quarta-feira, 30 de novembro de 2016

FIDEL CASTRO E OS CIGANOS




Em 2001, foi realizada em Durban, África do Sul, a Primeira Conferência Mundial contra o Racismo convocada pelas Nações Unidas. Estiveram presentes trinta presidentes e chefes de governo de todo o mundo e 166 ministros das Relações Exteriores, serviços sociais ou de trabalho. Além disso, como expectadores, estavam presentes dezenas de ONGs, bem como as organizações mais representativas de movimentos sociais e direitos humanos do planeta. A delegação oficial espanhola foi chefiada pelo Ministro do Trabalho e dos Assuntos Sociais, Juan Carlos Aparicio, bem como o Secretário-Geral de Assuntos Sociais, Concepción Dancausa. Da mesma forma, na condição de expectadores, o ministro decidiu convidar outras pessoas entre as quais estavam Sauquillo, o Professor Tomas Calvo Buezas e o presidente da Unión Romani para acompanhar o desenrolar da Conferência.

Foi assim que eu vi o início da Conferência:

Cheio de entusiasmo cheguei a Durban e creio que fui um dos primeiros a instalar-me no Centro Internacional de Convenções, a fim de obter um bom lugar para ver e ouvir de mais perto possível a maior parte dos líderes mundiais.

A aparência do plenário da conferência era impressionante. Ela foi dividida em três partes. A primeiro foi uma espécie de palco montado acima do nível do chão. No centro do palco, havia uma mesa decorada com a bandeira da ONU. Depois sentou-se para presidir a cerimônia de abertura o Sr. Thabo Mbeki, Presidente da República da África do Sul e o então Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan. E à direita, sobre outras plataformas que se alinhavam elevadas como em uma escada, foram colocadas as cadeiras mais vistosas e elegantes, onde se sentaram os chefes de Estado que naquele momento estavam na cidade. Foi aí que eu vi, pela primeira vez, Fidel Castro, Yasser Arafat, e o resto das personalidades que ocupavam os lugares de privilégio.

A segunda divisão do salão, que começava aos pés do palco, era destinada aos representantes Oficiais dos 160 Estados presentes na Conferência. Cada delegação teve uma pequena mesa sobre a qual havia um grande cartaz com o nome do país que devia ocupar aquele lugar, e, imediatamente atrás da mesinha, quatro cadeiras, duas na frente e duas atrás, vestidas com um tecido vermelho vistoso. Imediatamente eu vi a que correspondia à Espanha e esperei ansiosamente a chegada de nossos representantes oficiais.

A terceira parte do salão, onde eu estava, foi reservada para os expectadores credenciados pelos respectivos governos. Neste espaço não havia lugar designado e todos poderiam sentar-se onde achassem melhor. A separação entre os expectadores e os ministros consistia numa faixa de cerca de quatro metros de largura sobre a qual foram colocados uma série de suportes verticais de um metro de altura, devidamente separados. Esses suportes serviam para segurar um grosso cabo azul entrançado que os ligava uns aos outros por um gancho na parte superior das colunas separadoras. Nesta faixa, havia vários policiais elegantemente uniformizados, que, suponho, estavam ali para garantir a separação entre o espaço dos senhores ministros e o dos demais.

O ministro espanhol não aparecia em parte alguma.

Em poucos minutos o salão estava lotado. As grandes personalidades tomaram seus lugares e os ministros, acompanhados por seus assessores, foram ocupando as mesinhas a eles destinadas. Mas eu comecei a ficar nervoso quando vi que já não faltava mais ninguém e a mesinha reservada para a delegação oficial espanhola continuava vazia. Por fim, momentos antes de o Secretário-Geral das Nações Unidas anunciar o início da conferência, a delegação espanhola entrou e ocupou seus lugares. Foram os embaixadores da Espanha em Joanesburgo e para as Nações Unidas e um funcionário do Ministério. Mas eram apenas eles três. Faltava o ministro, cuja cadeira permaneceu vazia.

A solenidade de abertura começou e eu ouvi atentamente as intervenções de tantas e importantíssimas personalidades. Devo dizer que, logo de início, o Secretário-Geral da ONU advertiu que seria muito rigoroso na gestão do tempo concedido aos oradores que seria o seguinte: os senhores presidentes e Chefes de Estado disporiam de dez minutos e os senhores ministros de cinco minutos cada um.

Mas a sessão continuava, o tempo avançava e o ministro espanhol não chegava. Meus olhos permaneceram fixos em sua cadeira vazia. Assim, terminaram de falar as mais altas personalidades, e foi então que Koofi Annan deu a palavra aos ministros presentes, advertindo-lhes de que seria muito rigoroso na administração do tempo a eles destinado. Então, dirigindo-se a Assembleia, ele disse:

— Senhores ministros que desejam fazer uso da palavra no próximo turno, manifestem-se em voz alta pondo-se em pé.

Meu humor era o de um vulcão em erupção. O ministro espanhol não chegava e a Espanha perderia a oportunidade de marcar a sua posição sobre o racismo e a discriminação em uma ocasião irrepetível. E começaram a ouvir-se as vozes dos representantes oficiais dos Estados manifestando o seu desejo de falar:

— Canadá, disse o ministro norte-americano; Letônia, Filipinas, Cuba, México. Foram dez os ministros que desejaram intervir. E o nosso ministro não apareceu. Eu esperava que algum dos embaixadores levantasse a voz em nome do nosso país, a fim de dar tempo ao nosso ministro que ainda não havia chegado. Mas eles não o fizeram. E naquele momento eu tomei uma decisão ousada sem medir bem suas possíveis consequências. Levantei-me rápido e pulei o cordão azul que separava os expectadores dos representantes oficiais. Os policiais próximos ficaram tão surpresos que não foram capazes de agir para impedir a corrida rápida com a qual cheguei à mesa que comportava o cartaz do nosso país. Sentei-me na cadeira reservada para o nosso ministro e, a partir dela, dirigindo-me a presidência da Conferência, eu disse:

— Espanha!

Eu tremia como as folhas das árvores. Do fundo do meu coração, eu pedi a Deus para que o ministro aparecesse, para que pudesse fazer uso da palavra quando fosse chamado pela tribuna. Os membros da delegação me disseram que o avião em que vinha [o ministro] para a África do Sul estava atrasado e que também esperavam que, a qualquer momento, ele poderia chegar. No entanto, devo dizer que, embora eles tenham me tratado com respeito, me advertiram de que meu comportamento poderia me trazer consequências muito graves; que eu havia feito uso de uma prerrogativa que não era minha e que falar em nome da Espanha, quando não se tem a legitimidade ordinária para fazê-lo, poderia ser um delito penalmente imputável.

— Por Deus, por Deus, que apareça o ministro – eu pedia do fundo do meu coração. Mas o ministro continuava sem aparecer quando trovejaram em meus ouvidos as palavras do Secretário-Geral das Nações Unidas, dizendo:

— Tem a palavra o senhor Ministro do Trabalho e dos Assuntos Sociais, representante do Reino da Espanha.

E eu me levantei e comecei a falar, embora meus companheiros acidentais de mesa tenham me advertido para que medisse bem minhas palavras no intuito de não provocar nenhum tipo de conflito diplomático. 

Eu fiz o meu discurso. Comecei dizendo que eu não era o Ministro do Trabalho e dos Assuntos Sociais da Espanha, mas, em sua ausência, acreditava que poderia expor na Conferência a realidade do meu país e do mundo no que diz respeito aos tratamentos racistas e preconceituosos que sofriam os membros da minha comunidade, os ciganos, na maioria dos países membros das Nações Unidas.

Devo dizer, com certo rubor, que enquanto o presidente da Conferência advertiu a alguns ministros de que seus cinco minutos tinham acabado, foi especialmente generoso comigo, porque eu estava expondo a minha história por quase nove minutos e ele não chamou a minha atenção.

Ao terminar, me sentei na cadeira ministerial e fiz o gesto de voltar ao lugar dos expectadores, mas meus “momentâneos” companheiros de Delegação me disseram que não o fizesse e que permanecesse sentado onde estava.

E foi nesse momento que o Presidente da República de Cuba, Fidel Castro, tomou a palavra para responder a minha fala. Já se passaram anos e ainda me excita a memória de suas palavras. Mais ou menos, ele disse o seguinte:

— Quero manifestar aqui o meu total acordo com o que disse o representante da Espanha. A luta do povo cigano para defender seus direitos deve ser apoiada por esta Conferência e isso deve constar na sua declaração final. As palavras do representante espanhol foram palavras oportunas, cheias de legitimidade e sentido comum.

A partir daí, Fidel Castro se manifestou como o Fidel Castro que todos conhecemos. Uma vez no uso da palavra, a fim de apoiar o que eu havia dito, ele começou a contar sua experiência com os ciganos europeus, especialmente aqueles que viviam sob algum regime comunista dependente da União Soviética. Ele mostrou um especial conhecimento sobre a vida dos ciganos romenos, sobre os quais, disse, havia conversado em alguma ocasião com o presidente do país, Nicolae Ceausescu.

Quando a sessão terminou, tive que atender a muitos meios de comunicação e, especialmente, aos espanhóis que, mais uma vez, manifestaram sua complacência por minhas palavras. Mas meus alarmes começaram a tocar quando um funcionário da embaixada espanhola em Joanesburgo veio me dizer:

— O senhor ministro quer vê-lo e me pede para perguntar se você poderia jantar com ele esta noite.

Naturalmente, eu disse que sim. E desde aquele instante começou a me cair mal o jantar ao qual ainda nem havia ido.

Quando cheguei ao reservado onde acreditava que o ministro estava me esperando para dar a grande bronca, me encontrei em uma mesa ao redor da qual havia pelo menos dez pessoas. Pensei comigo mesmo: “O ministro quer isentar-se de qualquer responsabilidade chamando-me a atenção diante de testemunhas por haver tomado o seu lugar sem ser autorizado a fazê-lo.”

Mas não foi assim. Juan Carlos Aparicio Pérez, que foi um bom ministro do Trabalho e dos Assuntos Sociais, veio a mim, apertou minhas mãos com força, e adivinhando meu estado de espírito, disse:

— Não se preocupe. Você fez muito bem. Eu pedi a gravação de suas palavras e as ouvi. E quero te dizer que você deixou o nome da Espanha na melhor posição para que possamos, a partir de amanhã, defender a nossa posição com maior força e autoridade. Além disso, depois do que Fidel Castro disse sobre a sua exposição, quem poderia duvidar do quão oportuna ela foi? Então sente-se e vamos jantar com tranquilidade.

Mas a história não termina aqui.

No dia seguinte, vários membros da nossa delegação e eu estávamos dando um passeio por uma das ruas de Durban, quando fomos surpreendidos pelas sirenes de umas motos enormes em que montavam quatro policiais, duas na frente e duas atrás de um grande carro preto. A fim de não sermos atropelados, nos refugiamos no acesso de entrada de um grande hotel, em cujas portas estávamos. Acontece que o mandatário que estava tão bem escoltado dirigia-se justamente para aquele hotel, e o carro parou quase em frente dos nossos narizes. Dele saiu Fidel Castro, que imediatamente foi cercado por sua escolta pessoal para entrar no hotel.

— Senhor Presidente, Senhor Presidente! – Eu disse, levantando a voz a fim de chamar sua atenção, no que obtive sucesso, porque Fidel Castro parou e ficou me olhando surpreso. – Senhor Presidente, desculpe a interrupção. Eu sou o cidadão espanhol que falou ontem no plenário da Conferência e gostaria de aproveitar a oportunidade de tê-lo tão perto para agradecer por suas palavras. Realmente, senhor Presidente, muito obrigado.

Então aconteceu o que eu nunca poderia ter imaginado. Fidel Castro me esquadrinhou com os olhos, afastou com a mão a escolta que se interpunha entre nós e disse:

— Bem, bem, o homem, é que me impressionou muito o que você disse. Então você é cigano? Venha comigo que eu quero falar com você.

Ele fez um gesto para que os guardas me deixassem passar e, me tomando pelo braço, entramos juntos no hotel, onde tranquilamente tivemos uma agradável conversa. Ele me perguntou um sem-número de coisas sobre os ciganos ao mesmo tempo em que me fez conhecer seus sentimentos em relação a nossa cultura e nossa maneira especial de entender e valorizar a liberdade.

Descanse em paz e que Deus possa perdoá-lo, como a todos nós, pelas coisas ruins que possamos ter feito ao longo de nossas vidas.

Juan de Dios Ramírez-Heredia
Advogado e jornalista
Presidente da Unión Romani.


Traduzido para o português por Mikka Capella.

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