Todas as vezes em que escutamos
falar de Afrodite, inevitavelmente nos vêm a cabeça associações com misteriosos
perfumes, tecidos diáfanos, sofisticados leitos, e um milhão de detalhes
típicos dos ambientes da sedução. Quase nunca nos vem à mente qualquer imagem
ligada à cozinha, a tal ponto que se chega a dizer que ela não pertence ao
universo de Afrodite!
Durante muito tempo, a cozinha
esteve associada à mulheres que não possuem as manhas da sedução e que
transitam na esfera das divindades maternais, redondas e desprovidas de
atrativos físicos : tais como Deméter e Héstia.
Eu mesma, durante um bom tempo de
minha vida, acreditei que a cozinha não era o lugar de Afrodite e vesti outras
deusas com trajes toscos, aventais sujos de ovos e aroma de cebola como perfume.
Como um ser apático e desprovido de paixões, deixei que meu corpo crescesse
como um bolo cheio de fermento, acreditando que estava em paz com Deméter e
Héstia. Afinal, os livros me diziam que elas eram exatamente como eu as havia
vestido : deusas "do lar" ! Ou seja, mulheres cujo desejo mais
profundo era apenas a satisfação da família e o reconhecimento do marido e dos
filhos : a representação exata daquilo que se costuma chamar por "dona de
casa".
Assim, por uma boa dezena de
anos, enterrei-me dentro da cozinha como a mais genuína espécime "do
lar". Adquiri um bom punhado de quilos, deformei meu corpo e, como
resultado desta nefasta metamorfose, passei a cobrar dos outros habitantes da
casa um comportamento que eu mesma, em sã consciência, não saberia desempenhar.
Aos poucos fui me transformando numa mulher amarga, sem qualquer otimismo,
achando que a vida se resumia naquele pequeno mundo que eu havia criado. Um
mundo amorfo, repleto de obrigações neuróticas, sem nenhum projeto de
auto-satisfação e excludente de todo prazer. Claro que vez por outra eu me
enganava, atribuindo ao prazer o atributo do sacrifício. Fingia que era feliz
por estar desempenhando tão bem o papel da grande mártir da família!
Dentro de mim, uma semente
germinava sem que eu me desse conta. Uma semente colocada por Héstia e Deméter,
as deusas que eu pensava estar honrando. Estas, preocupadas com o mal entendido
que eu criei e já exaustas de enviar mensagens que eu teimava em não querer
compreender, optaram por plantar, em mim, uma deusa que eu havia renegado há
muito tempo : Afrodite, a Senhora que gerencia o pulsar do feminino!
Ao longo do período em que retive
a pequena semente germinando, estranhos fatos aconteceram. Fui
irresistivelmente atraída para o universo estético de Afrodite. Passava horas
admirando uma roupa na vitrine, e, quando inalava algum perfume, elétricos
arrepios espalhavam-se por meu corpo. Meus sonhos me traziam de volta aquela
Márcia que havia sido um dia...Até as antigas fotos saiam de seus esconderijos
e se revelavam outra vez aos meus olhos!
Preocupada com esse repentino
pipocar de inexplicáveis acontecimentos, recorri mais uma vez à Lua: divina
senhora que orienta as mulheres em toda e qualquer aflição. Me preparei
devidamente para um encontro íntimo com a lua, seguindo todos os ensinamentos
de minha avó.
Preparei um banho de lírios
brancos, acendi quatro velas prateadas em meu altar e queimei incenso de rosas
brancas por toda a casa. Assim, depois de ter tomado o banho e deixando-me
secar sem o auxílio da toalha, finalizei os preparativos : ungindo óleo de
datura na região dos pulsos, nuca, atrás dos joelhos, virilha e umbigo. Depois,
deitei-me na cama e chamei pela Senhora.
Não passaram cinco minutos,
quando percebi uma presença dentro do quarto. Habituada com as inúmeras
interrupções, a que toda dona de casa está sujeita, pensei que Daniel, meu
filho, tivesse entrado no quarto para me pedir qualquer coisa. Preparei-me para
uma possível pausa no meu ritual e abri os olhos, pronta para resolver mais um
problema. No instante em que abri os olhos, ouvi nitidamente o som de alguns
risos. Nesse instante, me dei conta de que não era meu filho que estava no
quarto!
Mesmo acostumada ao estreito
contato com seres de outras dimensões, minha primeira reação é sempre de medo.
Começo a sentir meus joelhos bambos e a voz desaparece num piscar de olhos. Um
frio intenso de mim se apodera e fico por algum tempo tremendo e batendo o
queixo. Depois, pouco a pouco, vou me recuperando e "desenrolo uma
prosa", como bem dizia minha avó.
Desta vez não foi diferente.
Passei por todos os estágios do medo, e, após ter cumprido este rosário de
sintomas, procurei saber quem se encontrava no quarto. Abri bem olhos e me
deparei com quatro mulheres. Todas bonitas e incrivelmente serenas.
A primeira possuía a beleza
selvagem das mulheres quando estão apaixonadas. A segunda, uma beleza mais
tranqüila, como aquela que as mulheres mostram quando tomam os rebentos nos
braços pela primeira vez. A terceira, exibia a beleza radiante das mulheres quando
colocam na mesa um alimento recém saído do fogão. E, por último, a quarta,
aquela que trazia em si todos os atributos das outras três mulheres.
Ainda tonta com aquelas
presenças, fui subitamente levada a sair deste estado, justamente no momento em
que a primeira mulher de mim se aproximou e disse : " Por onde tens
andado? Que caminhos tortuosos te fizeram de mim se esquecer? Eu, Afrodite,
aquela que modelou teus desejos!".
Após ter pronunciado tais
palavras, Afrodite desapareceu, envolta numa intensa fumaça rosada. No quarto,
só ficaram as outras mulheres. Um silêncio profundo perdurou por um bom tempo,
até que as três mulheres me conduziram ao centro do quarto e me rodearam. Eu
não sabia o que fazer, mas percebia que seria levada à realização de um ritual
sagrado. Por isso, purifiquei meu corpo, mentalizando um enorme ovo de prata,
que despejava uma chuva de partículas azuis sobre minha cabeça.
Quando já me encontrava
devidamente purificada, a quarta mulher, aquela que possuía a beleza das outras
três, disse-me que havia gravado nas estrelas um outro caminho para mim, e que
eu não soube identificar seus sinais, tomando assim uma outra direção. Após
dizer isto, chamou com um delicado gesto a segunda mulher. Esta, ao mirar meu
rosto, trouxe-me a lembrança de Daniel aninhado, pela primeira vez, em meus
braços. Percebendo minha profunda emoção, a mulher me disse estas palavras:
" Eu senti a mesma coisa quando Perséfone me veio aos braços pela primeira
vez!".
No momento em que escutei suas
palavras, me dei conta que Deméter estava à minha frente. Mas... não era
possível! Não era a representação feminina que eu atribuía à Deméter! Sua
beleza nada tinha a ver com o "avental todo sujo de ovo", os olhos
irritados pelas cebolas e a lamúria solitária das mães! À minha frente,
encontrava-se uma mulher centrada e em perfeita harmonia com a sua condição.
Percebendo meu espanto, Deméter
sorriu e me disse : " Eu já estou habituada com a leitura equivocada da
minha história. Você foi mais uma a interpretar de maneira errada. Na história
não está dito que eu sou descabelada, negligente com meu próprio corpo e
tampouco uma mãe possessiva e neurótica! Você leu a história e adequou-a aos
seus próprios problemas. Criou uma outra Deméter e passou a acreditar que ela
era eu.".
Deméter estava com a razão. Não
havia nada na história que afirmasse que ela era desprovida de atrativos, que
era uma mulher amargurada, chantagista e fechada em seu próprio sofrimento.
Decididamente, eu havia interpretado mal a história e criado um novo arquétipo!
Ciente daquele momento em que me
entregava à confirmação de meu engano, a outra mulher se aproximou e disse :
" Quem foi que lhe falou que sou apenas uma encarregada do
almoxarifado?". Era Héstia, a deusa que eu pensava somente gerir as
provisões da casa.
A constatação do terrível engano
que cometi, levou-me à uma tristeza insuportável. Deparei-me com os anos que
desperdicei, representando um personagem que não tinha a menor correspondência
com as divindades que eu pensava estar honrando. Constatei o péssimo estado em
que me encontrava : fechada para os meus próprios desejos e necessidades de
mulher. Descobri que estava assassinando minha condição feminina, tornando-me
um ser amargo e sofredor. Vi, estampado em minha face, o futuro que me
aguardava : eu seria uma mulher que faria inumeráveis cobranças e exibiria o
meu sofrimento sem o menor pudor, esperando que o outro comigo resgatasse uma
dívida que eu lhe havia imposto.
Mirei meu corpo e nele vi as
mutilações que se acumularam ao longo de tanto tempo. Cicatrizes acolchoadas
por uma gordura doentia e patológica. Em meu corpo não mais havia a presença da
divindade, nele não existia o contorno sutil da Grande Mãe, e agora eu era
apenas uma massa de carne. Nada mais!
Sabedoras do meu desespero,
Deméter e Héstia revelaram-me uma maneira de reverter a maldição, aquela que eu
mesma me lançara. Eu teria que chamar por Afrodite, pois à ela pertenciam as
palavras que reverteriam o tal malefício.
Seguindo o conselho das duas,
concentrei meu coração na busca de Afrodite e roguei para que ele a trouxesse
até mim. Com a boa vontade própria dos corações, ele saiu prontamente em busca
da Deusa, deixando-me no sono que antecede os nascimentos. Não sei, com
certeza, quanto tempo se passou até o momento em que fui despertada por um
beijo de Afrodite. A Deusa estava outra vez no quarto, disposta a me dar mais
uma chance. Ao seu lado, estavam Deméter, Héstia e a quarta mulher, que até
agora eu não tinha a mínima idéia de quem era.
Falavam, entre si, uma língua
desconhecida que imaginei ser o grego arcaico. Por algum tempo fiquei excluída
do grupo, impossibilitada pela língua, até que elas se deram conta do que se
passava. Héstia, de todas a mais polida, desculpou-se em nome do grupo. Então,
restabelecida a comunicação, Afrodite pediu-me para que eu me despisse.
O pedido da deusa deixou-me
apavorada. Como eu poderia expor meu corpo mutilado para mulheres tão belas?
Como poderia expor a montanha de gordura que erigi no decorrer dos anos? Não!
Decididamente aquele era um pedido que eu não podia satisfazer!
Notando o meu constrangimento,
Afrodite falou-me para que eu não tivesse vergonha, pois meu corpo continuava
sendo um templo e que ele ainda guardava todas as tatuagens sagradas. Só que eu
me esquecera de honrá-lo e nele já não mais me recolhia para extrair
equilíbrio. No entanto, se eu não me apavorasse, já que sempre existe um
caminho de retorno, este templo estaria aberto e ávido por me receber.
Tranquilizada pelas sábias
palavras de Afrodite, despi-me sem nenhum constrangimento. Naquele instante, eu
já não sentia vergonha do meu corpo, pois sabia que tomara o caminho de volta
ao meu espaço sagrado.
Já despida, Afrodite e as outras
rodearam-me, entoando antigos cantos. À medida em que cantavam, espalhou-se um
delicioso aroma de rosas por todo ambiente. Senti uma tonteira sutil e
deixei-me com a sensação de que me transformara numa pluma, o que me deu a
impressão de que eu poderia alçar voo, se assim o quisesse.
Algum tempo transcorreu, sem que
me desse conta do quanto havia passado. Até que fui retirada deste
entorpecimento, sentindo um forte formigamento no corpo, como se minúsculas
descargas elétricas despejassem energia sobre a camada espessa das gorduras.
Enquanto sentia meu corpo
bombardeado por tal acúmulo de energia, fui tomada por um jato de resoluções
que inundavam o meu cérebro insistentemente. Decidi, então, que não mais
abusaria do açúcar, daria um tempo nos carbohidratos e dedicaria uma parte do
dia para movimentar o meu corpo, tratando-o corretamente. Esqueceria, por uns
tempos, dos refrigerantes e me dedicaria aos sucos naturais.
Afrodite, como se estivesse lendo
meus pensamentos, retribuiu-me com um riso franco e malicioso. Por fim,
disse-me ao pé do ouvido: "Estarei ao seu lado de hoje em diante.".
Depois de se comprometer com
minha jornada futura, Afrodite introduziu a quarta mulher, apresentando-a da
seguinte maneira: "Esta é a Lua, a Deusa que é feita de uma célula de
cada mulher. Ouça com atenção tudo aquilo que ela lhe falar, pois sua voz
representa a voz de todas nós. Seu canto é a melodia de todas as mulheres
quando fazem amor, quando limpam a casa, quando criam os filhos, quando
trabalham, quando sonham, quando brigam, quando blasfemam, quando perdoam e
quando enfeitiçam com suas obras. Nunca se esqueça de suas palavras e guarde-as
bem guardadas no coração.".
A Lua, que até ali permanecera
calada, aproximou-se com passos de bailarina e, com voz de oceano, me disse as
seguintes palavras:
Eu sou Senhora do sangue sagrado
a meretriz dos sucos vaginais.
Sou aquela que encarna o pecado
e habita as grotas infernais.
Fui eu que te dei o desejo
que desenhei no teu corpo
todos os riscos do sexo.
Fui eu que te embalei nos braços
e disse a todas que eras mulher.
Sou eu que ainda te guio
nos descaminhos que inventaste.
Sou eu que sustento as violações
de um corpo que mutilaste.
Tu, que és parte de mim mesma
esqueceste o lugar que te gerou.
Tomaste um rumo avesso e contrário
e renegaste quem te criou.
Mas tu és lua, mulher e loba
e serás assim até o instante final.
Não serás ferida,
porque és cura.
Não serás dor,
porque és prazer.
Não serás culpa,
porque és vida.
Não serás certeza,
porque és abismo!
Quando a última palavra do poema
foi enunciada, senti o chão se abrir aos meus pés e numa fração ínfima de tempo
me vi engolida por uma fenda. Estranhamente não senti medo e deixei-me levar
como uma pena é levada pelo vento.
À medida em que ia me
precipitando no abismo, vi passar, à minha frente, os últimos anos de minha
vida. Me vi redonda e pesada, grávida de Daniel e amedrontada pelas
circunstâncias. Experimentei os sabores da geladeira noturna e afoguei minhas
preocupações em bons nacos de bolo. Depois, me vi na gélida sala da maternidade
e tremi de frio e chamei pelo calor das mulheres que não estavam presentes.
Chamei por minha avó, parteira desde os quinze anos... e não fui ouvida. Daniel
nasceu cercado por médicos, num dia em que os homens, aflitos, aprimoram sua
condição masculina: o dia da decisão da Copa do Mundo!
Lembrei-me do meu primeiro pedido
depois de parir: um enorme sanduíche de queijo e presunto! No instante em que
me vi outra vez vivenciando as mordidas que dei no sanduíche, percebi o que a
comida havia representado por todos aqueles anos. Eu não queria um parto
assistido e realizado por homens! Como feiticeira, eu sabia muito bem que este
momento pertence somente às mulheres e só elas o podem compartilhar. Como
feiticeira, eu sabia perfeitamente que minha energia seria afetada, se me
permitisse ser violada por outras mãos que não o de outras mulheres. Compreendi,
então, que a fome absurda que me corroeu desde o período da gravidez, nada mais
era do que uma forma do meu corpo expressar o seu inconformismo. Assim, toda
vez que comia, era como se eu dissesse que não estava centrada e feliz!
Quando entendi esta lição, me vi
outra vez em meu quarto, no solo. As quatro mulheres sorriam entre si, como se
estivessem cientes de tudo que se passara...
Afrodite, a deusa que reneguei
por tanto tempo, veio ao meu encontro, dizendo que o feitiço estava desfeito e
que de agora em diante eu devia voltar ao meu verdadeiro caminho. Tudo
dependeria de mim mesma e daquilo que eu construísse. Elas estariam todas ao
meu lado, mas não poderiam interferir em meus atos. Acabando de dizer tudo
isso, deu-me um longo abraço e se retirou do quarto, seguida pelas outras.
No dia seguinte, ao acordar,
tomei a primeira providência. Fui ao banheiro e, antes de lavar o rosto, subi
na balança que tanto evitava. Anotei o peso e fui para o café. Não o adocei com
açúcar e dispensei o pão habitual. Retomei os velhos hábitos da adolescência e
saí para uma longa volta de bicicleta.
Como as deusas estavam ao meu
lado, pude sentir que mexiam os pauzinhos. Logo encontrei Paula, uma amiga,
dona de um restaurante macrobiótico. Conversamos por um longo tempo sobre
alimentação, obesidade e a condição feminina. Ao fim da conversa, eu já havia
me decidido: adotaria a macrobiótica como primeiro passo para a purificação de
meu corpo.
Desde então encontro-me outra vez
no caminho. Nunca mais transferi meus sofrimentos para a comida. Redescobri o
encanto de seduzir e ser bela para mim mesma.
Reencontrei o equilíbrio perdido
e hoje posso mesmo dizer que estou muito feliz! Vez por outra, quando me
encontro na frente do espelho, ouço a risada de Afrodite. E parece que a
escuto, dizendo, maliciosa: "Segue em frente, menina!".
(Texto de Márcia Frazão, extraído do livro: A Panela de Afrodite)