O Retorno de Perséfone. Frederic Leighton, 1891. |
“Essas coisas nunca aconteceram, mas sempre existiram.”
Roberto Calasso
Uma das mais belas e
significativas passagens da tradição grega antiga é o mito das estações, que
remonta a Elêusis e aos mistérios celebrados em honra às duas Senhoras, Deméter
e Perséfone. Em se tratando de mitos, é muito difícil estabelecer uma sequência
cronológica, uma vez que o tempo mítico é cíclico e não diz respeito a coisas
que aconteceram, mas a coisas que acontecem, hoje, agora, todos os dias. E
embora a narrativa pareça girar em torno de duas Deusas, ela deve ser vista
mais como uma interação complexa entre forças indispensáveis. A ausência de
apenas uma delas, mesmo daquela que pareça mais insignificante para o desfecho
das tramas, seria, acreditamos, suficiente para modificar completamente o
panorama dos resultados.
Com tudo isso em mente,
consideremos que nossa narrativa começa com Plutão, honroso Senhor das
Profundezas Abissais, seu trabalho incansável, porém silencioso, e sua infinita
solidão.
Zeus pai, Senhor dos Céus e da
vida, preocupado com Plutão, seu irmão mais jovem, em sua vida solitária e
distante, procurou Afrodite, dos Doces Amores, para que ela intercedesse em
favor do Senhor do Submundo e lhe encontrasse alguma companhia. Em se tratando
de amor, Afrodite é sempre sensível e dificilmente recusa um pedido de ajuda.
Ainda mais em se tratando do Senhor do Olimpo em pessoa – e essência.
Além disso, passeava pelos
bosques, naquele tempo, Coré, filha única de Deméter, de trigais madeixas, com
o próprio Zeus. Sempre acompanhada por um cortejo de ninfas, as quais lhe
confiara a sua guarda a própria Deméter, Coré não se interessava pelo amor. E
isso incomodava severamente a Afrodite, que recentemente já havia se sentido
afrontada quando Zeus concedeu a Atená, de olhos glaucos, Ártemis, do arco
enluarado, e Héstia, de cálida candura, o direito de permanecerem eternamente
virgens. Vendo no pedido de Zeus uma oportunidade de evitar nova ofensa,
Afrodite convocou o filho Eros, o amor, e ordenou-lhe que agisse.
Foi assim que, em certa noite enluarada, Zeus, que se fizera cúmplice de Afrodite, convocou o irmão desde
sua sombria morada e, quando este passava, invisível, como de costume, pelos
campos onde Coré colhia flores sob as gotas de orvalho, o Cupido acertou-lhe em cheio o peito com uma
de suas devastadoras setas douradas. Confuso com o sentimento desconhecido que
agora tomava-lhe de assalto, o Senhor do Averno não pôde controlar o ímpeto – com a altivez e tímida sensualidade que lhe era natural, aproximou-se e, declarando seu amor, pediu Coré em casamento.
Dividida entre seu antigo
desinteresse pelos mistérios de Afrodite e a austera sedução de Hades, Coré confiou
a decisão a sua mãe. Mas Deméter, incapaz de prescindir da companhia de Coré, negou
a mão da filha ao Senhor das Trevosas Planícies.
Inconformado, Plutão procurou o
Senhor dos Céus, seu irmão, pedindo uma intercessão. Havia sido por um ardil de
Zeus que ele agora padecia de paixão, então cabia ao Trovejante resolver aquele
impasse. E foi assim que Zeus, temendo desagradar a qualquer dos imortais
fraternos, disse que Plutão esperasse o melhor momento.
Um dia, enquanto Coré apreciava
as pétalas lânguidas de um narciso à beira do lago, o chão abriu-se de
repente e, diante de si, surgiu o insondável Plutão. Tomada nos braços
vigorosos do sombrio amante, ela contemplou a sua face proibida. No brilho esfumaçado
de seus olhos de obsidiana, a jovem donzela encontrou o próprio semblante... e
desfaleceu.
Foi levada, raptada, para os
confins do Averno, entre almas penitentes e amaldiçoadas, mas também tesouros
de radiante beleza e férteis terras onde floresciam suculentas romãs. Quando
voltou a si, encontrou-se dividida entre o horror daquela escuridão e sua
beleza intrigante; entre o amor e a companhia da mãe e os novos sentimentos
pelo anfitrião, que desejava desposar-lhe e, gentilmente, oferecia-lhe o trono
de seu reino, o mais vasto e rico quinhão da criação.
Enquanto isso, Deméter,
angustiada com a ausência repentina de Coré, procurava a filha em toda a parte.
Seu cortejo de ninfas, filhas do deus-rio Achelous e da musa Terpsícore,
tampouco sabia onde ela estava. Enfurecida, a Deusa puniu-as pela falta de
zelo. Transformou-as em sereias, horrendas mulheres-pássaro, que deveriam voar
por toda parte até encontrar a jovem desaparecida. Depois, subiu ao Olimpo para
interrogar aos Deuses e ao próprio Zeus, invocando sua responsabilidade de pai.
Mas os deuses, sob as ordens de Zeus, Poderoso, silenciaram-se. Ninguém ousava
contar a Deméter o destino de Coré.
A Deusa de loiras tranças
mergulhara em profunda tristeza. Consternada, deixou a morada dos Deuses
eternos e pôs-se a vagar pelo mundo dos homens em busca de Coré. Seus cabelos
dourados embranqueceram. Sua pele aveludada enrugou-se. Deméter, enlutada,
vagava pelas estradas e cidades humanas como uma velha peregrina e maltrapilha.
Tomada de devastadora tristeza,
logo abandonou seus ofícios divinos. As terras tornaram-se inférteis, As
plantações definhavam, assim como os animais. As sementes nem chegavam a
nascer. Toda a obra de Gaia e Urano, a própria criação, afundava-se em frio
desolador, doenças e fome.
Os Deuses desesperavam-se. Se a
tristeza de Deméter não tardasse a ser curada, talvez a própria Terra não
sobrevivesse. Ísis, de asas douradas, a mensageira do Olimpo, procurava-a a
pedido de Zeus, mas a Deusa não queria ser encontrada.
Certo dia, ao passar por uma
encruzilhada, encontrou-se com Hécate, a Portadora dos Archotes, aquela que faz
o que lhe apraz. Hécate, Senhora das encruzilhadas, dos caminhos em todos os
reinos e planos da existência, até mesmo das tramas do destino, compadeceu-se
da dor de Deméter. Afinal, também era mãe.
—Você, por acaso, teria visto o
que aconteceu a Coré? — questionou a Deusa enlutada.
— Não — Hécate respondeu — Mas
sua dor ecoa em meu ventre. Eu não vi, mas sei quem tenha visto.
A Portadora dos Archotes
iluminou, assim, o caminho de Deméter até o encontro de Hélio, Resplandecente, Aquele
que tudo vê.
— Coré — disse o Sol — foi levada
para o sombrio reino de Plutão, onde este a fez sua rainha. O próprio Zeus
assim o permitiu em um acordo entre irmãos.
Deméter ficou furiosa. Quis ir
até o Olimpo, confrontar o Trovejante. Mas Hécate, de bons conselhos,
orientou-a diferente. Deméter, em negros véus, seguiu para seu santuário, em
Elêusis, e lá despiu-se do disfarce. Mas a Terra continuava a morrer. Não
tardou para que Íris a encontrasse, levando consigo as súplicas divinas.
Irredutível, a Senhora dos Trigais avisou que a Terra somente floresceria outra
vez quando Coré voltasse aos seus braços. E o recado a Zeus foi dado.
Vendo-se sem saída, Zeus não teve
alternativa senão pedir a Plutão que devolvesse Coré aos braços de sua mãe. Mas
a própria Coré já não era a mesma de outrora. Uma vez rainha das planícies
abissais, tornara-se Perséfone. Não mais menina, mas mulher. Não mais filha,
mas esposa.
Astuto, o Senhor Sombrio deu-lhe três
sementes de suculenta romã. A regra é clara — aquele que prova das delícias do
Averno ao Averno deve pertencer.
A iniciativa de Plutão, mais uma
vez, obrigava Zeus, enquanto árbitro divino, a uma difícil decisão. De um lado,
Démeter, mãe inconsolável, recusava-se a prover a Terra de frutos frescos
enquanto Coré não estivesse de volta a sua companhia. De outro, Plutão, sombrio
Senhor do submundo, reclamava seus direitos de monarca e esposo.
Talvez pelo conselho auspicioso
de Atená, a Virgem de Olhos Glaucos, Zeus decidiu — Perséfone haveria de
voltar. Permaneceria dois terços de um ciclo do Sol (o ano) ao lado de Deméter
no Olimpo, mas, ao final desse período, voltaria aos abraços voluptuosos de
Plutão no Averno, completando o ciclo como Senhora das Profundezas Abissais, a
benfazeja, porém temida, Rainha do Submundo.
Com a anuência de todos os
interessados, Hermes, o Guia das Almas, recebeu a incumbência de trazer
Perséfone, outra vez Coré, aos braços amorosos da Mãe. E foi assim que,
suspiram as musas, nasceram as estações. Quando Perséfone atravessa as portas
do Averno, no início da Primavera, guiada pelos pés ligeiros de Mercúrio, o
rosto de Deméter se enche de sorrisos. As flores brotam e o frio se esvai.
A felicidade da Senhora alcança o
apogeu em pleno verão, quando a Terra presenteia aos seres vivos com seus
frutos e sementes. Mas, no início do outono, quando Coré, outra vez Perséfone,
precisa retornar à sombria morada de Plutão, a felicidade esfuziante no rosto
iluminado da Deusa a abandona pouco a pouco, até culminar no gelo infértil do
inverno. É quando a saudade mais aperta.
Lá embaixo, onde nenhuma criatura
viva ousa chegar, Perséfone, de sua parte, criou um santuário para os
protegidos de Deméter. São os Campos Elísios, onde a Deusa, eternamente, vela
pelos protegidos de sua mãe, agora protegidos seus.
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