quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O MITO DAS ESTAÇÕES

O Retorno de Perséfone. Frederic Leighton, 1891.


“Essas coisas nunca aconteceram, mas sempre existiram.” 

Roberto Calasso


Uma das mais belas e significativas passagens da tradição grega antiga é o mito das estações, que remonta a Elêusis e aos mistérios celebrados em honra às duas Senhoras, Deméter e Perséfone. Em se tratando de mitos, é muito difícil estabelecer uma sequência cronológica, uma vez que o tempo mítico é cíclico e não diz respeito a coisas que aconteceram, mas a coisas que acontecem, hoje, agora, todos os dias. E embora a narrativa pareça girar em torno de duas Deusas, ela deve ser vista mais como uma interação complexa entre forças indispensáveis. A ausência de apenas uma delas, mesmo daquela que pareça mais insignificante para o desfecho das tramas, seria, acreditamos, suficiente para modificar completamente o panorama dos resultados.

Com tudo isso em mente, consideremos que nossa narrativa começa com Plutão, honroso Senhor das Profundezas Abissais, seu trabalho incansável, porém silencioso, e sua infinita solidão.

Zeus pai, Senhor dos Céus e da vida, preocupado com Plutão, seu irmão mais jovem, em sua vida solitária e distante, procurou Afrodite, dos Doces Amores, para que ela intercedesse em favor do Senhor do Submundo e lhe encontrasse alguma companhia. Em se tratando de amor, Afrodite é sempre sensível e dificilmente recusa um pedido de ajuda. Ainda mais em se tratando do Senhor do Olimpo em pessoa – e essência.

Além disso, passeava pelos bosques, naquele tempo, Coré, filha única de Deméter, de trigais madeixas, com o próprio Zeus. Sempre acompanhada por um cortejo de ninfas, as quais lhe confiara a sua guarda a própria Deméter, Coré não se interessava pelo amor. E isso incomodava severamente a Afrodite, que recentemente já havia se sentido afrontada quando Zeus concedeu a Atená, de olhos glaucos, Ártemis, do arco enluarado, e Héstia, de cálida candura, o direito de permanecerem eternamente virgens. Vendo no pedido de Zeus uma oportunidade de evitar nova ofensa, Afrodite convocou o filho Eros, o amor, e ordenou-lhe que agisse.

Foi assim que, em certa noite enluarada, Zeus, que se fizera cúmplice de Afrodite, convocou o irmão desde sua sombria morada e, quando este passava, invisível, como de costume, pelos campos onde Coré colhia flores sob as gotas de orvalho, o Cupido acertou-lhe em cheio o peito com uma de suas devastadoras setas douradas. Confuso com o sentimento desconhecido que agora tomava-lhe de assalto, o Senhor do Averno não pôde controlar o ímpeto – com a altivez e tímida sensualidade que lhe era natural, aproximou-se e, declarando seu amor, pediu Coré em casamento.

Dividida entre seu antigo desinteresse pelos mistérios de Afrodite e a austera sedução de Hades, Coré confiou a decisão a sua mãe. Mas Deméter, incapaz de prescindir da companhia de Coré, negou a mão da filha ao Senhor das Trevosas Planícies.

Inconformado, Plutão procurou o Senhor dos Céus, seu irmão, pedindo uma intercessão. Havia sido por um ardil de Zeus que ele agora padecia de paixão, então cabia ao Trovejante resolver aquele impasse. E foi assim que Zeus, temendo desagradar a qualquer dos imortais fraternos, disse que Plutão esperasse o melhor momento.

Um dia, enquanto Coré apreciava as pétalas lânguidas de um narciso à beira do lago, o chão abriu-se de repente e, diante de si, surgiu o insondável Plutão. Tomada nos braços vigorosos do sombrio amante, ela contemplou a sua face proibida. No brilho esfumaçado de seus olhos de obsidiana, a jovem donzela encontrou o próprio semblante... e desfaleceu.

Foi levada, raptada, para os confins do Averno, entre almas penitentes e amaldiçoadas, mas também tesouros de radiante beleza e férteis terras onde floresciam suculentas romãs. Quando voltou a si, encontrou-se dividida entre o horror daquela escuridão e sua beleza intrigante; entre o amor e a companhia da mãe e os novos sentimentos pelo anfitrião, que desejava desposar-lhe e, gentilmente, oferecia-lhe o trono de seu reino, o mais vasto e rico quinhão da criação.

Enquanto isso, Deméter, angustiada com a ausência repentina de Coré, procurava a filha em toda a parte. Seu cortejo de ninfas, filhas do deus-rio Achelous e da musa Terpsícore, tampouco sabia onde ela estava. Enfurecida, a Deusa puniu-as pela falta de zelo. Transformou-as em sereias, horrendas mulheres-pássaro, que deveriam voar por toda parte até encontrar a jovem desaparecida. Depois, subiu ao Olimpo para interrogar aos Deuses e ao próprio Zeus, invocando sua responsabilidade de pai. Mas os deuses, sob as ordens de Zeus, Poderoso, silenciaram-se. Ninguém ousava contar a Deméter o destino de Coré.

A Deusa de loiras tranças mergulhara em profunda tristeza. Consternada, deixou a morada dos Deuses eternos e pôs-se a vagar pelo mundo dos homens em busca de Coré. Seus cabelos dourados embranqueceram. Sua pele aveludada enrugou-se. Deméter, enlutada, vagava pelas estradas e cidades humanas como uma velha peregrina e maltrapilha.

Tomada de devastadora tristeza, logo abandonou seus ofícios divinos. As terras tornaram-se inférteis, As plantações definhavam, assim como os animais. As sementes nem chegavam a nascer. Toda a obra de Gaia e Urano, a própria criação, afundava-se em frio desolador, doenças e fome.

Os Deuses desesperavam-se. Se a tristeza de Deméter não tardasse a ser curada, talvez a própria Terra não sobrevivesse. Ísis, de asas douradas, a mensageira do Olimpo, procurava-a a pedido de Zeus, mas a Deusa não queria ser encontrada.

Certo dia, ao passar por uma encruzilhada, encontrou-se com Hécate, a Portadora dos Archotes, aquela que faz o que lhe apraz. Hécate, Senhora das encruzilhadas, dos caminhos em todos os reinos e planos da existência, até mesmo das tramas do destino, compadeceu-se da dor de Deméter. Afinal, também era mãe.

—Você, por acaso, teria visto o que aconteceu a Coré? — questionou a Deusa enlutada.

— Não — Hécate respondeu — Mas sua dor ecoa em meu ventre. Eu não vi, mas sei quem tenha visto.

A Portadora dos Archotes iluminou, assim, o caminho de Deméter até o encontro de Hélio, Resplandecente, Aquele que tudo vê.

— Coré — disse o Sol — foi levada para o sombrio reino de Plutão, onde este a fez sua rainha. O próprio Zeus assim o permitiu em um acordo entre irmãos.

Deméter ficou furiosa. Quis ir até o Olimpo, confrontar o Trovejante. Mas Hécate, de bons conselhos, orientou-a diferente. Deméter, em negros véus, seguiu para seu santuário, em Elêusis, e lá despiu-se do disfarce. Mas a Terra continuava a morrer. Não tardou para que Íris a encontrasse, levando consigo as súplicas divinas. Irredutível, a Senhora dos Trigais avisou que a Terra somente floresceria outra vez quando Coré voltasse aos seus braços. E o recado a Zeus foi dado.

Vendo-se sem saída, Zeus não teve alternativa senão pedir a Plutão que devolvesse Coré aos braços de sua mãe. Mas a própria Coré já não era a mesma de outrora. Uma vez rainha das planícies abissais, tornara-se Perséfone. Não mais menina, mas mulher. Não mais filha, mas esposa.

Astuto, o Senhor Sombrio deu-lhe três sementes de suculenta romã. A regra é clara — aquele que prova das delícias do Averno ao Averno deve pertencer.

A iniciativa de Plutão, mais uma vez, obrigava Zeus, enquanto árbitro divino, a uma difícil decisão. De um lado, Démeter, mãe inconsolável, recusava-se a prover a Terra de frutos frescos enquanto Coré não estivesse de volta a sua companhia. De outro, Plutão, sombrio Senhor do submundo, reclamava seus direitos de monarca e esposo.

Talvez pelo conselho auspicioso de Atená, a Virgem de Olhos Glaucos, Zeus decidiu — Perséfone haveria de voltar. Permaneceria dois terços de um ciclo do Sol (o ano) ao lado de Deméter no Olimpo, mas, ao final desse período, voltaria aos abraços voluptuosos de Plutão no Averno, completando o ciclo como Senhora das Profundezas Abissais, a benfazeja, porém temida, Rainha do Submundo.

Com a anuência de todos os interessados, Hermes, o Guia das Almas, recebeu a incumbência de trazer Perséfone, outra vez Coré, aos braços amorosos da Mãe. E foi assim que, suspiram as musas, nasceram as estações. Quando Perséfone atravessa as portas do Averno, no início da Primavera, guiada pelos pés ligeiros de Mercúrio, o rosto de Deméter se enche de sorrisos. As flores brotam e o frio se esvai.

A felicidade da Senhora alcança o apogeu em pleno verão, quando a Terra presenteia aos seres vivos com seus frutos e sementes. Mas, no início do outono, quando Coré, outra vez Perséfone, precisa retornar à sombria morada de Plutão, a felicidade esfuziante no rosto iluminado da Deusa a abandona pouco a pouco, até culminar no gelo infértil do inverno. É quando a saudade mais aperta.

Lá embaixo, onde nenhuma criatura viva ousa chegar, Perséfone, de sua parte, criou um santuário para os protegidos de Deméter. São os Campos Elísios, onde a Deusa, eternamente, vela pelos protegidos de sua mãe, agora protegidos seus. 

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