ninguém opera magia em um universo criado por si mesmo. Então vamos parar de nos iludir?


A bruxaria pode ser sem dogma, o que ela não pode ser é sem fundamento. Bruxaria sem fundamento também não tem referência, não tem compreensão, não tem entendimento e, por fim, não tem força. É apenas um bonito – ou não – enfeite para as redes sociais.


Em outra oportunidade, discutiremos sobre a palavra “heresia”, outro modismo dos círculos virtuais pagãos, neopagãos e bruxos, e como ele, no contexto de um mundo secularizado, simplesmente não faz sentido.   


      

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O RETORNO DO REI


A augusta Senhora de Chipre vagava pelo mundo esfumaçado, triste e sem vida, consumida por pranto e tristeza. Lágrimas salgadas molhavam sua bela face, como as ondas molham a areia branca da praia. Num desses dias melancólicos, cuja conta já se ia perdida em seu negro rosário de pérolas, Ela tropeçou na flor rubra, que se erguia solenemente da terra morta. Uma gota escarlate sobre o alvo cristalino da neve e o marrom escuro do chão.

Ela se lembrou do dia fatídico, quando a caça fez de presa o Caçador. O sangue do Amado regava os fartos seios de Gaia, espalhando-se entre os seixos na beira do rio. Usando de Seu poder e de Sua divindade, Ela mesma o havia metamorfoseado naquela flor, ao mesmo tempo um símbolo de pesar e de felicidade. Era ele, que, de algum lugar nas profundezas, acenava-lhe com aquele sorriso ingênuo, mas sempre encantador. Quase podia sentir o toque da pele morena e os beijos doces dos lábios frescos, bobos, cheios de desejo.

Pela primeira vez em meses, Ela se alegrou. Tirou as vestes negras do luto, procurou as suas jóias, seus perfumes, convocou a comitiva das ninfas e foi para seus banhos, ornar-se de beleza – o mais adorável fruto de Sua criação.

Ansiosamente, esperava por Ele. Nua. A pele fresca, macia, ornada apenas de pérolas, gotas cristalinas e conchas do mar.

Foi então que, certa noite, quando os raios prateados de Selene tingiram de azul cobalto a escuridão das matas, Ela ouviu o brado de Ártemis, caçadora, esfuziante, pois o Gêmeo Ensolarado vinha vindo de seu longo retiro em Hiperbórea. De fato, na manhã seguinte, o dia chegou em feixes radiantes de luz. Apollo voltara, cálido, com seu arco e sua lira, a doce canção da vida – que cura porque afasta o frio da morte.

Regina quase não podia se aguentar de ansiedade. Finalmente o tempo do martírio havia passado. E após o terrível sofrimento, cada esperança, cada vitória se tornava um bálsamo exultante para a alma. Sempre surpreendente – e encantador – como o fundo revela o topo; como a dor nos permite discernir o prazer; como a vida precisa da morte e aquilo a que chamamos paradoxo não é mais que o outro lado da moeda.

Durante todo o inverno, os cães haviam perseguido o javali assassino dentro daquelas matas. Em mais uma noite de espera, outro sinal – o uivo, seguido de ganidos vitoriosos, denunciava o fim da caçada selvagem. O inimigo tombara. A carne de seu corpo devastado agora alimentaria as necessidades irrefreáveis da terra.

De uma fenda sob a Mirra, de caule resinoso e copa retorcida – o feio que exala perfume, fim que é também recomeço – surgiu o Psicopompo, Hermes abençoado, trazendo um rapaz em trajes negros pelas mãos. Ele se despiu, revelando formas esplêndidas, seguida do aroma, ao mesmo tempo doce e amargo do amor.

As ninfas, que o esperavam, fizeram uma mesura. Estavam prontas para guiá-Lo à sua Rainha, que esperava na madrepérola das águas, cheias de luar. 

Hades, agora Adônis, não olhou para trás. Havia deixado um coração igualmente cheio de saudade... Porque toda alegria tem também uma face de tristeza.

Ele respondeu ao cumprimento das donzelas, mas dispensou a companhia. Sabia perfeitamente o caminho. Além disso, elas não podiam acompanhar Seus passos. Apenas os cães, velhos amigos, eram capazes de segui-Lo com a mesma graça e a mesma impetuosidade rumo aos braços e abraços da Cípria, que O esperava cheia de fulgor.
Em um leito de abalone, Eles finalmente se encontraram. As ninfas escondidas nos arbustos, como testemunhas daquelas núpcias divinas. Ele voltou. A vida venceu a morte outra vez.

Nuvens cobriram os céus e choveram de felicidade. Esses primeiros dias, assim, se encheram da umidade de um amor repleto de saudade.