sábado, 7 de dezembro de 2019

RESENHA – A Espada e os Espíritos




Shiba Tsukune é uma jovem samurai do clã Fênix, treinada desde cedo para a nobre função de guarda-costas dos shugenja, sacerdotes da família Isawa. Entretanto, sua vida deu uma guinada quando Ofushikai, a espada ancestral do clã, a escolheu para ocupar o lugar de Shiba Ujimitsu, o falecido Campeão da Fênix. Agora, Tsukune precisará se adequar às formalidades e exigências de sua nova posição social, ao mesmo tempo em que tentará demover o jovem e belo shugenja Isawa Tadaka, a quem serviu durante anos como guarda-costas, da estúpida ideia de duelar contra um dos Mestres do Conselho Elemental.   

Para tanto, Shiba Tsukune irá ao Santuário do Penhasco, nas distantes e montanhosas terras da família Kaito, onde Tadaka está conduzindo uma investigação aparentemente sem importância, sob ordens do Conselho. Tudo mudará quando Tsukune e Tadaka descobrirem que a família Kaito guarda muitos segredos e que um mal muito antigo e com sede de vingança espreita aquelas terras... e está para se libertar.

Antes de falarmos da história propriamente dita, é preciso dizer que a novela de Robert Denton III foi publicada pela Galápagos Jogos, responsável pelo lançamento de inúmeros jogos analógicos, sobretudo cards e boardgames, aqui no Brasil. Um livro, portanto, é uma novidade para a editora, mas uma novidade que se torna menos surpreendente quando ficamos sabendo que a história de A Espada e os Espíritos pertence ao universo de Legend of the Five Rings – um conhecido cardgame, atualmente publicado no Brasil pela mesma Galápagos Jogos, que também deu origem a um dos mais sofisticados RPGs de mesa de que se tem notícia.

De fato, Legend of the Five Rings, ou simplesmente L5R, como é mais conhecido pelos fãs, possui um lore complexo, robusto e dono de uma riqueza dramática ímpar, que não deixa nada a dever a nenhum cenário de fantasia mainstream... Na verdade, deixa a maioria deles comendo poeira.

O jogo possui uma timeline que é atualizada por torneios de cardgame chamados kotei e por contos publicados periodicamente, que acompanham os decks de cards e são, posteriormente, disponibilizados na internet. Assim, a literatura não é, de modo algum, estranha ao universo do jogo. O autor, Robert Denton III, é já um veterano, que escreveu diversos contos para o cenário. A novela A Espada e os Espíritos é o seu primeiro texto mais longo.

A edição da Galápagos Jogos é muito bonita. Ela vem com capa dura, em que figura uma belíssima ilustração de Shiba Tsukune em estilo oriental, e 152 páginas, das quais 16 são um compêndio que traz informações extras e amplia o cenário do RPG, e cerca de 129 páginas de uma trama bastante ágil e envolvente. Além disso, também acompanha o livro um pacotinho com seis cards – dois novos cards que enriquecem o deck da Fênix, sendo três cópias de cada um.

Robert Denton III, por sua vez, é um contista habilidoso, com muita experiência no cenário e um estilo narrativo apaixonante, que casa perfeitamente bem com a atmosfera dramática de L5R. Sua prosa é poética e delicada, passeando pelos cenários bucólicos das montanhas da Fênix com a contemplação de um mestre zen. Seus personagens são desenvolvidos à maneira rokugani – própria de L5R: em dilemas pessoais que têm camadas, de maneira que quem lê fica com a sensação, bastante verossímil, de que nunca conhecerá aquela pessoa, ali descrita, completamente.

A trama de A Espada e os Espíritos tem o foco principal em Tsukune, a nova campeã da Fênix, mas nenhum, absolutamente nenhum dos personagens que perpassam a narrativa dá a impressão de ser supérfluo. Cada um deles tem tantas dimensões que, na verdade, desde o início temos a impressão de que essa mesma história poderia ser contada da perspectiva de qualquer um deles. E isso tem tudo a ver com L5R!

L5R é sobre o drama samurai. Drama samurai, por sua vez, é sobre renúncia, sobre colocar o dever antes de si mesmo e até da própria vida. Neste sentido, A Espada e os Espíritos é sobre o drama samurai de Tsukune, que precisa abrir mão de seus anseios mais profundos para assumir uma posição dentro do clã, com a qual jamais sonhara nem se sentia merecedora. Assim, enquanto a jovem se debate com os desígnios de um destino que ela não sabe se deve amaldiçoar ou bendizer – e com seus sentimentos fortes por Isawa Tadaka – uma investigação tem lugar; uma investigação em que cada descoberta suscita novas perguntas, sugerindo um mistério de proporções cada vez maiores.

O ritmo segue num crescente bem trabalhado de tensão, em que vai ficando cada vez mais difícil largar o livro; e segue assim até o último ato, quando, no conflito final, perde o fôlego e a extensão desnecessária da resolução acaba provocando uma quebra de ritmo que faz, pela primeira vez, a leitura se tornar cansativa. Talvez isso se dê pela falta de experiência do autor com textos mais longos, uma vez que seu terreno parecem ser os contos, mas também não chega a estragar a experiência, que é, de fato, muito boa no contexto geral. Inevitável, todavia, é que o final acabe perdendo alguma coisa do brilho. Nós dizemos “até que enfim”, quando devíamos estar dizendo “não acredito que isso aconteceu”.

Outra crítica, certamente de importância menor para o valor literário da obra, vai para a compostura de certos personagens, que, pelos rígidos costumes rokuganis (inspirados nas igualmente rígidas tradições do Japão feudal), deviam mostrar mais respeito por figuras políticas de grau hierárquico superior. Ao longo de todo o livro, tive a impressão de que houve o que chamamos no RPG “quebras de cortesia” ou “falhas de etiqueta” que implicariam consequências graves, no entanto foram ignoradas e, no contexto da coisa toda, acabaram parecendo despropositadas.

A despeito disso, A Espada e os Espíritos é um livro bem escrito, divertido, repleto de personagens cativantes e muita riqueza cultural, que os amantes de fantasia e de cultura oriental não vão querer deixar de ler. Espero que a Galápagos Jogos traga novelas de todos os clãs de L5R para o Brasil. Eles são mais uma forma – uma forma excelente, deve-se dizer – de fazer com que mais pessoas tenham acesso ao universo apaixonante de Legend of the Five Rings.    

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