quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O MICHÊ




Um jovem bem vestido, belo rosto, corpo melhor, tira um telefone celular do bolso, digita um número e espera. Do outro lado, uma voz masculina, rouca: alô?

― E aí, cara? Que que houve? Por que você sumiu?... Aposto que achou alguém mais bonito que eu – ar zombeteiro.
(pausa)
―  Não brinca, cara – diz, entre risos. – Ta pensando que eu sou trouxa? Um filho? Você? Daquela tua mulher? Nem fodendo!
(silêncio do outro lado)
― É sério, não é?... Então você vai ter um filho... Quem diria? Nunca me disse que queria ser pai quando ia atrás de mim lá na sauna da Le Boy... Mas, também, não dava tempo, né? Eu conheço seu tipo... Debaixo do sol, banca o machão, o garoto do papai. Trabalha, estuda, cumpre todas as regras... Casa e, vejam só, agora vai ser pai! Mas na escuridão da noite, ráh! Protegido pela sombra da lua, você busca a segurança em braços mais fortes que os seus. E eu estava lá, não estava. Olhando pra você com esses olhos de cumplicidade alugada... Essa boca de desejo disponível. E você adora passear pelos músculos do meu corpo, enquanto eu te preencho com a masculinidade que te alimenta na simulação da tua vida.
(pausa)
― Nem vem, você sabe que eu não sou gay. Faço isso pra viver. E sou bom que faço, não sou?
(Pausa)
― Mas você abusou da minha confiança, cara. Você ficou me devendo, lembra? Do nosso último encontro? Disse que ia voltar, que ia pagar... E eu, como estou acostumado a te ver quase toda semana, não me importei. Galinha de casa não se corre atrás e você já é cliente antigo. Tudo pela nossa amizade.
(pausa)
― Não, não pensa isso, não faz assim. É claro que eu não liguei pra te cobrar. Não vou te cobrar. Vou deixar de cortesia. Como eu disse, pela nossa amizade. Mas, como somos amigos, você também vai me fazer um favor.
(pausa)
― Me meti numa parada errada. Fiz como você, comprei umas coisas pra pagar depois e não paguei, só que os caras não eram meus amigos. Agora estão atrás de mim. Ou pago, ou morro.
(pausa)
― O que você pode fazer? Simples. Vou passar na tua casa hoje a noite. Sei onde você mora, lembra? E você vai estar com um cheque pra mim. Cinqüenta mil reais.
(pausa)
― Pra cima de mim, cara? Tu é mauricinho, teu pai é figurão, acionista da Petrobrás e de não sei quantas empresas... Cinqüenta mil salva a minha vida, mas não é nada pra tu!
(pausa)
― Sei lá, diz que é pra pagar a escova progressiva da tua mulher ou as fraldas do teu filho que vai nascer. Isso não é problema meu. Mas é bom você estar com esse cheque quando eu chegar aí.
(pausa)
― Por quê? Bom, porque nós somos amigos... E porque você não quer que o teu pai, a tua mãe e aquela idiota da tua mulher saibam o viadinho chupador de pica que você é. Eu vou detestar contar pra eles que você gosta de escalar o pau de sebo enquanto brinca de rodeio. Opa! Será que isso é possível? – risinho sarcástico.
(pausa)
― Bom, cara! Que bom que a gente está se entendendo... Quer saber? Estou com saudade dessa sua bundinha branca. E você deve estar louco de vontade de dar mim, não está?
(pausa)
― Eu tenho boa memória. Tua mulher tem reunião depois do expediente nas quintas... E hoje é quinta-feira. Também sou bom de data, viu? Toma um banho bem gostoso e me espera... Eu vou pegar meu cheque e depois vou te foder. Vou foder você na cozinha, em cima do sofá, na mesa da sala de jantar e, por fim, na cama que você dorme com a pobre coitada. Vou foder você gostoso, sem pressa, mas com firmeza. Do jeito que eu sei que você gosta... Paro quando trovejar, nenhum de nós aguentar ou quando me implorar.
(pausa)
(um risinho malicioso)
― Respira fundo, cara. Até mais tarde.
(desliga o telefone).



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domingo, 24 de agosto de 2014

HINO CAPÉLICO I, A LILITH



Ó, Musas, valham-me nesta noite sem lua. É à Lilith que dedico as profundezas do meu canto.

Noite silenciosa. Sensação de ameaça. Um vento seco e um pio rasga o ar.

Ave de Rapina. Deita Suas asas sobre a presa que se debate.

Senhora das Corujas. Amante das Feras da Noite.

Vento da Madrugada, que sopra silencioso e corre sem sair do lugar.

Agouro dos Injustos, Flagelo dos Perniciosos. Guardiã dos Segredos da Alma. A Boa Carcereira.

Ouve o meu chamado.

Lua Negra, do alo ensanguentado.

Devoradora da Prole Desalmada, que se assenta aos pés da árvore de Inanna.

Tu, que cavalgas o pássaro da noite e dominas os caminhos do Abismo.

Conhecedora de todas as razões. A que conhece cada canto do insondável labirinto das paixões.

Outra face do amor. Senhora que não teme a própria força. Não se constrange ante a face do poder.

Olhos que devolvem o olhar. Espelho do ego. Consorte daquele que anuncia a luz.

Que sob os galhos da Árvore da Vida as sombras não se ocultem. Possas tu alimentar-se da sujeira que habita e corrói a alma humana.

Vingadora dos Injustiçados. Dominadora do Caos.

Cobrador encontre o devedor. Nenhuma ação desconheça a paga, como a presa não desconhece o predador. 

Aos justos, a chama flamejante do archote. Aos injustos, tua visita aos pés da cama, até na hora da morte.  


sábado, 16 de agosto de 2014

CONSIDERAÇÕES SOBRE PAGANISMO E O SENTIMENTO ANTICRISTÃO



Antes de começarmos, uma advertência se faz necessária: este texto é fruto de uma visão pessoal e não foi escrito para convergir na queda d’água dos pensamentos na atualidade. Pelo contrário, é um texto escrito para divergir e, ainda que não tenha a intenção de encerrar o assunto, também não tem a pretensão de ser agradável. Outra coisa que vale a pena dizer é que a linha argumentativa a seguir não se orienta contra pessoas, mas contra ideias e circunstâncias. Dito isso, coloquemos o dedo na ferida.

Embora eu não seja nada presente nos nichos virtuais sobre paganismo, há tempos venho percebendo que o dito “meio pagão” se rege por certos modismos ideológicos – geralmente antagônicos. Traçando uma linha de tempo extremamente resumida, apenas para exemplificar, primeiro foi o boom da Wicca, se não me falha a memória, aqui no Brasil, no início dos anos 90 (sim, estou ficando velho). Depois foi a moda da “bruxaria tradicional”. Todo mundo se dizia de alguma “tradição familiar milenar”. Era legal e dava status. Consequentemente, descer o cacete na Wicca e em seus fundadores tornou-se cult.

Acho que mais ou menos na mesma época, uma onda anticristã começou a banhar as praias neo-pagãs, em grande parte motivada pelos estudos histórico-filosóficos que a prática do paganismo exige nos dias de hoje (pois é, ser pagão é uma coisa trabalhosa à beça). Buscava-se um purismo, que eu não consigo definir senão como tolo, em que toda espécie de sincretismo, sobretudo com elementos cristãos, passou a ser severamente criticado. Atualmente, na era do “politicamente correto” (seja lá o que isso for), o barato é outro – falar bem do cristianismo é legal pacas! Há, diz essa nova geração, que se respeitar o cristianismo, que reconhecer os seus méritos, do contrário seria incentivo à intolerância religiosa.

Ora, claro que eu não sou a favor da intolerância religiosa. O problema é que, no afã do discurso, como de costume, metem-se os pés pelas mãos e busca-se, para usar o vernáculo, tapar o sol com a peneira.

Lembro que nas manifestações do ano passado (2013) uma espécie de jargão se tornou bastante popular: “não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”. Sem medo de ser clichê, reproduzo-o aqui, pois acho que ilustra com perfeição minhas elucubrações para este texto. Quero crer que, senão todos, pelo menos a maior parte de nós, pagãos, compreende que os paganismos, em suas mais variadas denominações (afinal, paganismo é uma denominação genérica para uma vasta pluralidade de tradições religiosas), nunca foram essencialmente excludentes. Pelo contrário, eu ousaria dizer que a essência do paganismo, enquanto filosofia religiosa, é a diversidade. Retirando-se o componente cultural do etnocentrismo, comum a praticamente todos os povos religiosos de uma matriz politeísta, os mesmos, ao deparar-se com outras matrizes politeístas, geralmente dão luz ao sincretismo, enxergando seus próprios deuses sob outras roupagens. Isso quando, em termos históricos, o “novo deus” realmente não se parecia com nada familiar àquela cultura e mesmo assim seu culto era absorvido, passando a coexistir com a multiplicidade de cultos já existentes (o caso de Hécate e Dionísio na Grécia).

Lembro de ter ouvido de um professor de História Antiga, ainda no início da graduação, que para um povo politeísta a chegada de um novo deus não altera significativamente a ordem das coisas. É apenas mais um. No entanto, para um povo monoteísta, a chegada de outro deus acaba colocando em xeque a ordem estabelecida, gerando, como consequência, tensão e conflito.

De fato, quando a religião dos hebreus chegou à Roma pagã, com seu deus único, isso não provocou nenhum choque. Roma, assim como a Pérsia, não desejava problemas com os deuses dos povos conquistados e jamais impôs sua religião. Em Israel, os hebreus puderam continuar com seus cultos e sua religião. A religião hebraica, por outro lado, não foi capaz de lidar bem com a alteridade dos romanos, de coexistir, de aceitar dividir o mesmo espaço (alguma semelhança com os dias atuais?), e no contexto do cristianismo a coisa não foi diferente.

As perseguições aos cristãos, das quais eles se queixam até hoje, começaram motivadas em grande parte pelo comportamento hostil dos próprios cristãos. Coisas como ataques aos deuses em praça pública, depredação de santuários, agressão a sacerdotes (novamente, alguma semelhança com os dias atuais?). E quando finalmente o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império, o que já existia enquanto perseguição ideológica não tardou a se tornar proibição jurídica. O culto aos deuses antigos tornou-se ilegal.

Sim, o discurso pacifista é belo, mas não adianta fingir que este, acima, não é o cristianismo. Como uma religião de livro, todo o código moral de seus seguidores, o conjunto de obrigações que cabe aos homens e mulheres, está registrado na Bíblia. Outro dia, enquanto assistia à TV Brasil, vi, numa daquelas vinhetas em que religiosos falam de suas respectivas religiões, um pastor evangélico dizer que “a Bíblia não contém a palavra de Deus, ela É a palavra de Deus”. E é suficiente folheá-la para encontrar algumas obrigações institucionais de todo cristão, um tanto condenáveis de nossa perspectiva moderna. Exemplos:

1.      Os deuses antigos são demônios: “todos os deuses dos gentios são demônios” (Salmos 95,5).

2.      A necessidade de pregar e converter os não-cristãos: “proclama a palavra, insiste, no tempo oportuno e no inoportuno, refuta, ameaça, exorta com toda a paciência e doutrina.” (2 Timóteo 4:2).

3.      O pecado da homossexualidade: “com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é;” (Levítico 18:22) “por isso Deus os abandonou às paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza” (Romanos 1:26).

4.      Submissão da mulher: “porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo” (Efésios 5:23).

Essas só para citar algumas.

Daí me dirão – “ah, mas o cristianismo prega o amor ao próximo”. Respondo que, na verdade, o cristianismo prega o amor por seu semelhante. Adivinhem quem é o semelhante do cristão! Exatamente. Outro cristão. Não fosse assim, as cruzadas, por exemplo, jamais poderiam ter acontecido. Nem vou comentar dos tribunais da Inquisição.

“Ah, mas nem todo cristão é assim.” Isso é verdade. E eu acho ótimo. Mas é preciso considerar que essas pessoas, embora ótimos seres humanos, talvez não sejam boas cristãs do ponto de vista de sua própria tradição religiosa.

A questão é que aprendemos a considerar o cristianismo como o início de toda moral (ainda que de fato não seja). Nossa educação está repleta de seus padrões como referência do certo. A ideia do pecado nos assombra das profundezas do nosso inconsciente. Além disso, tem todo aquele papo do universalismo, de que todas as religiões levam ao mesmo Deus... E é muito difícil, nesta altura da vida, de repente a gente se dar conta de que, não, nem todas as religiões levam ao mesmo Deus. Não, nem todas as religiões têm os mesmos objetivos. Não, todos os deuses, no fundo, NÃO são nomes diferentes para o mesmo deus. E, finalmente, sim, algumas ideologias religiosas podem ser ruins segundo nossos pontos de vista e aquilo que queremos para nós.

Por tudo o que foi dito, fica fácil entender porque tantos pagãos, hoje, se sentem movidos por um certo sentimento anticristão. O cristianismo não é bom para essas pessoas. Eu mesmo, devo confessar, não acho o cristianismo bom pra mim, e nem mesmo para o mundo. Acredito que o problema maior nem seja o rígido código moral, os dogmas inquestionáveis, a concepção unilateral do mundo, mas o fato de ela, declaradamente, não aceitar sequer a existência do divergente. Como lidar de maneira politicamente correta, com diplomacia e aceitação, com uma ideologia que tem por premissa a colonização do outro? Para a qual o simples fato de você existir já é uma ofensa? Deixar de existir não é uma opção. Ignorar essa ideologia já foi historicamente mostrado ser impossível. Para todas as denominações pagãs de que já tive notícia, conviver com o divergente não se mostrou um desafio intransponível, justamente por causa da pluralidade de aspectos que essas tradições reconhecem na natureza e na vida. São as tradições cristãs, em nossa realidade ocidental, que encontram severas dificuldades para coexistir com outros mundos que não o seu. E no afã de conservar apenas a sua resposta, se esforçam em destruir, ideológica ou belicamente, todas as outras. Se fosse possível falar em “pecado” ou “heresia” no contexto pagão e politeísta, este certamente estaria caracterizado pela tentativa de colocar todos os homens sob o mesmo padrão.

Hoje, convivemos, no Brasil, com uma bancada fundamentalista cristã que avança cada dia mais no sentido de estabelecer hegemonia política, retirando ou concedendo direitos conforme as suas próprias crenças. Tudo perfeitamente de acordo com o livro sagrado que os rege.

Terreiros de candomblé são invadidos e destruídos à luz do dia sem que ninguém precise responder por isso. Pessoas sofrem discriminação religiosa em seus trabalhos e escolas, algumas vezes são agredidas no meio da rua. Se um pagão entra em um estabelecimento comercial em que o dono ou os funcionários são cristãos e estão ouvindo hinos de louvor, ele provavelmente voltará ao estabelecimento, porque isso, para ele, não é nada demais. Se um cristão entra em um estabelecimento comercial dirigido por adeptos de religiões afro e eles estiverem ouvindo suas canções sagradas, o cristão provavelmente não voltará e o estabelecimento correrá o risco de falir. Hoje, ao receber um montador de móveis em minha residência, onde há diversos ícones de minha religiosidade, fui obrigado a ouvir um “Jesus te ama”, em nítido tom de provocação, ao final... Mas algumas pessoas acham que eu não posso dizer “que os Deuses lhe abençoem” a um cristão, porque soará ofensivo e ele “não vai entender”. Me pergunto, que tipo de liberdade é esta?

O que urge tornar-se claro é que a necessidade de certo posicionamento, por parte de nós, pagãos dos mais diversos segmentos, não é uma questão de espiritualidade, apenas, mas um ato político de luta por espaço. Cabe a nós delimitar e exigir o espaço que nos pertence. Esta geração, que chegou e encontrou um mundo um tanto pacífico, com pessoas cheias de direitos, parece não saber o trabalho que dá conquistar direitos. Coisas como liberdade e respeito não nos são dadas de graça, elas precisam ser conquistadas.

“Proselitista!”, me acusarão alguns. A estes eu digo que isto jamais foi uma campanha para conversão ou colonização do outro. “É preciso respeitar as pessoas que são cristãs”, dirão outros. Concordo. Na maior parte das vezes, não é preciso desrespeitar alguém para fazer este alguém te respeitar também. Basta saber delimitar seu próprio espaço. Mostrar com suas atitudes que o espaço de um termina onde começa o do outro. Mas ninguém faz isso se escondendo, faz?

Por fim, eu gostaria de dizer a quem possivelmente se sentir ofendido com o que eu disse lá em cima, sobre alguns cristãos serem excelentes seres humanos, mas péssimos religiosos, que não é nenhum orgulho ser bom religioso na religião que descrevi. Ao menos não sob o paradigma cultural que se desenha em nossos dias. Talvez em tempo algum. A esses cristãos, que acreditam num cristianismo diferente, e infelizmente são exceção, eu digo – que vocês sejam em número cada vez maior, para que consigam, talvez num futuro utópico, ressignificar a religião de maneira a fazê-la não mais um instrumento poderoso de dominação de massa e, quem sabe, alguma coisa mais compatível com toda a diversidade que há no mundo.
  


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O MITO DAS ESTAÇÕES

O Retorno de Perséfone. Frederic Leighton, 1891.


“Essas coisas nunca aconteceram, mas sempre existiram.” 

Roberto Calasso


Uma das mais belas e significativas passagens da tradição grega antiga é o mito das estações, que remonta a Elêusis e aos mistérios celebrados em honra às duas Senhoras, Deméter e Perséfone. Em se tratando de mitos, é muito difícil estabelecer uma sequência cronológica, uma vez que o tempo mítico é cíclico e não diz respeito a coisas que aconteceram, mas a coisas que acontecem, hoje, agora, todos os dias. E embora a narrativa pareça girar em torno de duas Deusas, ela deve ser vista mais como uma interação complexa entre forças indispensáveis. A ausência de apenas uma delas, mesmo daquela que pareça mais insignificante para o desfecho das tramas, seria, acreditamos, suficiente para modificar completamente o panorama dos resultados.

Com tudo isso em mente, consideremos que nossa narrativa começa com Plutão, honroso Senhor das Profundezas Abissais, seu trabalho incansável, porém silencioso, e sua infinita solidão.

Zeus pai, Senhor dos Céus e da vida, preocupado com Plutão, seu irmão mais jovem, em sua vida solitária e distante, procurou Afrodite, dos Doces Amores, para que ela intercedesse em favor do Senhor do Submundo e lhe encontrasse alguma companhia. Em se tratando de amor, Afrodite é sempre sensível e dificilmente recusa um pedido de ajuda. Ainda mais em se tratando do Senhor do Olimpo em pessoa – e essência.

Além disso, passeava pelos bosques, naquele tempo, Coré, filha única de Deméter, de trigais madeixas, com o próprio Zeus. Sempre acompanhada por um cortejo de ninfas, as quais lhe confiara a sua guarda a própria Deméter, Coré não se interessava pelo amor. E isso incomodava severamente a Afrodite, que recentemente já havia se sentido afrontada quando Zeus concedeu a Atená, de olhos glaucos, Ártemis, do arco enluarado, e Héstia, de cálida candura, o direito de permanecerem eternamente virgens. Vendo no pedido de Zeus uma oportunidade de evitar nova ofensa, Afrodite convocou o filho Eros, o amor, e ordenou-lhe que agisse.

Foi assim que, em certa noite enluarada, Zeus, que se fizera cúmplice de Afrodite, convocou o irmão desde sua sombria morada e, quando este passava, invisível, como de costume, pelos campos onde Coré colhia flores sob as gotas de orvalho, o Cupido acertou-lhe em cheio o peito com uma de suas devastadoras setas douradas. Confuso com o sentimento desconhecido que agora tomava-lhe de assalto, o Senhor do Averno não pôde controlar o ímpeto – com a altivez e tímida sensualidade que lhe era natural, aproximou-se e, declarando seu amor, pediu Coré em casamento.

Dividida entre seu antigo desinteresse pelos mistérios de Afrodite e a austera sedução de Hades, Coré confiou a decisão a sua mãe. Mas Deméter, incapaz de prescindir da companhia de Coré, negou a mão da filha ao Senhor das Trevosas Planícies.

Inconformado, Plutão procurou o Senhor dos Céus, seu irmão, pedindo uma intercessão. Havia sido por um ardil de Zeus que ele agora padecia de paixão, então cabia ao Trovejante resolver aquele impasse. E foi assim que Zeus, temendo desagradar a qualquer dos imortais fraternos, disse que Plutão esperasse o melhor momento.

Um dia, enquanto Coré apreciava as pétalas lânguidas de um narciso à beira do lago, o chão abriu-se de repente e, diante de si, surgiu o insondável Plutão. Tomada nos braços vigorosos do sombrio amante, ela contemplou a sua face proibida. No brilho esfumaçado de seus olhos de obsidiana, a jovem donzela encontrou o próprio semblante... e desfaleceu.

Foi levada, raptada, para os confins do Averno, entre almas penitentes e amaldiçoadas, mas também tesouros de radiante beleza e férteis terras onde floresciam suculentas romãs. Quando voltou a si, encontrou-se dividida entre o horror daquela escuridão e sua beleza intrigante; entre o amor e a companhia da mãe e os novos sentimentos pelo anfitrião, que desejava desposar-lhe e, gentilmente, oferecia-lhe o trono de seu reino, o mais vasto e rico quinhão da criação.

Enquanto isso, Deméter, angustiada com a ausência repentina de Coré, procurava a filha em toda a parte. Seu cortejo de ninfas, filhas do deus-rio Achelous e da musa Terpsícore, tampouco sabia onde ela estava. Enfurecida, a Deusa puniu-as pela falta de zelo. Transformou-as em sereias, horrendas mulheres-pássaro, que deveriam voar por toda parte até encontrar a jovem desaparecida. Depois, subiu ao Olimpo para interrogar aos Deuses e ao próprio Zeus, invocando sua responsabilidade de pai. Mas os deuses, sob as ordens de Zeus, Poderoso, silenciaram-se. Ninguém ousava contar a Deméter o destino de Coré.

A Deusa de loiras tranças mergulhara em profunda tristeza. Consternada, deixou a morada dos Deuses eternos e pôs-se a vagar pelo mundo dos homens em busca de Coré. Seus cabelos dourados embranqueceram. Sua pele aveludada enrugou-se. Deméter, enlutada, vagava pelas estradas e cidades humanas como uma velha peregrina e maltrapilha.

Tomada de devastadora tristeza, logo abandonou seus ofícios divinos. As terras tornaram-se inférteis, As plantações definhavam, assim como os animais. As sementes nem chegavam a nascer. Toda a obra de Gaia e Urano, a própria criação, afundava-se em frio desolador, doenças e fome.

Os Deuses desesperavam-se. Se a tristeza de Deméter não tardasse a ser curada, talvez a própria Terra não sobrevivesse. Ísis, de asas douradas, a mensageira do Olimpo, procurava-a a pedido de Zeus, mas a Deusa não queria ser encontrada.

Certo dia, ao passar por uma encruzilhada, encontrou-se com Hécate, a Portadora dos Archotes, aquela que faz o que lhe apraz. Hécate, Senhora das encruzilhadas, dos caminhos em todos os reinos e planos da existência, até mesmo das tramas do destino, compadeceu-se da dor de Deméter. Afinal, também era mãe.

—Você, por acaso, teria visto o que aconteceu a Coré? — questionou a Deusa enlutada.

— Não — Hécate respondeu — Mas sua dor ecoa em meu ventre. Eu não vi, mas sei quem tenha visto.

A Portadora dos Archotes iluminou, assim, o caminho de Deméter até o encontro de Hélio, Resplandecente, Aquele que tudo vê.

— Coré — disse o Sol — foi levada para o sombrio reino de Plutão, onde este a fez sua rainha. O próprio Zeus assim o permitiu em um acordo entre irmãos.

Deméter ficou furiosa. Quis ir até o Olimpo, confrontar o Trovejante. Mas Hécate, de bons conselhos, orientou-a diferente. Deméter, em negros véus, seguiu para seu santuário, em Elêusis, e lá despiu-se do disfarce. Mas a Terra continuava a morrer. Não tardou para que Íris a encontrasse, levando consigo as súplicas divinas. Irredutível, a Senhora dos Trigais avisou que a Terra somente floresceria outra vez quando Coré voltasse aos seus braços. E o recado a Zeus foi dado.

Vendo-se sem saída, Zeus não teve alternativa senão pedir a Plutão que devolvesse Coré aos braços de sua mãe. Mas a própria Coré já não era a mesma de outrora. Uma vez rainha das planícies abissais, tornara-se Perséfone. Não mais menina, mas mulher. Não mais filha, mas esposa.

Astuto, o Senhor Sombrio deu-lhe três sementes de suculenta romã. A regra é clara — aquele que prova das delícias do Averno ao Averno deve pertencer.

A iniciativa de Plutão, mais uma vez, obrigava Zeus, enquanto árbitro divino, a uma difícil decisão. De um lado, Démeter, mãe inconsolável, recusava-se a prover a Terra de frutos frescos enquanto Coré não estivesse de volta a sua companhia. De outro, Plutão, sombrio Senhor do submundo, reclamava seus direitos de monarca e esposo.

Talvez pelo conselho auspicioso de Atená, a Virgem de Olhos Glaucos, Zeus decidiu — Perséfone haveria de voltar. Permaneceria dois terços de um ciclo do Sol (o ano) ao lado de Deméter no Olimpo, mas, ao final desse período, voltaria aos abraços voluptuosos de Plutão no Averno, completando o ciclo como Senhora das Profundezas Abissais, a benfazeja, porém temida, Rainha do Submundo.

Com a anuência de todos os interessados, Hermes, o Guia das Almas, recebeu a incumbência de trazer Perséfone, outra vez Coré, aos braços amorosos da Mãe. E foi assim que, suspiram as musas, nasceram as estações. Quando Perséfone atravessa as portas do Averno, no início da Primavera, guiada pelos pés ligeiros de Mercúrio, o rosto de Deméter se enche de sorrisos. As flores brotam e o frio se esvai.

A felicidade da Senhora alcança o apogeu em pleno verão, quando a Terra presenteia aos seres vivos com seus frutos e sementes. Mas, no início do outono, quando Coré, outra vez Perséfone, precisa retornar à sombria morada de Plutão, a felicidade esfuziante no rosto iluminado da Deusa a abandona pouco a pouco, até culminar no gelo infértil do inverno. É quando a saudade mais aperta.

Lá embaixo, onde nenhuma criatura viva ousa chegar, Perséfone, de sua parte, criou um santuário para os protegidos de Deméter. São os Campos Elísios, onde a Deusa, eternamente, vela pelos protegidos de sua mãe, agora protegidos seus.