Antes de começarmos, uma
advertência se faz necessária: este texto é fruto de uma visão pessoal e não
foi escrito para convergir na queda d’água dos pensamentos na atualidade. Pelo
contrário, é um texto escrito para divergir e, ainda que não tenha a intenção
de encerrar o assunto, também não tem a pretensão de ser agradável. Outra coisa que vale a pena dizer é que a linha argumentativa a seguir não se orienta contra pessoas, mas contra ideias e circunstâncias. Dito isso,
coloquemos o dedo na ferida.
Embora eu não seja nada presente
nos nichos virtuais sobre paganismo, há tempos venho percebendo que o dito “meio
pagão” se rege por certos modismos ideológicos – geralmente antagônicos.
Traçando uma linha de tempo extremamente resumida, apenas para exemplificar,
primeiro foi o boom da Wicca, se não
me falha a memória, aqui no Brasil, no início dos anos 90 (sim, estou ficando
velho). Depois foi a moda da “bruxaria tradicional”. Todo mundo se dizia de
alguma “tradição familiar milenar”. Era legal e dava status. Consequentemente,
descer o cacete na Wicca e em seus fundadores tornou-se cult.
Acho que mais ou menos na mesma
época, uma onda anticristã começou a banhar as praias neo-pagãs, em grande
parte motivada pelos estudos histórico-filosóficos que a prática do paganismo exige
nos dias de hoje (pois é, ser pagão é uma coisa trabalhosa à beça). Buscava-se
um purismo, que eu não consigo definir senão como tolo, em que toda espécie de
sincretismo, sobretudo com elementos cristãos, passou a ser severamente
criticado. Atualmente, na era do “politicamente correto” (seja lá o que isso
for), o barato é outro – falar bem do cristianismo é legal pacas! Há, diz essa
nova geração, que se respeitar o cristianismo, que reconhecer os seus méritos, do
contrário seria incentivo à intolerância religiosa.
Ora, claro que eu não sou a favor
da intolerância religiosa. O problema é que, no afã do discurso, como de
costume, metem-se os pés pelas mãos e busca-se, para usar o vernáculo, tapar o
sol com a peneira.
Lembro que nas manifestações do
ano passado (2013) uma espécie de jargão se tornou bastante popular: “não
confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”. Sem medo de ser
clichê, reproduzo-o aqui, pois acho que ilustra com perfeição minhas elucubrações
para este texto. Quero crer que, senão todos, pelo menos a maior parte de nós,
pagãos, compreende que os paganismos, em suas mais variadas denominações
(afinal, paganismo é uma denominação genérica para uma vasta pluralidade de
tradições religiosas), nunca foram essencialmente excludentes. Pelo contrário,
eu ousaria dizer que a essência do paganismo, enquanto filosofia religiosa, é a
diversidade. Retirando-se o componente cultural do etnocentrismo, comum a
praticamente todos os povos religiosos de uma matriz politeísta, os mesmos, ao deparar-se
com outras matrizes politeístas, geralmente dão luz ao sincretismo, enxergando
seus próprios deuses sob outras roupagens. Isso quando, em termos históricos, o
“novo deus” realmente não se parecia com nada familiar àquela cultura e mesmo
assim seu culto era absorvido, passando a coexistir com a multiplicidade de
cultos já existentes (o caso de Hécate e Dionísio na Grécia).
Lembro de ter ouvido de um
professor de História Antiga, ainda no início da graduação, que para um povo
politeísta a chegada de um novo deus não altera significativamente a ordem das
coisas. É apenas mais um. No entanto, para um povo monoteísta, a chegada de
outro deus acaba colocando em xeque a ordem estabelecida, gerando, como
consequência, tensão e conflito.
De fato, quando a religião dos
hebreus chegou à Roma pagã, com seu deus único, isso não provocou nenhum
choque. Roma, assim como a Pérsia, não desejava problemas com os deuses dos
povos conquistados e jamais impôs sua religião. Em Israel, os hebreus puderam
continuar com seus cultos e sua religião. A religião hebraica, por outro lado,
não foi capaz de lidar bem com a alteridade dos romanos, de coexistir, de
aceitar dividir o mesmo espaço (alguma semelhança com os dias atuais?), e no
contexto do cristianismo a coisa não foi diferente.
As perseguições aos cristãos, das
quais eles se queixam até hoje, começaram motivadas em grande parte pelo
comportamento hostil dos próprios cristãos. Coisas como ataques aos deuses em
praça pública, depredação de santuários, agressão a sacerdotes (novamente,
alguma semelhança com os dias atuais?). E quando finalmente o cristianismo
tornou-se a religião oficial do Império, o que já existia enquanto perseguição
ideológica não tardou a se tornar proibição jurídica. O culto aos deuses
antigos tornou-se ilegal.
Sim, o discurso pacifista é belo,
mas não adianta fingir que este, acima, não é o cristianismo. Como uma religião
de livro, todo o código moral de seus seguidores, o conjunto de obrigações que
cabe aos homens e mulheres, está registrado na Bíblia. Outro dia, enquanto
assistia à TV Brasil, vi, numa daquelas vinhetas em que religiosos falam de
suas respectivas religiões, um pastor evangélico dizer que “a Bíblia não contém
a palavra de Deus, ela É a palavra de Deus”. E é suficiente folheá-la para
encontrar algumas obrigações institucionais de todo cristão, um tanto
condenáveis de nossa perspectiva moderna. Exemplos:
1. Os
deuses antigos são demônios: “todos os deuses dos gentios são demônios” (Salmos
95,5).
2. A
necessidade de pregar e converter os não-cristãos: “proclama a palavra,
insiste, no tempo oportuno e no inoportuno, refuta, ameaça, exorta com toda a
paciência e doutrina.” (2 Timóteo 4:2).
3. O
pecado da homossexualidade: “com homem não te deitarás, como se fosse mulher;
abominação é;” (Levítico 18:22) “por isso Deus os abandonou às paixões infames.
Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza” (Romanos
1:26).
4. Submissão
da mulher: “porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça
da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo” (Efésios 5:23).
Essas só para citar algumas.
Daí me dirão – “ah, mas o
cristianismo prega o amor ao próximo”. Respondo que, na verdade, o cristianismo
prega o amor por seu semelhante. Adivinhem quem é o semelhante do cristão!
Exatamente. Outro cristão. Não fosse assim, as cruzadas, por exemplo, jamais
poderiam ter acontecido. Nem vou comentar dos tribunais da Inquisição.
“Ah, mas nem todo cristão é assim.”
Isso é verdade. E eu acho ótimo. Mas é preciso considerar que essas pessoas,
embora ótimos seres humanos, talvez não sejam boas cristãs do ponto de vista de
sua própria tradição religiosa.
A questão é que aprendemos a
considerar o cristianismo como o início de toda moral (ainda que de fato não
seja). Nossa educação está repleta de seus padrões como referência do certo. A
ideia do pecado nos assombra das profundezas do nosso inconsciente. Além disso,
tem todo aquele papo do universalismo, de que todas as religiões levam ao mesmo
Deus... E é muito difícil, nesta altura da vida, de repente a gente se dar
conta de que, não, nem todas as religiões levam ao mesmo Deus. Não, nem todas
as religiões têm os mesmos objetivos. Não, todos os deuses, no fundo, NÃO são
nomes diferentes para o mesmo deus. E, finalmente, sim, algumas ideologias
religiosas podem ser ruins segundo nossos pontos de vista e aquilo que queremos
para nós.
Por tudo o que foi dito, fica
fácil entender porque tantos pagãos, hoje, se sentem movidos por um certo
sentimento anticristão. O cristianismo não é bom para essas pessoas. Eu mesmo,
devo confessar, não acho o cristianismo bom pra mim, e nem mesmo para o mundo. Acredito
que o problema maior nem seja o rígido código moral, os dogmas inquestionáveis,
a concepção unilateral do mundo, mas o fato de ela, declaradamente, não aceitar
sequer a existência do divergente. Como lidar de maneira politicamente correta,
com diplomacia e aceitação, com uma ideologia que tem por premissa a
colonização do outro? Para a qual o simples fato de você existir já é uma
ofensa? Deixar de existir não é uma opção. Ignorar essa ideologia já foi historicamente
mostrado ser impossível. Para todas as denominações pagãs de que já tive
notícia, conviver com o divergente não se mostrou um desafio intransponível,
justamente por causa da pluralidade de aspectos que essas tradições reconhecem
na natureza e na vida. São as tradições cristãs, em nossa realidade ocidental,
que encontram severas dificuldades para coexistir com outros mundos que não o
seu. E no afã de conservar apenas a sua resposta, se esforçam em destruir,
ideológica ou belicamente, todas as outras. Se fosse possível falar em “pecado”
ou “heresia” no contexto pagão e politeísta, este certamente estaria
caracterizado pela tentativa de colocar todos os homens sob o mesmo padrão.
Hoje, convivemos, no Brasil, com
uma bancada fundamentalista cristã que avança cada dia mais no sentido de
estabelecer hegemonia política, retirando ou concedendo direitos conforme as
suas próprias crenças. Tudo perfeitamente de acordo com o livro sagrado que os
rege.
Terreiros de candomblé são
invadidos e destruídos à luz do dia sem que ninguém precise responder por isso.
Pessoas sofrem discriminação religiosa em seus trabalhos e escolas, algumas
vezes são agredidas no meio da rua. Se um pagão entra em um estabelecimento
comercial em que o dono ou os funcionários são cristãos e estão ouvindo hinos
de louvor, ele provavelmente voltará ao estabelecimento, porque isso, para ele,
não é nada demais. Se um cristão entra em um estabelecimento comercial dirigido
por adeptos de religiões afro e eles estiverem ouvindo suas canções sagradas, o
cristão provavelmente não voltará e o estabelecimento correrá o risco de falir.
Hoje, ao receber um montador de móveis em minha residência, onde há diversos
ícones de minha religiosidade, fui obrigado a ouvir um “Jesus te ama”, em
nítido tom de provocação, ao final... Mas algumas pessoas acham que eu não
posso dizer “que os Deuses lhe abençoem” a um cristão, porque soará ofensivo e
ele “não vai entender”. Me pergunto, que tipo de liberdade é esta?
O que urge tornar-se claro é que
a necessidade de certo posicionamento, por parte de nós, pagãos dos mais
diversos segmentos, não é uma questão de espiritualidade, apenas, mas um ato
político de luta por espaço. Cabe a nós delimitar e exigir o espaço que nos
pertence. Esta geração, que chegou e encontrou um mundo um tanto pacífico, com
pessoas cheias de direitos, parece não saber o trabalho que dá conquistar
direitos. Coisas como liberdade e respeito não nos são dadas de graça, elas
precisam ser conquistadas.
“Proselitista!”, me acusarão
alguns. A estes eu digo que isto jamais foi uma campanha para conversão ou
colonização do outro. “É preciso respeitar as pessoas que são cristãs”, dirão
outros. Concordo. Na maior parte das vezes, não é preciso desrespeitar alguém
para fazer este alguém te respeitar também. Basta saber delimitar seu próprio
espaço. Mostrar com suas atitudes que o espaço de um termina onde começa o do
outro. Mas ninguém faz isso se escondendo, faz?
Por fim, eu gostaria de dizer a
quem possivelmente se sentir ofendido com o que eu disse lá em cima, sobre alguns
cristãos serem excelentes seres humanos, mas péssimos religiosos, que não é
nenhum orgulho ser bom religioso na religião que descrevi. Ao menos não sob o
paradigma cultural que se desenha em nossos dias. Talvez em tempo algum. A esses
cristãos, que acreditam num cristianismo diferente, e infelizmente são exceção,
eu digo – que vocês sejam em número cada vez maior, para que consigam, talvez num
futuro utópico, ressignificar a religião de maneira a fazê-la não mais um instrumento
poderoso de dominação de massa e, quem sabe, alguma coisa mais compatível com
toda a diversidade que há no mundo.